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O “carrocentrismo” paulistano

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti



Os problemas de mobilidade da capital paulista não são recentes: começaram na década de 1950 e agravaram-se a partir de 1970. Nos últimos anos, tem se colocado em discussão a continuidade do modelo de transporte que prioriza os carros. Até quando o “carrocentrismo” vai imperar nas vias paulistanas? O engenheiro civil e sociólogo Eduardo A. Vasconcellos e o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM) Thomás Meira analisam o assunto.


Apaixonados (cegamente) por carros, como (quase) todo brasileiro

por Thomás Antônio Burneiko Meira

Há alguns anos, uma grande empresa do ramo de combustíveis buscava legitimar a qualidade de seus produtos com a veiculação do slogan “(...) apaixonados por carros, como todo brasileiro”. Não obstante os engodos próprios do discurso publicitário, as relações passionais de grande parte da população – mas não de todos nós, é necessário frisar – para com os automóveis parece se confirmar quando vislumbramos o caso de São Paulo, a maior cidade do país.

O afeto dos paulistanos pelos carros pode ser traduzido, por exemplo, no imobilismo que caracteriza o trânsito da capital. Em um artigo de 2011, a urbanista Raquel Rolnik estimava que, devido à quantidade excessiva de veículos na malha urbana, ali, os motoristas passam, em média, 2h42min diários em congestionamentos, o que equivale a espantosos 27 dias anuais praticamente desperdiçados em situações de tráfego improdutivo. Embora imobilizados e adoecidos pela poluição automobilística, alguns setores da população ainda se mostram resistentes a ações capazes de amenizar as mazelas do “carrocentrismo”, que acometem a todos, motoristas, pedestres e ciclistas. A expansão dos chamados “corredores de ônibus” ou a criação e disseminação das infraestruturas cicloviárias, por exemplo, não são unânimes, já que as medidas, embora potencialmente benéficas para o conjunto da população, limitariam o espaço viário destinado aos citadinos mais apaixonados, indispostos a se divorciarem de seus carros.

Possivelmente, hoje, o comportamento do paulistano reflita uma tendência macroeconômica mais geral, que caracterizou o mundo capitalista durante quase todo o século 20. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e meados da década de 1970, após um período crítico, marcado pela Grande Depressão e por duas “guerras totais”, as economias modernas centrais se (re)estruturaram a partir de um modelo produtivo, chamado “fordista”, criado no seio da indústria automobilística norte-americana, que foi exportado para nações europeias e, mais tardiamente, com algumas modificações, para o Terceiro Mundo. De modo geral, mediante uma combinação entre inovações técnico-organizacionais – que permitiam a produção em série –, aumento dos ganhos salariais e políticas de bem-estar social, a partir de 1945, criou-se, nos contextos economicamente mais avançados, um ciclo de crescimento (temporariamente) sustentado, no qual as populações possuíam renda e subsídios suficientes para o consumo dos próprios bens que produziam.

Após 30 anos de expansão, agora com os mercados saturados pela imensa quantidade de produtos padronizados e duráveis, o modelo fordista foi refém de sua própria rigidez. Mais uma vez, foi o ramo automobilístico que, por volta de 1975, catalisou as alternativas necessárias para a retomada do crescimento. Inspiradas nas estratégias praticadas pela indústria de carros japonesa, as corporações capitalistas adotaram um modelo mais “flexível” de produção, que combinava inovações constantes e pequenas séries de bens, lançadas continuamente no mercado sob a referência das próprias demandas dos consumidores, tal como ocorre, hoje, com os concorridíssimos telefones celulares, notebooks e tablets. Parece razoável, portanto, que, neste último século, a indústria automobilística tenha ocupado uma posição estratégica na dinâmica expansiva do capitalismo, já que, em momentos-chave, nos quais o modo de produção esteve em xeque, foram, sobretudo, dali que se irradiaram soluções eficazes para conjunturas notadamente desfavoráveis.

Tratando-se da região mais industrializada do país, podemos supor que a metrópole paulistana experimenta, atualmente, de modo amplificado, as heranças de uma ideologia que, por décadas, em nome da (re)estruturação econômica, incentivou o uso exacerbado de automotores. Mediante tais demandas, dentre as consequências desse processo encontra-se o fortalecimento de uma matriz de planejamento urbano demasiadamente favorável à circulação motorizada, mas que, em contrapartida, imprimiu um caráter meramente residual a outros personagens do trânsito, como pedestres e ciclistas. Contudo, apesar do atual padrão de deslocamento acelerar rumo à falência, o custo para a transposição de certas estruturas – como avenidas, autopistas, viadutos, marginais etc. – é bastante alto, resultando na perenidade da “paisagem automobilística”, que, em toda sua monumentalidade, parece estimular a falsa naturalização de uma cidade que, inevitavelmente, sempre estará ali para ser usufruída na escala do automóvel.     

Se o trânsito da capital paulista responde a tendências macroeconômicas e urbanísticas globais, a conduta de grande parcela de seus personagens evidencia uma paixão característica por carros porque, por outro lado, reflete e reproduz especificidades histórico-culturais do contexto brasileiro. Ao contrário da Europa, onde os subsídios estatais do período fordista se mostraram bastante sólidos, dotando várias nações com uma tradição igualitária, nossa industrialização ocorreu aos moldes de um fordismo que privilegiou apenas a incorporação de novas tecnologias para a produção em massa, em detrimento da equidade social. Mediante essa rápida comparação, pondera-se que o automóvel possa ter assumido uma carga simbólica distinta em ambos os cenários, gerando, em nosso caso, vínculos afetivos demasiadamente fortes por parte de seus motoristas.

De modo mais detalhado, em algumas das nações europeias conhecidas pela grande adesão da população aos modais coletivos, a mobilidade foi considerada, por seus welfare states, como fator fundamental para a conquista de uma sociedade mais justa. No Brasil, ao passo que a modernização econômica reproduziu as desigualdades sociais, com esse processo, parece ter ocorrido uma cisão entre grande parte da população, excluída da dinâmica de consumo e relegada ao transporte público, e a formação de uma elite motorizada. Em um quadro no qual o automóvel foi simbolicamente associado ao estilo de vida das camadas mais favorecidas, a posse, o uso e a paixão pelos carros, portanto, se constitui como elemento capaz de coroar sucesso individual, ou de causar essa impressão. Sob essa lógica, São Paulo se constitui como um ambiente “rodoviarista” compartilhado por quase 12 milhões de habitantes, no qual o anonimato, ainda que relativo, é potencializado e transforma o espaço público em palco privilegiado para o desfile e o reconhecimento da distinção automobilística.

Se esse diagnóstico estiver correto, apesar de a malha urbana paulistana não comportar mais o crescimento da frota veicular, a renúncia ao carro também é dificultada porque significa a abdicação de uma posição social que, em um país historicamente excludente, para muitos, só pôde ser alcançada a duras penas. Os automóveis parecem, então, correspondentes à própria biografia de seus condutores, dotando, nesses termos, a paixão dos motoristas por suas máquinas de um caráter narcísico. E é justamente uma conhecida música sobre São Paulo que nos lembra: “(...) Narciso acha feio o que não é espelho”.


“Apesar de a malha urbana paulistana não comportar mais o crescimento da frota veicular, a renúncia ao carro também é dificultada porque significa a abdicação de uma posição social que, em um país historicamente excludente, para muitos, só pôde ser alcançada a duras penas”

Thomás Meira é mestre em Antropologia Social e docente no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM)



O automóvel em São Paulo: finalmente acabou a ilusão?

por Eduardo Alcântara de Vasconcellos


Os níveis alarmantes de congestionamento verificados na cidade de São Paulo tornaram-se assunto permanente na mídia local e nacional, gerando longas discussões e debates sobre como resolver o problema. A maior parte do congestionamento é formada por automóveis, o que enseja debates acalorados. Por que isso aconteceu e quais são as soluções possíveis? 

Os problemas de circulação são antigos na cidade, tendo começado na década de 1950. Com o crescimento acelerado da população e da economia, aumentou muito a quantidade de deslocamento das pessoas (assim como nas demais grandes cidades do Brasil). Nesse momento, já ocorria um intenso debate sobre como enfrentar a situação, havendo duas posições antagônicas: a posição liderada pelo prefeito Prestes Maia – defendendo uma cidade “norte-americana”, e a posição defendida por Anhaia Mello, fundador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), de uma cidade “europeia”. Enquanto a primeira proposta defendia a construção de uma grande rede de vias de alta capacidade, para acomodar o aumento do uso de automóveis, a segunda proposta defendia uma cidade mais densa, com mistura de usos do solo e baseada mais em sistema de transporte coletivo. A proposta de Prestes Maia venceu, tendo começado a construção da cidade que hoje conhecemos. Essa transformação física veio acompanhada de decisões políticas e econômicas no plano federal, que foram criando várias formas de incentivo ao uso do automóvel. Paralelamente, o sistema de transporte público continuou precário, baseado em uma oferta precária e irregular de serviços de ônibus, de um sistema decadente de bondes e de ferrovias urbanas de má qualidade. 

Quando a crise se tornou mais aguda, na década de 1970, foi realizada pela primeira vez no Brasil a “municipalização” da gestão do trânsito, pela qual o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) repassou à prefeitura as tarefas relativas ao controle diário do trânsito. Em 1976, surgiu a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), que iniciou um grande programa de intervenções, que reorganizou totalmente a circulação na cidade. Essa reorganização privilegiou a fluidez do trânsito, mas não garantiu boas condições para o transporte público, especialmente o que servia as áreas periféricas, que cresciam rapidamente. Embora essa intervenção tenha obtido um bom resultado também na área de segurança de trânsito – São Paulo tinha chegado a ser líder mundial na quantidade de pessoas mortas no trânsito –, o resultado final foi a adaptação da cidade ao seu uso preferencial pelas pessoas que tinham automóvel: nasceu a “cidade da classe média”, na qual esses novos grupos sociais puderam construir seu estilo de vida usando intensamente o automóvel. Esse processo continuou nas décadas posteriores, tendo sido sempre apoiado por medidas econômicas e fiscais do governo federal, que facilitaram a aquisição e o uso dos automóveis. Como o sistema de transporte público permaneceu de baixa qualidade e de atendimento precário, formou-se um sistema de mobilidade insustentável, caracterizado pelas péssimas condições de circulação que hoje enfrentamos.

Em outra área da administração pública diretamente ligada ao tema – a infraestrutura de vias – houve sempre um grande investimento em novas vias, que chegou a atingir 27% do orçamento municipal no final da década de 1960. Isso estava ligado à ideia de que a solução para os congestionamentos estava na ampliação das vias. A prática revelou – assim como mostra a experiência internacional – que esta não é a solução. Os índices de congestionamento aumentaram exponencialmente, revelando a ilusão de combatê-los por meio da expansão viária e mostrando que seria muito melhor investir no aumento da oferta e do uso do transporte público.

Por que a expansão das vias não é a solução? Isso ocorre por uma questão física, de uso do espaço. O automóvel é um veículo que requer espaço para sua circulação nas vias, para que as condições de segurança sejam mantidas, como as distâncias laterais, frontal e traseira dos demais veículos. Essas distâncias aumentam quando a velocidade aumenta. Em um sistema viário com semáforos, um automóvel que circule entre 25 e 30 km/hora precisará consumir de 40 a 50 metros quadrados. Se estiver circulando em uma via expressa a 60 km/hora, o espaço necessário será bem maior. Assim, poucos automóveis são capazes de ocupar um grande espaço e o uso intensivo do veículo causa enormes congestionamentos. Isso fica ainda mais claro quando se observa que no congestionamento da tarde em São Paulo não estão presentes simultaneamente milhões de automóveis – como as pessoas pensam e como a mídia frequentemente repercute – mas cerca de 700 mil (20% da frota). Ou seja, é fisicamente impossível acomodar todos os automóveis de uma cidade grande. Nem as grandes cidades de países ricos conseguiram isso. Los Angeles, que tem a maior oferta de vias expressas do planeta, é a cidade mais congestionada dos Estados Unidos.

Outro aspecto importante diz respeito à ideia de que o automóvel é um “desejo natural” das pessoas e que seu uso tornou-se indispensável. Os desejos “naturais” das pessoas são o que a palavra diz – estão ligados à essência da vida, na forma de alimentação, abrigo, relações sociais, procriação, sendo, portanto, permanentes e válidos em qualquer sociedade, em qualquer época. Os outros “desejos” surgem em função de condições específicas vivenciadas pelas pessoas, não são “naturais” nem permanentes, podem mudar caso as condições mudem. O “desejo” de ter e usar um automóvel em uma grande cidade está ligado à necessidade de mobilidade individual quando a distância longa não permite caminhar e quando o transporte público não consegue atender às necessidades das pessoas. A decisão de usar o automóvel está ligada também ao custo relativo ante os modos alternativos: em São Paulo, usar o automóvel em um deslocamento de 10 quilômetros tem um custo para o dono semelhante ao de usar o transporte coletivo e assim o uso é intenso; nas grandes cidades europeias, usar o automóvel é muito mais caro do que usar o transporte coletivo e, portanto, os proprietários o guardam para uso noturno ou no final de semana. E por que na Europa o custo de usar o automóvel é alto? Porque a sociedade decidiu cobrar de quem quer usar este tipo de veículo o custo social e ambiental total que ele acarreta – alto consumo de espaço circulando e estacionado, acidentes, poluição do ar, ruído e produção anual de centenas de milhares de toneladas de sucata.

A história de São Paulo mostra que a soma de “vontades pessoais” de uma parte poderosa da sociedade, de posturas irresponsáveis de políticos e de decisões erradas dos governos de apoio indiscriminado ao automóvel e de abandono do transporte público levou à impossibilidade de uma circulação adequada para a maioria dos habitantes da cidade. Está mais do que na hora de repensarmos o nosso modelo de mobilidade. Precisamos reduzir o uso do automóvel, especialmente o uso que causa grande consumo de um espaço escasso, para liberá-lo ao uso do transporte coletivo, que consome muito menos energia e espaço por pessoa transportada. 


“Em São Paulo, usar o automóvel em um deslocamento de 10 quilômetros tem um custo para o dono semelhante ao de usar o transporte coletivo (...); nas grandes cidades europeias, usar o automóvel é muito mais caro do que usar o transporte coletivo”

Eduardo A. Vasconcellos é engenheiro civil e sociólogo, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É diretor do Instituto Movimento de São Paulo e assessor da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP)