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Um tiro! E a Europa se incendiou.

Artilharia cuspindo fogo: 65 milhões de homens entraram em combate/ Foto: Iconographia
Artilharia cuspindo fogo: 65 milhões de homens entraram em combate/ Foto: Iconographia

Por: HERBERT CARVALHO

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) mudou o sentido que a palavra catástrofe tinha para os europeus. Aquele primórdio do século 20, marcado pela tranquilidade e pelo avanço das artes e da ciência, que a nostalgia do tempo perdido batizaria retrospectivamente de belle époque, se relacionava apenas a alguns poucos acontecimentos traumáticos como, por exemplo, o naufrágio do Titanic, em 1912, que causou a morte de mais de 1.500 pessoas.

As únicas quantidades medidas em milhões, até então, sem contar as da astronomia, referiam-se às populações dos países e seus respectivos dados sobre produção, comércio e finanças. Guerras, o continente tinha visto muitas, mas elas tinham objetivos limitados, eram travadas até incapacitar operacionalmente as forças inimigas, sem envolver a população civil. Os únicos conflitos com vários países ao mesmo tempo tinham ocorrido cem anos antes, na era napoleônica, e já pertenciam ao domínio das obras literárias, como Guerra e Paz, do escritor russo Liev Tolstói.

“Na Era dos Impérios a política e a economia se haviam fundido. A rivalidade política internacional se modelava no crescimento e competição econômicos, mas o traço característico disso era precisamente não ter limites”. A explicação do historiador inglês Eric Hobsbawm para a disputa de uma Alemanha que, em 1914, produzia mais ferro e aço que a França e a Inglaterra juntas, mas não dispunha do acesso às matérias-primas que as potenciais rivais desfrutavam em suas respectivas colônias, foi resumida assim pelo líder revolucionário russo Vladimir Ilich Ulyanov, conhecido como Lenin: “A Alemanha chegou atrasada ao banquete imperialista e reivindica seu lugar na mesa”.

O resultado de uma luta na qual só contava a derrota total do oponente expressou-se em números superlativos de vítimas e na incorporação da carnificina e da barbárie como práticas bélicas, que se reproduziriam na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e nos conflitos internos ou entre países, com todos os horrores que ainda nos perseguem e afligem no século 21. Em quatro anos de conflagração foram mobilizados 65 milhões de homens, dos quais 8 milhões morreram e 21 milhões ficaram mutilados. Os civis mortos – 9 milhões – superaram pela primeira vez na história os caídos no campo de batalha. Some-se mais 6 milhões abatidos pela epidemia de gripe espanhola em 1918 e se terá toda a dimensão da tragédia. Para ingleses e franceses, as sequelas do conflito seriam ainda mais terríveis do que as provocadas vinte anos depois por Adolf Hitler. A Inglaterra perdeu meio milhão de homens com menos de trinta anos, praticamente uma geração. Na França, foram mortos 20% dos homens em idade militar e apenas um terço de seus soldados saiu incólume de uma guerra que continua a matar ainda hoje, cem anos depois: nas florestas de Verdun ou do Somme, palcos de sangrentas batalhas, obuses enterrados explodem vez ou outra, ceifando a vida de crianças que brincam. Estima-se em setecentos anos o tempo necessário para a limpeza completa do subsolo do país.

Ao final da luta, travada principalmente em solo europeu e no Oriente Médio, o mapa da Europa foi redesenhado, impérios se desmembraram, monarquias absolutistas foram abolidas, potências colonialistas entraram em decadência, uma revolução socialista tornou-se vitoriosa e os Estados Unidos – participante bélico de última hora, porém decisivo – emergiram como polo de poder econômico e militar em nível mundial.

As consequências se estenderiam ao Brasil, que entrou na guerra contra a Alemanha em outubro de 1917, após o afundamento de navios mercantes de bandeira nacional pela marinha de guerra daquele país. Aqui, como em toda a América Latina, começava a transição do capital inglês para o norte-americano e da libra esterlina para o dólar como moeda hegemônica.

Xenofobia e militarismo

A Europa de 1914 era um complicado tabuleiro de xadrez, onde dois blocos opostos de países vigiavam-se com mútua hostilidade. De um lado se alinhavam França, Inglaterra e Rússia sob a denominação de Tríplice Entente. De outro, os impérios alemão, austro-húngaro e turco-otomano formavam o bloco dos Impérios Centrais, inicialmente denominado Tríplice Aliança. Este duelo de gigantes já havia experimentado uma escaramuça prévia com a guerra franco-prussiana na década de 1870, tendo feito modificações entre os contendores antes e durante as hostilidades. O vaivém da diplomacia italiana no período dá uma ideia de como as peças eram movimentadas. País de unificação tardia, à exemplo da Alemanha, a Itália primeiro integrou a Tríplice Aliança, em 1882. Depois abandonou os impérios vizinhos e declarou-se neutra. Foi substituída pela atual Turquia, que tentava preservar seus domínios e influência no norte da África e no Oriente Médio, situação semelhante à do também decadente império austro-húngaro nos Balcãs, região situada na encruzilhada das civilizações e que compreendia a Sérvia, a Romênia, a Bulgária e a Grécia. Em 1915, os italianos entraram na guerra a favor da Entente e a Bulgária engrossou o campo oposto. No Extremo Oriente o Japão – potência emergente desde a derrota imposta à Rússia czarista em batalha pelo controle da Manchúria, em 1905 – declarou guerra à Alemanha, interessado em se apoderar das concessões daquele país na China e em ilhas do Pacífico, oceano que, entretanto, não seria palco de batalhas, como ocorreu na Segunda Guerra Mundial.

Por trás do jogo diplomático estava a expansão do capitalismo que, nas décadas finais do século 19, se dinamiza a partir da Segunda Revolução Industrial (com suas novas fontes de energia, como o petróleo e a eletricidade) e se concentra em grandes monopólios econômicos cada vez mais voltados para a produção de caráter bélico, complemento e garantia da hegemonia financeira nas relações internacionais, como ocorre até hoje. Nesse contexto a Inglaterra, dona dos mares, que reinava absoluta até então no comando da economia mundial, encontra um rival na Alemanha, disposta a investir pesado na construção de poderosa esquadra de guerra capaz de viabilizar suas ambições, assim resumidas pelo kaiser Guilherme II, o chefe supremo do governo germânico: “A política mundial como missão, a potência mundial como meta e o poderio naval como instrumento”.

O êxito das potências colonialistas europeias em suas guerras de conquista travadas na Ásia e na África estimula internamente o nacionalismo xenófobo e o militarismo, expressos na adoção generalizada do alistamento universal e obrigatório para todos os cidadãos do sexo masculino. Assim, a notícia de que a guerra começara provocou delirantes manifestações de entusiasmo nas maiores cidades das nações beligerantes. Na Inglaterra, um dos poucos países que não alistava compulsoriamente, 2 milhões de nativos se apresentaram como voluntários para o serviço militar entre agosto de 1914 e junho de 1915.

Até mesmo os partidos que integravam a Segunda Internacional Socialista aderem ao fervor patriótico nos respectivos países, com duas notáveis exceções pessoais: na França, o líder Jean Jaurès não modera sua postura pacifista e morre em um café de Paris pelas mãos de um fanático; no parlamento da Alemanha o revolucionário Karl Liebknecht, assassinado junto com Rosa Luxemburgo, em 1919, profere o único voto contrário aos créditos de guerra. Somente o Partido Bolchevique, de Lenin – ou, apenas, Lenine –, permaneceu fiel ao princípio de denunciar a carnificina imperialista e transformá-la em guerra revolucionária e de libertação.

Uma data, 28 de junho, ficou tão marcada na memória europeia e mundial que foi escolhida pelo presidente francês François Mitterrand, em 1992, para aparecer de surpresa em Sarajevo e denunciar o perigo representado pela guerra balcânica que eclodira após a desintegração da Iugoslávia. O simbolismo era evidente: em 28 de junho de 1914, naquela cidade, o assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, arquiduque Francisco Ferdinando, seria o estopim para a conflagração. Como era quase corriqueiro assassinar personalidades públicas naquela época, até o final de seus dias o estudante bósnio Gavrilo Princip, de 19 anos, autor dos disparos, não conseguiu acreditar que sua iniciativa tivesse ateado fogo ao mundo.

Trincheiras

Daí por diante os fatos se precipitaram de maneira incontrolada. Respaldada e mesmo atiçada pela Alemanha, a Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia, provocando a mobilização geral do exército da Rússia, cujo objetivo seria intervir de modo a garantir a influência do país sobre os Balcãs. Antecipando-se, a Alemanha declara guerra à Rússia e em seguida à França. Quando a Alemanha viola a neutralidade da Bélgica e invade seu território na rota para atacar a França recebe, por sua vez, a declaração de guerra vinda da Inglaterra. A Turquia se junta aos Impérios Centrais e a sorte está lançada. A estratégia alemã, curiosamente repetida na Segunda Guerra Mundial, visava derrotar rapidamente a França e neutralizar o flanco ocidental, para depois lançar todas as suas forças contra a Rússia. Não apenas os alemães, mas todos os povos envolvidos, embalados por inaudito furor, partiram alegremente para massacrar e ser massacrados, na ilusão de que a guerra seria curta e vitoriosa.

Ainda no início, em setembro de 1914, os alemães se detêm às portas de Paris ante a necessidade de transferir tropas para o leste, para conter uma ofensiva russa, que os coloca em duas frentes. Apesar de se terem preparado materialmente para o conflito, ao ponto de cada soldado alemão dispor de três pares de botas, unidades mal treinadas de estudantes universitários da Bavária são dizimadas pelo exército britânico. Um testemunho dessa barbárie é dado pelo cemitério de Langemark: ali, numa cova comum, foram enterrados 36 mil jovens mortos em apenas três semanas de luta, número de baixas equivalente às sofridas pelos Estados Unidos na Guerra no Vietnã (1954-1973). Um dos poucos sobreviventes do 16º Regimento de Infantaria da Reserva do Bávaro chamava-se Adolf Hitler.

No inverno europeu de 1914 a guerra chegou a um impasse. Privados da possibilidade de desfechar golpes frontais, pois nenhum dos lados possuía clara superioridade material, os chefes militares adotam a tática do entrincheiramento. Nos 700 km que vão do Mar do Norte aos Alpes foram construídos complexos sistemas de trincheiras, barreiras de arame farpado, blindagens, posições de tiro, postos de observação, cercas eletrificadas e terrenos minados, em linhas defensivas paralelas. “Esta era a guerra de atrito, na qual, para ganhar uma centena de metros, sacrificava-se toda uma geração”, resume o historiador militar inglês John Keegan. O ataque alemão a Verdun, em 1916, rechaçado por franceses e ingleses ao custo de centenas de milhares de vidas de ambos os lados, não muda o equilíbrio de terror que prevaleceria até o fim do conflito.

No mar, as frotas adversárias encabeçadas por couraçados e cruzadores se enfrentavam na batalha naval de Jutlândia, vencida pela Inglaterra, que daí por diante confina os grandes vasos de guerra do oponente às suas bases. A Alemanha reage ao bloqueio continental que dificulta seu abastecimento com uma guerra submarina “sem limites”, atingindo navios mercantes e de passageiros (como o transatlântico britânico Lusitânia, afundado com 2 mil pessoas na travessia Nova York-Liverpool). Ingleses e alemães afundaram navios uns dos outros até nas costas do Chile e da Argentina. A tentativa de invasão do território turco pela península de Galípoli malogra na batalha dos Dardanelos: ali os aliados desembarcaram tropas que, meses depois, seriam obrigados a retirar, com pesadas baixas.

Versalhes

Aos poucos, os povos que haviam aplaudido a guerra com entusiasmo sentem-se logrados diante do aumento de preços e impostos, do racionamento de alimentos, das perdas materiais e das tragédias familiares causadas pela morte ou mutilação de entes queridos nos combates. Na Alemanha e na Rússia multidões saqueiam armazéns nos “motins da fome”. Minorias nacionais agitam-se por todos os lados. Árabes unem-se aos ingleses contra os turcos. A Grã-Bretanha enfrenta, além de greves, o levante pela independência da Irlanda.

Na frente de batalha, a confraternização entre inimigos exaustos pelo enfrentamento é reprimida com fuzilamentos, que não são suficientes, porém, para deter as deserções em massa, como as registradas no exército russo. Com o lema “Pão e Paz”, os bolchevistas (que se opunham ao regime czarista russo) transformam a revolução que derrubaria o czar Nicolau II, em fevereiro de 1917, no levante de operários e soldados. No ano seguinte, uma delegação soviética liderada por Leon Trotsky assina a rendição de Brest-Litovsk, liberando os alemães para se concentrarem na frente ocidental. Intelectual marxista e revolucionário bolchevique, Trotsky foi o organizador do Exército Vermelho (extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS).

É neste momento em que a França, novamente pressionada na linha do Marne e com sua capital alvejada pelo canhão Bertha (nome dado em homenagem à filha do industrial alemão dos armamentos Krupp), é salva pela intervenção dos norte-americanos. Quando o flanco sul dos Impérios Centrais desmorona – rendição da Bulgária, capitulação da Turquia e desmembramento da Áustria-Hungria – os soldados alemães se recusam a continuar na luta sozinhos, e seu estado-maior se vê na contingência de aceitar um armistício negociado com o presidente Woodrow Wilson, dos Estados Unidos. O kaiser Guilherme II abdica, a República é proclamada e a rendição assinada, em 11 de novembro de 1918.

Apesar de não invadida, com parte de suas tropas ainda em território francês, a Alemanha é obrigada a aceitar as condições humilhantes do Tratado de Versalhes (1919): perde 12,5% de suas terras; suas colônias de ultramar são distribuídas entre os vencedores; é privada de ter marinha e força aérea efetivas; seu exército fica restrito a cem mil homens e, por fim, é condenada a pagar reparações que beiram o infinito.

O pós-guerra articulado no âmbito da Liga das Nações coloca duas potências à margem do jogo internacional: a Alemanha, punida drasticamente por quase ter vencido e a Rússia soviética, proscrita pelo medo de contágio de sua revolução social. Um arranjo inepto, que não dura muito: vinte anos depois o mundo arderia novamente em chamas. Criada em 1919 e autodissolvida em 1946, a Liga das Nações tinha por objetivo agrupar os países, por meio da mediação e da arbitragem, em torno de uma organização que fosse capaz de manter a paz e a ordem no mundo, dificultando a deflagração de conflitos como o que acabara de destruir parte da Europa.

Batalha das toninhas

Em meados de 1917, três anos depois do início da Primeira Guerra Mundial, a posição oficial do Brasil ainda era de neutralidade. Intelectuais e outras personalidades se dividiam em aliadófilos e germanófilos. No primeiro grupo estava o poeta Olavo Bilac, criador da Liga Nacionalista, que advogava a implantação do serviço militar obrigatório, apoiada por empresários como Roberto Simonsen e Jorge Street. Havia ainda a Liga Brasileira pelos Aliados, dos escritores Graça Aranha e Coelho Neto, que tinha em Rui Barbosa seu presidente de honra.

Do lado oposto, pontificava o historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima, que chegou a ser convidado a se retirar de Londres, onde mantinha residência fixa. Monteiro Lobato, por sua vez, opôs-se ao nacionalismo guerreiro, denunciando-o como uma forma de desviar a atenção do que considerava os verdadeiros problemas brasileiros, até hoje não resolvidos, por sinal: a precariedade da saúde pública e o caráter antidemocrático do governo presidencialista.

Os estrangeiros instalados no Brasil faziam campanha de bônus de guerra para enviar dinheiro aos respectivos países. Alguns se alistavam e regressavam à Europa para lutar. Em cidades e bairros de imigrantes ocorreram escaramuças com súditos de nações inimigas. Mas entre representantes de organizações e jornais operários a situação é outra: criou-se, no Rio de Janeiro, a Comissão Popular de Agitação contra a Guerra.

Em 27 de outubro de 1917, o governo de Wenceslau Braz proclamou o “estado de guerra, iniciado pelo Império alemão contra o Brasil”. Ato contínuo demite o ministro do exterior, general Lauro Müller, descendente de alemães. No mês seguinte é decretado o estado de sítio no Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo – regiões de intensa agitação política e operária – e no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, estados concentradores da imigração alemã.

Em 1918, o Brasil envia à Europa uma missão médica, um contingente de aviadores e uma Divisão Naval, composta de dois cruzadores, quatro destróieres, um cruzador auxiliar e um rebocador de alto-mar. Grande parte da tripulação seria dizimada pela gripe espanhola. Dias antes do armistício, nas imediações de Gibraltar, os brasileiros entram em ação: abrem fogo contra um cardume, confundido com submarino alemão. O episódio ficou conhecido como Batalha das Toninhas.