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É um pássaro? É um avião?

Águia da Portela: voando com a ajuda de um VANT de 4,5 quilos/ Foto: Antonio Scorza/Folhapress
Águia da Portela: voando com a ajuda de um VANT de 4,5 quilos/ Foto: Antonio Scorza/Folhapress

Por: EVANILDO DA SILVEIRA

Versatilidade é com eles mesmos. Pode-se dizer, para usar um velho ditado popular, que são pau para toda obra. Mas, como quase tudo na vida, eles também têm o lado bom e o mau. Podem encantar plateias num desfile de escolas de samba ou entregar pizzas ou livros em domicílio, monitorar lavouras contra pragas ou florestas contra devastações e proteger fronteiras ou, ainda, atuar na segurança em grandes cidades. Em contrapartida, podem ser usados para entregar drogas em presídios ou matar inimigos em guerras que são indesejados pelos Estados. Seja como for, para o bem e para o mal, os drones – que em inglês significa zangão, o macho das abelhas – ou veículos aéreos não tripulados (VANTs), como são mais conhecidos por aqui, vieram para ficar. Hoje, eles são produzidos em mais de 50 países, inclusive no Brasil, em vários tamanhos e formatos.

Por certo, milhões de brasileiros, principalmente os que gostam do carnaval carioca, viram pela primeira vez um drone travestido de águia, o símbolo da tradicional escola de samba Portela, que voou no sambódromo, em março deste ano, acompanhando de cima o desfile dos componentes daquela agremiação. Por baixo da fantasia de ave, havia um veículo aéreo de 4,5 quilos, semelhante a um usado pela Marinha do Brasil. “O sonho de 40 anos da Portela de ver a águia voar foi realizado em 2014”, disse Gabriel Klabim, um dos técnicos responsáveis pelo desenvolvimento do equipamento e por sua operação na Marquês de Sapucaí. O VANT tinha a capacidade de voar a 500 metros de altura, mas por medida de segurança naquela oportunidade não passou de seis metros, planando sempre sobre um cordão de isolamento.

No caso do desfile carnavalesco, o uso de um drone foi apenas uma curiosidade, mero entretenimento. As aplicações desses pequenos aviões, que podem ser equipados com vários sensores e câmeras de alta resolução, vão muito além disso. Mas, antes, vale a pena contar um pouco de sua história. Por estarem se popularizando agora e porque representam um produto com tecnologia de ponta, poderia se imaginar que seu conceito tenha surgido recentemente. Não é bem assim. Eles são mais antigos do que se pensa. Em sua dissertação de mestrado, “Integração de Veículos Aéreos Não Tripulados e Redes de Sensores Sem Fio para Aplicações Agrícolas”, Fausto Guzzo da Costa conta um pouco sobre os VANTs. O trabalho foi apresentado em março de 2013, no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), em São Carlos, no interior paulista.

Nele, Costa informa que o uso de drones foi inventado pelo sérvio Nikola Tesla (1856-1943), em 1898, quando patenteou um veículo naval que podia ser controlado de longe, sem fio, que ele chamou de “teleautomaton”. “Essa invenção iniciou o desenvolvimento de veículos autônomos ou remotamente controlados”, escreve Costa. “Porém, ainda não existia tecnologia suficiente para o desenvolvimento de VANTs, principalmente pela falta de estabilização automática, controle remoto e navegação autônoma”. Problemas que não demorariam a ser resolvidos.

Potencial amplo

Ainda segundo Costa, em 1909, o inventor e empreendedor americano Elmer Ambrose Sperry (1860-1930) estava trabalhando com seu compatriota Peter Cooper Hewitt (1861-1921), engenheiro e também inventor, no aprimoramento de giroscópios para uso marítimo. Ele resolveu então usar esse dispositivo em aviões, “com o intuito de dar segurança ao piloto caso houvesse desorientação mecânica da aeronave, informando-o de sua real posição”. Foi um achado. “Com isso, Sperry inconscientemente resolveu o problema de estabilização automática para o uso em VANTs”, diz Costa, em sua dissertação.

Em 1915, ele continua, Hewitt reconheceu o potencial dos dispositivos de Sperry e sugeriu a construção de uma bomba voadora proposta por Tesla. “Em poucos meses, o exército norte-americano entrou com apoio no projeto e, em novembro daquele ano, o torpedo aéreo, chamado de Hewitt-Sperry Automatic Airplane, voou 50 quilômetros e atingiu o alvo”, conta Costa. Estava descoberto o potencial militar dos veículos aéreos não tripulados, que desde então não pararam de evoluir e serem aperfeiçoados. Deixaram de ser brinquedos e se transformaram em armas letais. Que o diga a força aérea síria, uma das primeiras vítimas de um ataque de drones, lançado por Israel, em 1982.

Não é apenas transportando armas, entretanto, que eles têm serventia. “O potencial de uso de VANTs é amplo, com muitas iniciativas privadas, acadêmicas e militares”, diz o pesquisador e professor João Batista Camargo Júnior, do Grupo de Análise de Segurança (GAS) da Escola Politécnica da USP (Poli-USP). Ele tem atuado em pesquisas relacionadas aos desafios que esses veículos geram, quando se deseja inseri-los no espaço aéreo compartilhado com as demais aeronaves tripuladas ou sobrevoar áreas povoadas. “O uso para vigilância é o mais comum para a demanda militar e governamental”, explica. “A Polícia Federal (PF), por exemplo, possui uma equipe de vigilância utilizando drones na fronteira entre Argentina e Paraguai”.

Camargo se refere ao fato de a PF ter um VANT, comprado em 2010 da Israel Aerospace Industries (IAI), que hoje tem subsidiária no Brasil, por cerca R$ 80 milhões. Não é um aparelho qualquer. “O equipamento da Polícia Federal usa alta tecnologia e é uma ferramenta estratégica para vigilância das fronteiras e o combate a ilícitos transnacionais”, diz o órgão em uma nota, publicada em seu site em 27 de março deste ano. “Controlada de forma remota a partir de bases em terra, a aeronave é capaz de voar 37 horas ininterruptas, cobrindo uma área de mais de mil quilômetros quadrados. O equipamento pode fotografar e filmar pessoas ou objetos no solo de uma altura de até 30 mil pés (10 km), sem perder a nitidez, entre outras funções”.

A nota serviu para informar que a PF conseguiu, com o uso do drone, prender naquele dia o traficante conhecido como Menor P, chefe do tráfico de 11 favelas do Complexo da Maré, em um apartamento em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. Para chegar ao preso, durante a investigação, a PF utilizou o VANT para mapear o local e acompanhar os deslocamentos do infrator por seu território. Antes disso, o avião robótico já havia sido usado com sucesso, numa operação sigilosa contra o tráfico de drogas e o contrabando de armas, na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, seguindo uma embarcação suspeita e prendendo os criminosos. Tudo isso, a um custo operacional até dez vezes menor que o de um helicóptero tripulado.

Observando a lavoura

O drones poderão ainda ser empregados para aumentar a segurança durante a as Olimpíadas de 2016. Pensando nisso, a Força Aérea Brasileira (FAB) comprou recentemente um modelo Hermes 900, fabricado pela israelense Elbit Systems, representada no Brasil pela AEL Sistemas, que pesa 1.180 quilos e pode voar por 30 horas a até 9 mil metros de altitude. Já adotado pelo Chile, Colômbia e México, o aparelho é equipado com um sistema chamado “SkEye”, capaz de receber e operar um conjunto de dez câmeras de alta resolução, que tornam possível a vigilância de uma grande região, detectando vários alvos e suas posições ao mesmo tempo.

O uso desses veículos não tripulados pelo Brasil não se limita, no entanto, à segurança pública. Na verdade, o mercado para essas aeronaves vem crescendo no país, transformando-o num centro emergente dessa tecnologia. Segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), existiam em 2013 pelo menos 12 empresas instaladas no país, produzindo os pequenos aviões para diversas aplicações. “Para uso civil, por exemplo, há empresas de monitoramento agrícola que oferecem serviços para o levantamento de produtividade de grandes áreas e plantações”, informa o pesquisador Camargo.

A Abimde tem, inclusive, números sobre isso. “Estudos de nossas associadas demonstram que, com o imageamento aéreo a baixo custo, é possível aumentar em até 20% a produtividade da cultura de cana-de-açúcar, assim como de outros produtos agrícolas”, destaca Antonio Oliveira Castro, coordenador do Comitê de Veículos Não Tripulados (VNT) da entidade. “Não é preciso ressaltar o impacto que isso pode ter no agronegócio, uma de nossas principais atividades econômicas, tanto para o mercado interno, quanto para as exportações”. Tem mais: de acordo com Castro, há outras aplicações potencias dos drones igualmente importantes nos segmentos de mineração, controle de grandes obras de infraestrutura, segurança pública e defesa civil, na supervisão dos milhares de quilômetros de linhas de transmissão de energia elétrica, assim como nas linhas de oleodutos e tantas outras.

Nesses dois últimos casos, podem ser citados os exemplos da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) e da Petrobras. A primeira já investiu R$ 4 milhões na construção de um drone visando diminuir os custos de inspeção de redes de transmissão de energia, hoje feita com helicópteros. O VANT, ainda na fase de protótipo, poderá voar até 100 quilômetros por hora, a 150 metros de altura, para obter imagens detalhadas das linhas de transmissão. A segunda celebrou uma parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), para o desenvolvimento de aeronaves a fim de fiscalizar mais de 14 mil quilômetros de oleodutos, trabalho que hoje é realizado a pé pelos técnicos da companhia.

Devido a sua capacidade e facilidade de operação, os drones também têm atraído o interesse de criminosos. Informação veiculada pelo jornal “Folha de S. Paulo”, no início de março deste ano, mostrou que um pequeno VANT havia sobrevoado o pátio do Centro de Detenção Provisória 1 (CDP), em São José dos Campos, a 90 quilômetros de São Paulo, deixando cair um pacote com 250 gramas de cocaína. Os agentes penitenciários conseguiram impedir, no entanto, que a droga chegasse às mãos dos presos. Um caso similar teria ocorrido, no ano passado, em uma cadeia de Québec, no Canadá.

Ataques preventivos

Em 2013, Jeff Bezos, fundador da Amazon, a maior loja virtual do mundo, anunciou que num futuro não muito distante a empresa poderá empregar drones para fazer entregas. Em Dubai, o governo pretende fazer algo semelhante, usando VANTs para encaminhar documentos a seus cidadãos. No Reino Unido, a marca americana de pizzas Domino’s se adiantou, fazendo entregas de seus produtos lançando mão de um pequeno veículo aéreo não tripulado. O projeto está em fase experimental.

Apesar dos avanços do uso civil dos drones, é no campo militar que eles prosperam, principalmente nas mãos das grandes potências, Estados Unidos à frente. No artigo “Veículos Autônomos e Defesa Nacional: os Riscos e os Desafios em um Mundo em Transformação”, publicado em janeiro deste ano pela revista “Computação Brasil”, da Sociedade Brasileira de Computação, o cientista político Luís Alexandre Fuccille, professor da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), diz que os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que derrubaram as torres gêmeas do World Trade Center, recrudesceram naquele país a preocupação com a defesa de suas fronteiras e deram força à estratégia de uso dos chamados ataques preventivos.

É neste contexto, segundo Fuccille, que, emerge com força o debate sobre o uso de veículos autônomos em defesa nacional – em especial os VANTs, os veículos terrestres autônomos (VTAs) e os veículos náuticos autônomos (VNAs). De número significativo já no governo George Walker Bush (2001-2009) – em especial nos conflitos do Afeganistão e Iraque –, “as operações militares empregando veículos autônomos ganharam força na administração Barack Hussein Obama, ironicamente o presidente vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2009, mesmo ano do início de seu mandato”, escreveu o professor da Unesp.

Hoje, sabe-se que os Estados Unidos têm cerca de 8 mil drones em operação, muitos dos quais usados para atacar alvos suspeitos de terrorismo em países como Afeganistão, Iêmen, Paquistão e Somália, além de monitorar outras nações. O grande problema que preocupa as organizações de defesa dos direitos humanos são os eufemisticamente chamados “efeitos colaterais”, ou seja, o assassinato sem julgamento de civis inocentes. Segundo a Fundação Nova América, com sede em Washington, o país de Obama já realizou mais de 350 ataques com VANTs desde 2004, a maioria durante o governo atual, com um número de mortos que pode chegar a 3 mil, dos quais perto de 300 civis.

Não é à toa, portanto, que esses eventos estejam na mira até da Organização das Nações Unidas (ONU), que principiou, em 2013, uma investigação sobre as vítimas civis de ataques de drones, com o objetivo de identificar eventuais casos de “execuções extrajudiciais”. De acordo com Ben Emmerson, relator especial da investigação, “o aumento exponencial do uso da tecnologia desses aparelhos em diversas situações representa um verdadeiro desafio para o direito internacional”.

Não são apenas os “terroristas internacionais” que devem temer os VANTs americanos. Os próprios conterrâneos de Obama têm razões de sobra para ter medo das aeronaves sem piloto. Pelo menos é o que diz John Horgan, professor do Stevens Institute of Technology, no artigo “Motivos para Ter Muito Medo de Drones”, publicado na revista “Scientific American Brasil”. “A administração já executou o assassinato por drone de pelo menos dois cidadãos americanos, os supostos militantes muçulmanos Anwar al-Awlaki e Samir Khan, mortos no Iêmen em 2011”, diz.

Três categorias

De acordo com Horgan, a Força Aérea Americana produziu uma animação extraordinariamente assustadora (http://migre.me/djZWK) exaltando possíveis aplicações dos “micro veículos aéreos” (MAV, em inglês). “O narrador elogia os ‘discretos, onipresentes, letais’ enquanto o vídeo mostra drones alados saindo da barriga de um avião e descendo sobre uma cidade, onde perseguem e matam um suspeito”, diz Horgan. As Forças Armadas dos Estados Unidos já utilizaram um deles, chamado de “Switchblade”, que tem asas dobráveis e pode ser guardado em um tubo pouco maior que um pão italiano. O aparelho carrega uma carga do tamanho de uma granada.

Por essas e outras, os especialistas e pessoas envolvidas com a produção, comercialização e estudo dos VANTs defendem que é preciso regulamentar o uso e operação dessas miniaturas de aviões. “Um dos principais desafios é a questão de segurança”, observa José Carlos Maldonado, mestre em Engenharia e Tecnologias Espaciais e diretor do ICMC-USP. “Não se deve colocar uma aeronave não tripulada para voar sem as condições necessárias para isso”. Ele afirma que um outro pormenor diz respeito à certificação dos pequenos aviões pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), principalmente quanto aos requisitos não funcionais de disponibilidade, confiabilidade e segurança crítica. “Estamos no início, mas a preocupação com a segurança deve ficar sempre em primeiro lugar”, adverte.

De acordo com o pesquisador Camargo, da USP, as implicações legais do uso de drones são imensas. “Um desafio constante de empresas que querem operar com esses aparelhos é obter a aprovação de seguradoras para suas aeronaves experimentais”, explica. Ele comenta que, quando pensamos que um avião não tripulado pode cair e, consequentemente, ferir alguém, “é compreensível que as seguradoras tenham receio de se envolver”. A razão principal disso vem justamente da ausência de legislação específica. Por isso, o Brasil, segundo Camargo, que é membro da Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci), está participando de reuniões com outras nações visando definir leis e regras para o uso de VANTs no domínio civil.

Nos Estados Unidos o uso comercial dos drones é simplesmente proibido. No Brasil ainda não há uma definição, embora eles venham realizando algumas operações experimentais, depois de aprovados pela Anac. Para isso a entidade emitiu, em outubro de 2012, o Certificado de Autorização de Voo Experimental (Cave), que dá a empresas de drones a liberdade de realizarem voos na área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e treinamento de pilotos. Elas não podem operar voos comerciais, no entanto.

No final de 2013, a Anac apresentou uma proposta de regulamentação, que se acha em fase de discussão pública. Ela prevê a classificação dos VANTs em três categorias: Classe I (mais de 150 kg), Classe II (de 25 kg a 150 kg) e Classe III (de 0 kg a 25 kg). As regras mais flexíveis são para esta última, cujos drones poderão ser operados por qualquer indivíduo com treinamento do fabricante e voar a uma altura máxima de 120 metros, desde que as pessoas sob o local do voo sejam previamente avisadas. Em nenhuma daquelas classes as operações poderão ocorrer a menos de 5 quilômetros de aeroportos, e para pilotar um VANT longe do alcance de visão será necessário obter licença e habilitação da Agência Nacional de Aviação Civil.

Como diz Fuccille, os veículos autônomos vieram para ficar e não se pode girar para trás a roda da história. Mas, ele ressalva, as máquinas não podem substituir as decisões humanas, sendo dotadas de meios para identificar, perseguir e eliminar o que julgam “ameaças próximas”. Em tempos de aceleradas transformações geopolíticas no sistema internacional e sem uma regulamentação normativo-legal democrática de amplo espectro – sob os auspícios da ONU –, “os veículos autônomos, instrumentos capazes de sintetizar o sonho de executar tarefas em prol da humanidade sem colocar vidas em risco, podem se transformar em um enorme pesadelo para essa mesma civilização”, alerta Fuccille.