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Quando a memória vai embora
Por: CARLOS JULIANO BARROS
Falecido no último dia 17 de abril, aos 86 anos, o escritor colombiano Gabriel García Márquez há tempos já não se dedicava ao ofício de escrever. O envelhecimento foi subtraindo a conta-gotas a matéria-prima de sua genial literatura: a memória. A família evitava falar publicamente sobre o assunto, mas o Prêmio Nobel de Literatura de 1982 sofria da doença de Alzheimer. Se não levasse uma vida dedicada aos livros, García Márquez provavelmente teria acusado o golpe da senilidade mais cedo. “O maior fator de risco da doença de Alzheimer é a inatividade intelectual”, explica o neurologista Paulo Henrique Ferreira Bertolucci, 59 anos, diretor científico da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz). De acordo com estimativas da entidade, cerca de 1,2 milhão de idosos brasileiros sofrem com o comprometimento gradual da memória que culmina, fatalmente, com o estágio de demência.
Bertolucci, que também é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), recebeu em seu consultório na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, a reportagem de Problemas Brasileiros para esta entrevista. O neurologista avalia que a cura para a doença de Alzheimer é um sonho distante, talvez impossível. E, apesar de cientistas brasileiros estarem na vanguarda das pesquisas sobre novos tratamentos, a prevenção a fatores de risco – como a hipertensão e a diabetes – é uma ferramenta valiosa para adiar os sintomas do mal. “Se você tiver uma vida saudável, as chances de desenvolver uma série de doenças diminui, inclusive a demência de Alzheimer”, alerta Bertolucci.
Problemas Brasileiros – A doença de Alzheimer não tem cura, porém, quando diagnosticada precocemente, seu tratamento pode proporcionar qualidade de vida ao paciente. Quais são os sintomas mais comuns?
Paulo Bertolucci – Quando se fala em doença de Alzheimer, todo mundo pensa em demência. E, na realidade, a demência é só a última de três fases. Alguns idosos começam a desenvolver alterações no cérebro e entram na primeira fase, a pré-clínica. Mas eles não têm nenhum sintoma e nenhuma queixa. E ninguém nota diferença. Depois, vem o segundo estágio, a chamada “doença prodrômica”, quando se percebem os primeiros problemas de memória. Por fim, há a fase da demência propriamente dita. Tanto o tratamento farmacológico quanto outras abordagens de pesquisa estão se deslocando para a fase da doença prodrômica. Eventualmente, no futuro, vão focar a fase pré-clínica. De fato, não existe cura e nem há perspectiva a curto prazo. Provavelmente, cura – no sentido de resolver o problema para sempre – jamais vai existir. Assim como não existe para diabetes ou hipertensão. O que se deseja fazer é prevenir a evolução das fases, antes que apareça a demência. As primeiras manifestações da doença de Alzheimer são lapsos de memória. Mas, no processo normal de envelhecimento, a memória pode ficar mais lenta, porque a velocidade de processamento é menor. Então, a maior parte dos idosos que se queixam das falhas de memória não tem doença de Alzheimer. Mas, infelizmente, alguns têm. E como é possível fazer a diferenciação? Por uma regra básica: se um idoso muda seu dia a dia por causa da memória, se está tendo um impacto funcional, ele precisa ser avaliado por um médico.
PB – Dificuldade em pagar contas é um exemplo de impacto funcional?
Bertolucci – Na demência resultante da doença de Alzheimer, o que se altera primeiro é a memória que depende de planejamento. Lembrar que é preciso pagar uma conta é memória prospectiva, de algo que vai acontecer. Com a doença avançada, a pessoa não consegue fazer qualquer planejamento sobre finanças. O impacto sobre planejamento também pode ser visto em situações de viagem. As pessoas com Alzheimer têm dificuldade para fazer a mala, levam a quantidade errada de roupas ou peças inadequadas. A mudança de ambiente ou de contexto – a saída de casa de um filho que se casou, por exemplo – também pode gerar confusão mental. Quem provavelmente vai mostrar a demência típica de Alzheimer mais rapidamente é a pessoa que se dedica a atividades mais complexas. Já aquela que tem uma rotina muito regrada – uma dona de casa que faz a mesma coisa há muitos anos – só vai mostrar falhas no momento em que nem isso mais conseguir fazer adequadamente.
PB – No Brasil, a maioria das pessoas diagnosticadas com Alzheimer encontra-se em que fase da doença?
Bertolucci – Na fase de demência, já bem estabelecida. Não se faz diagnóstico prodrômico, absolutamente. Mas está ficando cada vez mais claro que o caminho é prevenir a passagem de fase. Quando a pessoa preenche o critério do estágio da demência, o estrago já chegou aonde não poderia chegar. Na realidade, o diagnóstico certeiro da doença de Alzheimer só ocorre com biopsia ou necropsia. Porém, esses procedimentos deixaram de ser realizados por oferecerem riscos aos pacientes. Isso era feito nos anos 1970. Hoje, existe um exame do líquor [fluido com nutrientes que alimenta o cérebro e os tecidos nervosos] que pode ser feito em laboratório. Ele serve para reforçar suspeitas, depois dos testes clínicos, e para identificação de grupos de risco. Mas não se trata de um exame simples, de rotina. Enquanto não surgir um exame de sangue, vai ser complicado [o diagnóstico laboratorial em larga escala].
PB – Que alterações no organismo são provocadas pela doença de Alzheimer?
Bertolucci – Basicamente, há duas proteínas que se alteram: a beta-amiloide e a fosfo-tau. O cérebro precisa de beta-amiloide. Ela é importante para a manutenção do neurônio e seria uma péssima ideia retirá-la totalmente. Por outro lado, o cérebro só consegue manejar essa proteína em quantidades pequenas. Na doença de Alzheimer, a pessoa passa a produzi-la em grande quantidade. Daí, as moléculas de beta-amiloide se juntam e formam oligômeros [cadeias longas de moléculas] que destroem as conexões entre os neurônios, as chamadas sinapses. É o início da doença.
PB – O senhor poderia fazer uma comparação?
Bertolucci – O funcionamento é mais ou menos como os gafanhotos em uma lavoura. O inseto, no caso, tem uma função ecológica e em pequena quantidade não representa problema. Mas, quando se juntam muitos gafanhotos, eles passam a devorar a plantação. A lavoura representa as sinapses, e os oligômeros seriam como nuvens de gafanhotos que atacam as plantas. Na doença de Alzheimer, a perda de sinapses não é total e instantânea. Como o cérebro tem uma reserva, a pessoa atravessa um período longo, de anos, perdendo, sem notar. A doença vai silenciosamente avançando. Quando as sinapses caem abaixo de um certo patamar, começam os lapsos de memória. É o início da fase prodrômica, em que a pessoa ainda continua capaz de fazer as atividades que desempenhava, mas precisa se esforçar mais.
PB – Alzheimer pode ser confundida com outras doenças?
Bertolucci – Com várias, e vou logo citando como exemplo a depressão. Quando se fala em depressão, todo mundo pensa numa pessoa chorando, jogada na cama. Para o idoso, isso frequentemente não é verdade. Pode ser muito mais sutil: ele pode ficar apenas mais parado, menos ativo. E a depressão pode gerar dificuldade de memorização, já que o idoso presta menos atenção e tem menos velocidade de processamento.
PB – É fato que mulheres têm mais chances de desenvolver Alzheimer do que os homens?
Bertolucci – Não. A diferença de incidência entre homens e mulheres é muito pequena ou quase inexistente. É uma doença ligada ao envelhecimento. Existem problemas de saúde que não causam Alzheimer, mas podem contribuir para antecipar o aparecimento da doença, casos da hipertensão, do alcoolismo e da diabetes. Esses fatores de risco são prevalentes entre os homens. Mas, quando controlados, não há diferença entre homens e mulheres.
PB – A dedicação a atividades intelectuais evita o aparecimento de Alzheimer?
Bertolucci – O maior fator de risco é a inatividade intelectual. Por quê? A atividade intelectual produz sinapses. Se você tem mais sinapses para perder, você vai precisar “perder mais cérebro” antes de começar a ter algum problema. Outro fator de risco importante é a inatividade física. A atividade física regular estimula uma enzima que inibe em parte o acúmulo da beta-amiloide. A atividade física regular não evita a doença de Alzheimer, mas adia.
PB – A Abraz estima que exista 1,2 milhão de pessoas com Alzheimer no Brasil – a maioria sem diagnóstico conclusivo e sem acompanhamento adequado. Faltam políticas públicas para ampliar o tratamento à doença?
Bertolucci – Isso não é exclusividade do Brasil. Nos Estados Unidos, metade das pessoas com doença de Alzheimer não tem diagnóstico, mas aqui, é claro, esse número é maior. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que São Paulo é o estado mais bem posicionado nesse aspecto e onde, ao tempo da pesquisa, 22% dos possíveis candidatos à doença recebiam tratamento na rede pública. E teve o exemplo de um estado em que o índice era de 1%, ou seja, a doença é largamente subnotificada. É preciso avançar em duas direções. A primeira é treinar profissionais da área da saúde para suspeitar da doença. A segunda é esclarecer a população em geral que, no processo normal de envelhecimento, a memória de um idoso até pode ficar mais lenta, mas isso não quer dizer que ele a perderá totalmente. Muitas pessoas ainda confundem isso, por razões culturais.
PB – O Sistema Único de Saúde [SUS], que atende a esmagadora maioria da população brasileira, está preparado para lidar com a doença?
Bertolucci – Não está. Há um problema com o SUS. Era prevista a criação de Centros de Referência em Assistência à Saúde do Idoso. Não era só para doença de Alzheimer, mas para atendimento geral. Nesses centros, haveria geriatria, neurologia, psiquiatria, fisioterapia entre outras especialidades. Inicialmente, estavam previstas 74 unidades desse tipo no país. Na época, fiz um cálculo do número de pessoas que se imaginava que tivessem Alzheimer no Brasil e dividi por 74, supondo uma distribuição uniforme de idosos. Por esse cálculo, se cada centro atendesse 40 idosos por dia, de segunda a sexta-feira, sem feriados, um paciente teria direito de ir até lá apenas uma vez ao ano. Então, 74 era um número muito insuficiente. Porém, mais grave do que isso, é o fato de que esses centros não saíram do papel conforme o previsto. [Portaria 702, de 2002, do Ministério da Saúde]
PB – Como se dá o atendimento ao idoso com Alzheimer?
Bertolucci – Pensando em um 1,2 milhão de brasileiros com a doença, haja Centro de Referência para idoso! Aquela previsão era utópica. O SUS é hierárquico: nível primário, secundário e terciário. Um Centro de Referência seria secundário. Mas é necessário treinar o nível primário para resolver os quadros mais simples. O que acontece hoje é que os poucos centros que atendem pessoas com demência da doença de Alzheimer estão sobrecarregados porque os profissionais dos centros primários, tão logo fazem o diagnóstico, encaminham o paciente. A dureza é que não há centro especializado para todo mundo.
PB – Existem centros públicos especializados no tratamento de Alzheimer?
Bertolucci – Pouquíssimos. Na rede pública da cidade de São Paulo, há um aqui no hospital da Unifesp, um no Hospital das Clínicas, um na Santa Casa e um no Hospital Santa Marcelina. Na área de abrangência da Unifesp, moram 3 milhões de pessoas, cerca de 400 mil idosos. Supondo que 10% tenham demência, o que é um número factível, existiria a “módica” quantidade de 40 mil idosos com Alzheimer para atendimento em um único centro especializado.
PB – Há uma década, o SUS distribui gratuitamente o medicamento genérico Rivastigmina, que reduz o ritmo de evolução da demência da doença de Alzheimer. Desde 2011, o remédio é produzido por um laboratório público – o Instituto Vital Brazil, do Rio de Janeiro. Segundo o governo, a produção própria baixou o custo em 50%. Como o senhor avalia essa política?
Bertolucci – Isso lembra bastante o problema do coquetel para aids, em torno do qual se chegou a uma boa negociação, envolvendo quebra de patentes de medicamentos. A produção de Rivastigmina pelo Instituo Vital Brazil é interessante. Mas o que eu não acho bom é o controle sobre a distribuição. Existem muitas pessoas que não têm demência da doença de Alzheimer usando a substância, só porque se queixaram de falta de memória e porque o acesso aos medicamentos é gratuito – apesar de toda a sociedade pagar por isso. Assim como existem pacientes em uma fase avançada, em que a medicação não fará nenhuma diferença, e que continuam usando. Então, é ótimo que se fabrique, mas não é nada bom o desperdício na indicação.
PB – Até recentemente, as pesquisas científicas sobre a doença de Alzheimer estavam estagnadas. Por quê?
Bertolucci – O cérebro de uma pessoa com Alzheimer é cheio de placas senis. Placa senil é a compactação da proteína beta-amiloide. Nos anos 1990, houve uma grande badalação em torno de uma vacina – que, na realidade, não era uma vacina, mas uma imunoterapia. Esse tratamento consistia em administrar anticorpos que combatiam a beta-amiloide. Então, publicaram um estudo, já na década de 2000, sobre uma mulher que padecia de demência grave, mas que tinha pouquíssimas placas senis no cérebro e que elas haviam sido retiradas pela imunoterapia. De fato, ela não tinha nenhuma placa. No entanto, ela não havia melhorado em nada, clinicamente falando, porque as sinapses já estavam comprometidas. Em outras palavras, as pesquisas travaram porque se concentraram nos eventos terminais: a formação das placas senis. Isso não é o essencial. O essencial é compreender por que se desenvolve a doença.
PB – É possível fazer um paralelo com o colesterol, que vai se acumulando ao ponto de estrangular as artérias?
Bertolucci – É parecido no sentido de que, na artéria, quanto maior a placa, maior a chance de um infarto ou de um acidente vascular cerebral (AVC). A placa na artéria, enquanto não entupir, não produz estrago. Mas é bom retirá-la ou evitar que ela cresça. Na doença de Alzheimer, a placa é um evento terminal, o estrago já aconteceu. A placa é uma consequência e não a causa. Por isso as pesquisas travaram. O grande avanço foi perceber que a causa é justamente a formação de oligômeros. É nesse ponto que as pesquisas devem atuar. De fato, as novas medicações são em cima disso. A melhor medicação possível – não existe chance de isso acontecer nesse momento, mas pode ser que um dia ocorra – seria aquela que inibisse a formação de oligômeros. Porque o ser humano precisa de beta-amiloide, mas não na quantidade que se manifesta na doença de Alzheimer. A questão é dispersar a nuvem de gafanhotos. Um só não vai acabar com a lavoura.
PB – Não existem medicamentos que impeçam a conversão da fase prodrômica para a demência?
Bertolucci – Não. E num futuro próximo não vai aparecer nenhum. A Rivastigmina prolonga a independência da pessoa. A doença vai progredir, mas se o paciente responder à medicação vai manter uma relativa autonomia por mais tempo. Quem conseguir uma medicação que evite a conversão da fase prodrômica para a da demência pode pedir o que quiser pelo produto porque vai ter muita demanda.
PB – Alguns pesquisadores brasileiros estão na vanguarda dos estudos sobre a doença de Alzheimer. Dentre eles, destaca-se um grupo da Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. Quais são as novidades abertas por esses estudos? Elas trazem boas perspectivas de tratamento?
Bertolucci – O que aconteceu foi a demonstração de fatos que já se imaginavam. Primeiro, que a doença de Alzheimer tem uma longa fase silenciosa. Em segundo lugar, que ela tem fatores de risco identificáveis. E, em terceiro, que o acúmulo de beta-amiloide é só a reta final. Quanto mais se pesquisa, mais evidente fica que há múltiplos fatores de risco e que há diferentes perfis genéticos que facilitam o aparecimento da doença. O que esse grupo do Rio de Janeiro fez foi identificar um modelo na gênese da proteína que pode levar a uma outra abordagem de tratamento. Mas isso não é breve. Pode demorar ou nunca chegar.
PB – Que outra abordagem de tratamento?
Bertolucci – No sentido de se fazer uma prevenção ainda mais precoce da progressão da doença, ainda na fase prodrômica. Mas não adianta nada se não existe um sistema de saúde capaz de fazer o diagnóstico nessa fase.
PB – Tecnicamente falando, é possível falar de cura para a doença de Alzheimer? Em caso positivo, estamos muito distantes?
Bertolucci – Nesse momento, não existe nenhuma perspectiva. Essa é uma doença multifatorial. Existem dois grandes grupos de fatores: os genéticos e os ambientais. Há casos de gêmeos idênticos, que são clones do ponto de vista genético, em que um desenvolve a doença e o outro não. Então, pode-se pensar: a doença não é genética, porque senão os dois teriam. Por outro lado, existem formas raras de Alzheimer em que, se a pessoa tiver a mutação, ela vai ter a doença com certeza. Essa é 100% genética. Mas, para a maior parte dos casos, valem as duas coisas: o ambiente e a genética. Recentemente, constatou-se no Reino Unido e na Escandinávia que a prevalência da doença de Alzheimer estava abaixo do esperado. Não por coincidência, isso aconteceu em áreas em que havia ocorrido um esforço de longo prazo de prevenção de doenças cardíacas e vasculares, como infarto e AVC. Como foi feita a prevenção? Mais [campanhas] de atividade física, de combate ao tabagismo, de controle de peso, da diabetes e de hipertensão. Tudo isso são fatores de risco para Alzheimer. Ou seja, nesses países, atiraram no que viram e acertaram no que não viram. Fala-se muito em medicação, mas pode ser que a solução não seja só medicar, mas a promoção de um estilo de vida saudável. Ou seja, se você tiver uma vida sadia, a chance de desenvolver várias doenças diminui, inclusive a demência de Alzheimer.