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Alcides Villaça

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti



Dona Laurinda


O pichichê. O guarda-casaca. A cristaleira. O étagère. O guarda-comida. A velha dona Laurinda refaz a cada manhã o caminho por esses nomes, por esses móveis, no passinho lento apoiado pela bengala. Do quarto à cozinha há o longo percurso pelo casarão, que ela cumpre a cada dia com o gosto renovado das descobertas.

Há muitos anos, quando enviuvou, decidiu ficar na casa, regê-la sozinha. Tempos depois, velhinha, faltando-lhe forças e memória, não quis saber de ir morar com filho, levando a renda do casarão alugado ou vendido. A solução encontrada foi ir morar com ela a família do filho caçula, dodói seu, empregado num escritório de contabilidade. Os netos logo se espalharam pelas larguezas da casa e a nora acabou se conformando com o arranjo.

Prejuízo para a saúde, mesmo, apenas a perna mal comportada, difícil de dobrar, chorosa no apoio, pedindo bengala. E havia quem achasse grave o branco da memória, revelado num dia em que a velha, em reunião festiva da família, mostrou desconhecer a todos, apresentando-se a cada um entre cerimoniosa e alegrinha, querendo saber os nomes “dessas pessoas bonitas que vieram... de onde?”

Atendida pela nora ou por um neto, ela cumpre o rito de passeios pela casa, antes do longo estágio matinal na preguiçosa da varanda, antes do seu almoço de passarinho, dos cochilos vespertinos, da incompreensível TV à noite, para a qual fica olhando sem atenção. Nada a entretém mais do que abrir as gavetas da casa, sempre se surpreendendo com tantos objetos fascinantes. Fecha e abre a tesoura grande, alisa com carinho a superfície acetinada do álbum, mira-se na bandeja de metal, espalha e torna a guardar os badulaques de uma caixa, desenrola e enrola fios e fitas. Investiga a cada vez a velha escova, aproveitando para dar um jeito no cabelo diante do espelho na parede. Experimenta sempre, com vagar, os brincos, os anéis e pulseiras do estojo revestido de pelica.

Mas o prazer maior é mesmo acomodar-se na preguiçosa e deixar o olhar perder-se na paisagem da rua vista do alpendre, passeando-o pelas cercanias, pelas casas espaçadas na encosta e chegando ao fim do morro, tudo se fechando na fila de altos eucaliptos, onde a cidadezinha acaba. As pessoas que passam, algumas lhe acenando, uma bicicleta, um carro, uns meninos, um cachorro, uma carroça, tudo é surpreendente e chega sem aviso: tantas riquezas neste mundo... Quando o neto chama para o almoço olha-o com curiosidade e carinho, passa a mão pela cabecinha, deixa que ele a ajude a levantar-se. Apoia-se na bengala e segue até a sala, investigando as plantas penduradas, os coloridos pratos de parede.

Ao acordar cada manhã surpreende-se invariavelmente com tudo o que a cerca, com a luz filtrada pelas venezianas, com seus reflexos no assoalho e no espelho da penteadeira. Não lhe desgosta o cheiro de cera que vem do chão, nem o canto da passarinhada, que ouve surdamente. Levanta-se intrigada com o que haverá além daquela porta, que lhe custa atingir com as primeiras passadas, apoiada na fiel bengala que ficou junto à cama. Uma vez aberta a porta, dá com a sala, às vezes com pessoas, para quem sorri amigável e interrogativa.

Laurinda nunca foi pessoa mais doce, antes de passar a esquecer e a não lembrar, inaugurando-se a si e ao mundo a cada manhã, cheia de vida, aberta a todas as revelações. Tudo o que lhe sobrou da memória é a sensação, vagamente familiar e constante, de que cada dia é sempre novo, traz surpresas, e a gente acorda é para ir descobrindo tudo aos poucos, o dia todo, até a hora de ir dormir outra vez.

O filho e a nora incomodam-se um pouco, é verdade, com a canseira que acabam dando essas descobertas diárias, esses distanciamentos da velha, temperados por uma alegria que se mostra a toda hora, sobretudo a cada manhã. A velha não tem queixas nem perturbações, é calma e cordata, reage a tudo com aprovação feliz e serena. Quando ameaçam atropelá-la os gritos ou as correrias das crianças ela considera tudo um novo espetáculo, e se diverte mais, e solta umas tímidas interjeições.
Há muito não conversa, propriamente. No máximo formula uma pergunta casual ou um comentário curto. Ouve com atenção, parece entender tudo o que lhe falam, acata, obedece, e há uma tal firmeza em seu silêncio e em seu olhar que ninguém mais insiste em que diga alguma coisa. Todos se dão por bem aceitos, não tendo que fazer mais que se apresentarem a ela a cada dia, dizendo os nomes que esquecerá logo em seguida.

O que incomoda o filho, que se lembra da mãe moça, ativa e faladeira, enérgica, cheia de providências e imprevistos, ao lado do marido seco e ensimesmado, que morreu tão cedo, o que o incomoda mesmo é esse abismo novo que ela encontrou na alta velhice, sobre o qual paira remoçada e ingênua, toda manhã, renascendo com grande satisfação, mapeando lentamente os cômodos da casa, os cantinhos, os utensílios. O que o incomoda é sentir nela o apego nenhum a nada do passado, a nenhuma expectativa, e aquela facilidade para acolher só o instante dentro do instante, como quem sabe inscrever numa folha caracteres sem compromisso com palavra ou frase, só pelo gosto de bordar cada traço por vez.

Inútil (houve quem tentasse) querer arrancar de dona Laurinda uma opinião sobre o que fosse, um julgamento seu, uma preferência. Aí mesmo é que seus olhos parecem carregar-se de surpresa, refratando a pergunta intacta. Aí é que a velha libera de vez o olhar para a samambaia que cai do teto, para a mosca que pousou na louça, para o horizonte de eucaliptos, recolhendo de tudo um prazer novo e transparente.

Numa noite o primo médico expôs seu veredito durante o jantar. Falou de esclerose, dos desarranjos naturais da velhice, das manias, das teimosias, das compensações, mas de fato ninguém reconheceu dona Laurinda nessas palavras. Ele as ia dizendo sem pejo na presença da velha que, na cabeceira da mesa, também o ouvia com muito interesse, com o sorriso amável de sempre, como quem ouve música. A voz do médico, alta, grave e bonita, era uma canção melodiosa e bem ritmada, embalando-se em tantas modulações que levavam os pés de dona Laurinda a exercitar uns tímidos passinhos de dança sob a mesa.

Cansadinha do jantar longo, da noite esticada, ela acabou se retirando para o quarto, na companhia do neto maior. A caminho, reparou no retrato de um jovem antigo e engravatado que parecia ter sido colocado ali agora mesmo, interrogando a gente.
Dona Laurinda costuma dormir rápido. E é apenas nessas horas de sono profundo que ela experimenta, como agora, uma onda de agitações: vão-se sucedendo muitas imagens, difíceis de dar conta, entre as quais se destaca invariavelmente a de uma moça agitada na cozinha, meninos que passam correndo e desaparecem no quintal, um homem que chega e tira o chapéu, moços que dançam num salão, uns sons de sino, e flores, muitas flores, e choros de criança, e panelas luzindo sob espumas brancas, e uma dor na perna, um filme, e um casal de velhos, uma balança, um cachorro, uma canção bonita... Não fosse a leveza do último sono, já quase manhã, quem sabe dona Laurinda acordaria exausta.

Mas ela desperta sempre do mesmo jeito: aos poucos, leve, tranquila, curiosa. Os olhos interrogam o quarto na penumbra, dão com o sol filtrado nas venezianas, com a bengala apoiada no criado-mudo. Muito lentamente senta-se na cama, vê os chinelos, e escorrega para eles com cuidado. Senhora de grande paz, dá os primeiros passos pelo quarto. Investiga os móveis, distrai-se com os bibelôs, com o chapeleiro de parede ao lado do monumental guarda-casaca de madeira de lei. Vai aos poucos tomando conta desse admirável mundo novo, apreciando caprichos e detalhes que os olhos não cansam de descobrir.

E caminha sem pressa para a porta fechada, intrigada com o que haverá atrás dela. 


Alcides Villaça é, desde 2003, professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Além de colaborar em alguns dos principais jornais e revistas do país, é autor de Ondas Curtas (Cosac Naify, 2014), Viagem de Trem (Duas cidades, 1988), O Tempo e Outros Remorsos (Ática, 1975), entre outros