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Entrevista: Archimedes Lombardi
Ao nos receber para esta entrevista em sua residência, no tradicional bairro do Ipiranga, Archimedes Lombardi conta como sua história de vida cruzou-se - muitas vezes quase que por acaso - com o cinema, sua grande paixão. Cinéfilo de carteirinha é de sua coleção particular, e de amigos próximos, os filmes exibidos semanalmente na Biblioteca Temática de Cinema Roberto Santos. Programação gratuita que procura resgatar a magia, o charme e a nostalgia das exibições em 16 mm.
Revista: Você nasceu no interior de São Paulo. Conte-nos um pouco sobre sua infância, a convivência com a família.
Archimedes: Nasci e morei na área rural entre duas cidades, Presidente Wenceslau e Santo Anastácio. Algum tempo depois de meu nascimento meus pais mudaram-se para Santo Anastácio, mas me registraram em Presidente Wenceslau.
Revista: Como era a vida rural?
Archimedes: Naquela época, devido a Companhia Estrada de Ferro Sorocabana, a região do oeste paulista estava se desenvolvendo. Doisanos antes de mudar para a zona urbana, eu frequentava uma escolinhade pau a pique. Era uma casa de madeira e a professora vinha deSanto Anastácio a dezoito quilômetros para dar aula.
Revista: O que motivou a mudança da família da área rural?
Archimedes: Bem, meu avô, que era descendente de italianos,veio para o Brasil no começo do século e tinha umas ideias geniais. Naquele tempo, a principal atividade naquela região era a lavoura. Quando minha família chegou a Santo Anastácio, meu avô já tinha uma pequena fábrica de colchões,colchões artesanais.
Revista: Seu avô, então, era um empreendedor.
Archimedes: Sabe, naquele tempo, colchão de molas era o sonho de todo mundo, mas você só os encontrava aqui em São Paulo. Para fabricar os colchões, ele ia aos pastos da região e cortava capim que usava para encher os colchões. Quando meu avô resolveu mudar-se para Presidente Prudente, disse ara meu pai “_Agora você toca a fábrica de colchões”.
Revista: Isso foi repentino.
Archimedes: Claro, meu pai sempre trabalhou na lavoura, assustou-se “_Mas eu não tenho ideia de como fazer isso!” meu avô respondeu “_Não tem problema, eu fico aqui um tempo e ensino.” A partir dai mostrou as máquinas de costura, como era o processo para comprar o tecido em São Paulo; eram rolos enormes, peças de panos, que tinham que ser desmontados, depois havia o corte, e, finalmente, enchia os colchões com capim.
Revista: A crina também era usada para encher colchões.
Archimedes: Isso mesmo, olha só! Crina como enchimento de colchão. Havia a crina animal e a vegetal que comprávamos em São Paulo. O colchão de capim vendia muito. Acho que a cada semana se produzia oitenta, cem peças. Fazíamos colchão sob medida. Você sabe, tinha gente que trazia penas de galinha para fazermos travesseiro. Aparávamos tudo direitinho e fazíamos o travesseiro de penas. Houve um tempo que começamos a fazer travesseiro de taboa. Era um trabalho artesanal. Eu tinha cerca de 12 anos nessa época.
Revista: Conte um pouco sobre Santo Anastácio.
Archimedes: Quando eu fui para Santo Anastácio, fui matriculado no grupo escolar Henrique Bertomi e me dediquei muito a estudar. Eu gostava de estudar, não faltava em uma aula. Do primeiro para o segundo ano eu passei com a melhor nota do grupo escolar, 96. Foi uma polêmica “_Pôxa, esse garoto veio do mato e já passou com a primeira nota!” Tinha gente que queria derrubar aquilo para que o filho dele tivesse a primeira nota. Veja só! Mas a professora - eu me lembro do nome dela até hoje - que se chamava Celina disse “_ Não, ele foi o melhor, ele passou, foi o melhor!”. Naquela época no grupo escolar, quem passasse com a primeira nota recebia uma homenagem no cinema local. Eu era totalmente caipira, sabe? Chegou o domingo, às nove horas. Havia outros premiados de outras classes e eu me lembro de que me deram um estojinho de lápis de cor. Ganhei um livro de Robinson Crusoé, um jogo de régua, e outras coisas. Eu estudei muito, eu me joguei de corpo e alma. De qualquer forma aconteceu que fui ajudar meu pai na fábrica de colchões, fazia as costuras dos lados, enchimentos, de tudo um pouco.
Revista: Você tem irmãos?
Archimedes: Tenho três irmãs. Lúcia, Odete e Esmeralda. Esmeralda a mais velha, faleceu há seis anos.
Revista: Conte para nós como seu primeiro encontro com o cinema, você foi convidado para fazer um pouco de tudo.
Archimedes: Ah sim! Com doze anos fui trabalhar no cinema. O gerente – seu Nicolau – me contratou para eu varrer o cinema de manhã cedo, limpar as poltronas e deixar tudo prontinho para a sessão da noite. Quando me convidou ele disse “_ Eu não posso te pagar um salário, mas você entra na hora que quiser, assiste o que quiser, traz sua família”. Eu fui gostando daquilo. Eu tinha uma carriola e todo dia ia à estação de ferro, receber os filmes. Nós recebíamos tudo em cima dos trilhos. Peixe, bacalhau, querosene, tudo, tudo era em cima de trilhos porque a Raposo Tavares chegava só até Sorocaba na época. Demorou muitos anos para chegar até nossa cidade, acho que em 1956 ou 1957. Assim, todos os dias eu buscava os latões dos filmes para o cinema, levava o anterior e pegava o novo na estação do trem.
Revista: Você contou que servia de segurança também.
Archimedes: ((risos)) Isso mesmo. seu Nicolau dizia “_Você fica no corredor prestando atenção, porque tem criança que pula o muro”. Uma vez, aconteceu um caso que nunca esqueci. Seu Nicolau fazia pressão para eu não deixar entrar ninguém, mas, muitas vezes, você olhava para o lado do muro e tinha um colega seu de escola. Um dia, eu fiz o quê? Faltavam uns vinte minutos para terminar o filme eu abri o portão e falei “_Entra todo mundo!” ((risos)), me pegaram e me mandaram embora e aí foi uma tristeza.
Revista: O cinema era uma grande atração?
Archimedes: Sim! Era a única diversão da cidade, o cinema Guarani e mais nada. Era daquelas cidades que se diz que as pessoas dormem com as galinhas ((risos)). Então, a cidade dormia cedo, mas tinha gente que não dormia cedo, não. Eu, por exemplo, não dormia cedo e o cinema - das oito às nove e meia - passava filmes em preto e branco no meio da semana. Aos domingos eram os musicais da Metro...
Revista: Estamos falando da década de cinquenta... Ginger Rogers, Fred Astaire...
Archimedes: Sim, cinquenta e quatro... Aqueles filmes famosos, Gene Kelly. Bem então eu fui despedido ((risos)) e o padre descobriu que eu gostava de cinema. Um dia ele me chamou e disse “_Você não quer me ajudar com o Cine Paroquial?” Esse cinema não era oficial, por isso que eu disse que o Guarani era o único da cidade. O Cine Paroquial era um salão ao lado da igreja e o padre usava um projetor dele, um Kodak Americano. A projeção acontecia em um salão cheio de vitrais que era muito claro. Aos domingos colocávamos uns panos pretos para ficar escuro. Eu fiquei fascinado em ver aquela máquina, com o filme projetado de ponta cabeça. Eu ficava ao lado, apaixonado por aquilo. No cine Guarani eu cuidava da sala do cinema, não estava perto da projeção.
Revista: No Cine Paroquial você conheceu de perto como era feita a projeção.
Archimedes: Isso mesmo, a maquininha ficava no meio do salão, aquele sistema de rolos. Admirável! Anos mais tarde, eu repeti esse ritual aqui na Biblioteca Roberto Santos, onde às quartas-feiras temos a Sessão Nostalgia e aos sábados, a sessão Cine Clube. Eu coloquei o projetor no meio do salão e sabe que havia pessoas que participavam para ver e ficar em volta da máquina, do projetor? No Sesc Ipiranga fiz muitas projeções. Quando tive um problema de saúde – um infarto - não teve jeito, até na biblioteca precisei parar. Hoje, infelizmente, já não se usa mais o sistema de rolos. Acabou.
Revista: O equipamento de projeção é uma de suas paixões?
Archimedes: Com certeza, porque eu acho que o projetor tem alguma coisa de fascinante, mágico, algo assim. No Cine Guarani, não podia entrar na cabine, era proibido! E eu era criança e queria tanto saber como era a projeção. Já no Cine Paroquial, o padre permitia que eu ficasse perto do projetor. Aquilo fascinava qualquer garoto! Quando morei em Presidente Prudente, um colega tinha um projetor e convidava, todo o sábado, a garotada da região para ver filmes no quintal. Eu ficava admirando aquela máquina que era uma RCA 400 e, anos mais tarde, quando vim para São Paulo, comprei uma igual!
Revista: Você continua compartilhando essa paixão!
Archimedes: Sim, como sou muito conhecido aqui na comunidade, no ano passado uma senhora me procurou para que eu montasse um projetor no colégio da filha para exibir trechos de filmes. Na verdade, era um trabalho escolar. Ela perguntou “_ Quanto você cobra? Eu disse “_Não cobro nada”. Fui até a escola, montei, instalei o equipamento. A filha - inteligente - aprendeu logo, deixei a fita colocada e ela projetou e foi muito elogiada. De vez em quando aparecem pedidos assim. O Rotary, por exemplo, convidou-me para mostrar - porque há muita gente que não sabe como acontece uma projeção com estes equipamentos - como era a projeção.
Revista: Você ainda sente essa magia.
Archimedes: Sinto mesmo. Mas, você sabe, a magia está, também, nos filmes. Eu tenho um monte de filmes. Cheguei a ter quase mil cópias. Entre 88, 90, junto com alguns amigos, que também colecionam, decidimos arrumar um lugar no bairro para fazer um cineclube. Olha, esses filmes que guardamos só para nós é muito chato. Então, o Antônio Leão (1), o Celso, eu e mais alguns amigos, procuramos vários clubes. Ninguém queria saber de disponibilizar um local. Nós queríamos fazer de graça, sem cobrar nada. Um dia, vimos uma notinha no jornal Gazeta do Ipiranga que a Biblioteca Roberto Santos disponibilizava o auditório para eventos culturais. Lá fui eu. Havia uma burocracia para conseguir o espaço. O auditório estava abandonado, com dois dedos de poeira sobre as cadeiras, sujo. Ajeitamos o espaço e fizemos uma mostra de arte com pintores, artistas plásticos, escultores. Durante o período da exposição, em um dos dias, exibimos um filme. Todo mundo gostou do filme. E pediram “_Por que você não faz isso toda semana?” Na mesma hora respondi “_Faço, é esse o meu projeto”. A mostra de artes foi uma coisa, exibir filmes é meu projeto. Começamos as exibições eu, meus dois amigos, até hoje, às quartas e sábados. Um dia o jornal Estado de São Paulo - que fazia um suplemento em cada bairro e aqui, chamava-se Ipiranga-Zona Sul - apareceu para fazer uma matéria e me perguntaram “_Você faz isso de graça, qual seu objetivo?” Meu objetivo é divulgar, eu gosto da exibição dos filmes. Você sabe, para mim vinha a ideia, lá em Santo Anastácio, quando eu deixei entrar cinco crianças no cinema e fui para a rua ((risos)).
Revista: Qual o lugar dos cineclubes hoje, em uma cidade onde os cinemas de rua deram lugar aos grandes cinemas de shopping?
Archimedes: Olha, a maioria dos cineclubes não se preocupavam com a questão financeira. Por exemplo, o cineclube Bandeirantes - que foi um marco na história de São Paulo - havia pessoas do interior que se associavam só para ter a carteirinha de associado. Aqui em São Paulo surgiram muitos cineclubes. Os cineclubes, em geral, nunca se preocuparam com mensalidade, com caixa. Você sabe, a função do cineclube é exibir filmes diferenciados Michelangelo, Antonioni, Ingmar Bergman, Fritz Lang e assim por diante. Porque não era todo mundo que tinha acesso a esses filmes. O cinema de Bergman era considerado muito hermético, assim como Antonioni, Jean Luc Goddard. Não era mera diversão. Você sabe o que é assistir a um filme e dizer “_Puxa, que história magnífica, o diretor enquadrou bem a temática”. Eu mesmo programei vários filmes polêmicos.
Revista: Por exemplo?
Archimedes: A trapaça, italiano, com Giulietta Masina, exibi Morangos Silvestres e O Sétimo Selo, do Bergman. De Pasolini, exibi um filme que todo mundo queria, era o Evangelho segundo São Matheus, gravado com atores amadores. Esse filme foi polêmico. A igreja, à época, não queria passar os filmes do Pasolini, porque dizia que ele era ateu, comunista, e consegui exibi-lo no cineclube. Coloquei um cartaz na porta e fiz a exibição, ninguém falou nada ((risos))
Revista: Soubemos que você foi convidado a atuar num filme e recusou quando soube que participaria de uma cena de violência contra uma mulher. A informação era que sua recusa deveu-se a motivos religiosos? Conta pra gente como foi isso...
Archimedes: ((risos)) Isso se tornou história. Esse filme era A margem. Na época, eu estava começando a ter contato com a Boca do Lixo (2), eu tive contato com o Ozualdo Candeias. Esse foi o primeiro longa metragem dele, Ozualdo era documentarista. Ele me chamou para fazer uma boquinha nesse filme. Havia uma cena que eu agia de forma violenta contra outra personagem,interpretada pela Lucy Rangel. Acontece que naquela época eu frequentava muito as Testemunhas de Jeová - hoje não mais - mas naquele momento achei que não deveria participar. Então disse ao Ozualdo que não poderia fazer aquela cena.
Revista: Era uma cena muito violenta?
Archimedes: Não! A Lucy Rangel fazia o papel de uma vendedora de café. A cena, foi na Conselheiro Nébias (centro de São Paulo). Ela cruzava a avenida, entrava no edifício e vinha ao escritório para servir café. Naquela época havia umas moças que passavam nos escritórios vendendo cafezinho. Lucy fazia esse papel, com aquele uniformezinho branco e tudo, e era agredida. Mas, não mostrava nada. A câmera girava, girava, girava, o cara ia para cima dela e... cortava a cena. Não aparecia nada, mas eu não quis fazer. Depois me chamaram para fazer mil pontinhas, mas eu nunca quis. Só uma vez, participei de um documentário, um trechinho só.
Revista: Sua paixão pelo cinema tem relação com a imagem e não necessariamente com atuação.
Archimedes: Isso mesmo, não sou ator, não nasci para ser ator. Parece que quando a pessoa nasce para ser ator, as coisas seguem outro caminho. Eu já li muito sobre atores. Sempre fui muito tímido, retraído, até para namorar, na época, as meninas é que me abordavam, eu era tímido demais. ((risos)). Eu era lá do interior, do mato, não sabia falar de paquera, coisas assim.
Revista: Qual sua idade quando chegou a São Paulo?
Archimedes: 17 anos e meio.
Revista: E você veio sozinho?
Archimedes: Não, veio toda a família, minhas três irmãs, meu pai, minha mãe, veio um primo, também. Quando chegamos fomos ser operários de fábrica. A Esmeralda na Alpargatas, Lucia em uma tecelagem, eu fui ser camelô na Boca de Lixo. Vendia bibelôs. Por ali, na Boca do Lixo, tinha as distribuidoras que realizavam filmes, quando eles montavam os filmes cortavam e jogavam nas latas de lixo os pedaços cortados. No dia seguinte eu remexia nos latões de lixo para achar cenas cortadas dos filmes.
Revista: Então, tudo levava você ao encontro do cinema. O primeiro emprego no cine Guarani, o Cine Paroquial. Como conseguiu os primeiros equipamentos para seu acervo cinematográfico?
Archimedes: Em 1964 consegui comprar meu primeiro projetor, mas era muito ruim, dava muito trabalho ((risos)). Era um projetor da Tchecoslováquia muito usado. E quando eu comprei o projetor um amigo me disse “_Nossa, você comprou essa porcaria?” Bem, fui tocando até que um dia aconteceu um fato gozado, ele tinha uns defeitos e eu conseguia me ajeitar mesmo assim. Mas, uma vez fui projetar um filme no Esporte Clube do Ipiranga. Projetor em cima de uma mesa e eram 3 rolos de filme. Terminava o primeiro, punha o segundo, o terceiro e tal, quase duas horas de projeção. Lá pelas tantas o projetor começou a falhar e o público a vaiar. Eu acendi as luzes e falei que teriam que ter paciência, como eu! Apaguei as luzes e o projetor continuou a dar problemas, parou umas sete, oito vezes. Sabe o que eu fiz? Dei um murro no projetor em cima da mesa, ele explodiu. Pá... Rebentou tudo.
Revista: Muitos efeitos especiais... ((risos))
Archimedes: Isso mesmo, efeitos especiais. Peguei o projetor, levei para casa, joguei no lixo e nunca mais eu quis saber. Em 1972 voltei a comprar um projetor, mas agora um bom ((risos)).
Revista: Você já tinha a ideia de projetar filmes para a comunidade.
Archimedes: Sim, comecei a comprar cópias de filmes que as companhias faziam. As distribuidoras tinham dez, vinte cópias do mesmo filme. À medida que iam “quebrando” as fitas ficavam com trechos pulados e então vendiam mais barato. Essas empresas ganharam muito dinheiro com locação e vendas. Uma copia nova era caro. Quando as companhias tinham cópias de fitas que não saíam - as empresas não tinham onde guardar aquilo - eles revendiam para colecionadores. Quando em 1976 a TV passou a ser colorida, os setores de 16 mm foram desativados e podíamos comprá-las a preço de banana. Comprei muitas.
Revista: Bem, você chegou a São Paulo com 17 anos, suas irmãs foram trabalhar em fábricas, você foi ser camelô na Boca do Lixo e,por coincidência ou não, essa região transformou-se em um verdadeiro reduto do cinema independente. Em que momento aconteceu a passagem do Archimedes camelô para ganhar a vida e o apaixonado pelo cinema ao ponto de comprar um projetor para exibir filmes?
Archimedes: Foi assim, eu arrumei uma namoradinha e não queria que ela soubesse que eu era um camelô ((risos)). Tinha feito uns cursos de madureza na época e pedi para minha família não falar nada. Arrumei um emprego na Rádio e Televisão Empire. Um emprego bem vagabundo, mas era um emprego. Eu era encarregado de receber todas as cartas que vinham do Brasil. A Empire fabricava televisores. Fiquei lá quase um ano, mas o salário era muito ruim. Até que achei na Gazeta do Ipiranga um anúncio para vendedor de publicidade de jornal, vendedor de classificados. Sem registro em carteira, mas deu certo, porque um tempo depois o diretor de publicidade saiu da empresa e eu fiquei com a vaga. Fiquei dez anos. Sempre gostei de escrever e tirar fotografias. Comprei uma máquina e fotografava tudo. Fazia as duas coisas paralelas, o jornal e a fotografia. Tinha até laboratório. Conheci um cidadão - foi com ele que aprendi o processo de revelação - que tinha um laboratório de foto e montamos na Florêncio de Abreu (3) uma loja para retratos em 3X4. Havia até um camarada que ficava com um cartaz na rua e levava os clientes interessados em tirar fotos até nossa loja.
Revista: Então, a fotografia também apareceu assim, por “acidente”. Você conjugou seu trabalho no jornal com a fotografia. Isso nos remete a sua paixão pela imagem.
Archimedes: Sim, o fascínio surge quando você tem o negativo, amplia, coloca o papel embaixo. Depois de um tempo de luz no papel, o revelador, mexendo tudo aquilo dentro daquela bandeja, a imagem vai aparecendo. É mágico! Não há nada e, de repente, aquele líquido vai lavando o papel e aparece a imagem.
Revista: E assim você volta a essa questão da magia.
Archimedes: Naquela época tudo isso me fascinava e isso nunca sai da cabeça da gente. Por exemplo, a primeira projeção que vi. Eu lembro assim que cheguei da zona rural, em Santo Anastácio, estava em frente ao cinema e perguntei para meu primo Juvenal, o que era aquilo, aquele estabelecimento Cine Guarani. Ele respondeu que era o cinema. Eu disse “_Cinema? Mas o que é isso?” Eu não sabia. Meu primo me levou para ver um filme e até hoje não esqueço. Era um documentário, chamava-se África, um documentário sobre animais da África. Na sala do cinema, eu fiquei com medo, eram leões, tigres ((risos)) e o Juvenal dizendo que era só a imagem projetada, não havia perigo. Como eu vi que ninguém saiu, resolvi ficar ((risos)). Foi a primeira vez que vi uma imagem na tela e fiquei apavorado mas, ao mesmo tempo, fascinado.
Revista: Isso nos faz lembrar a experiência da primeira projeção do cinema, A chegada do trem, dos irmãos Lumière.
Archimedes: Isso, eles projetaram um trem chegando e diz que o pessoal levantou e quis sair correndo ((risos)). Hoje temos muita facilidade em ter a imagem dentro de casa. Você tem imagem pela Internet. Quem vai ao cinema? O cinema de rua, já fecharam todos, esses que estão aí, o Espaço Unibanco, por exemplo, se não fossem os subsídios já teriam fechado já, mas o subsídio segura.
Revista: E o que você acha disso? Você acha que o cinema perdeuparte da magia?
Archimedes: Ah, sim, perdeu um pouco. Lembro-me de quando ir ao cinema era um acontecimento, como um baile. Alguns filmes, como Doutor Jivago, esses grandes clássicos, tinham uma aura de magia. Hoje o cinema de shopping é frio, você não encontra ninguém conhecido, o lanterninha não existe mais.
Revista: Nesse contexto, o que te move a promover as sessões às quartas-feiras e aos sábados?
Archimedes: O que acontece é o seguinte, o cinema que eu vivi, praticamente não existe mais. Hoje as pessoas que frequentam as sessões na Biblioteca Roberto Santos não têm acesso, àquele tipo de filme. Às vezes eu pego um filme por exemplo, um filme de Libertad Lamarque. Puxo a fita e não tem legenda. O que faço? Tenho um amigo espanhol que coloca legenda no filme, então, eu coloco assim, inédito. Convoco os espanhóis e lota a sessão, sempre está lotado. Mas é alternativo. Faço uma pesquisa profunda, porque se eu colocar esses filmes convencionais, todo mundo pode ver na televisão a qualquer hora. A sessão nostalgia, por exemplo, morreu a Shirley Temple na semana passada, eu já programei um filme que foi colorizado em 1937. Eu edito um catálogo, na verdade um folheto (4) contendo todas as informações para as sessões.
Revista: Você faz tudo isso sem patrocínio.
Archimedes: Eu gasto dinheiro do meu bolso, eu não ganho nada. Eu faço por amor, não cobro nada.
Revista: Você consegue reunir grupos que têm interesses em comum. É uma importante ação na comunidade.
Archimedes: Entre os frequentadores há um grupo enorme da terceira idade.
Revista: E a família compartilha dessa paixão?
Archimedes: Tenho três filhas maravilhosas. Elas não são assim envolvidas, por causa da correria da vida. Mas me ajudam no que preciso. A esposa não gosta de cinema. Revista E como é para ela dividir o seu tempo, com essa organização das sessões na Biblioteca? Archimedes Ela não se importa e acha que devo fazer o que gosto. Houve um tempo que ela reclamou um pouco porque tinha um monte de filme que eu guardava em uma edícula lá no fundo de casa. Muita tranqueira. Começou a juntar barata, era uma sujeira. Um dia, juntei tudo e trouxe para aqui para a gráfica. Ficou ali. Depois de uns anos, precisava encontrar uma área climatizada para todo aquele material. Então, fui repassando os filmes para outros colecionadores, dispondo em lotes.
Revista: Você tem contato com o pessoal do cinema da Rua do Triumpho, com José Mojica, por exemplo?
Archimedes: O Zé do Caixão tinha um estúdio aqui na Silva Bueno. Passava sempre por aqui, eu batia papo com ele, cheguei a imprimir em minha gráfica, o primeiro livro dele. Ele estava sem dinheiro e imprimi o livro que foi encadernado em outro lugar, porque a gráfica não tem encadernador, rodei sem cobrar nada. Rodei mil exemplares. Depois o convidei para vir à Biblioteca e o pessoal gostou muito dele.
Revista: Vocês têm um grupo de muita solidariedade.
Archimedes: Sim, temos. A Boca do Lixo era um local que todo mundo se reunia, o pessoal que produzia filmes, muitas pessoas honestas. Agora, existia, também, muito aproveitador. Mas, quando os grupos queriam produzir filmes, havia muita união. Mais de uma vez colaboramos e nos cotizamos para produção de alguns filmes. Um exemplo em que houve essa colaboração, essa divisão de cotas, foi O menino da porteira. Mesmo depois de pronto, os produtores não tinham dinheiro para fazer muitas copias, fizeram só dez cópias e tiveram uma surpresa, o filme estourou em bilheteria, explodiu. O Brasil inteiro pedia a fita, em duas, três semanas, tinha mais de cento e quarenta cópias distribuídas. A minha gráfica rodava noite e dia. Folhetinhos para o Brasil inteiro. Eram cinquenta mil folhetos, foi uma loucura! Ganhei tanto dinheiro que comprei uma máquina impressora à vista. Todo lucro do filme eu investia. Logo em seguida foi lançado Mágoa de Boiadeiro e, também, as máquinas rodavam noite e dia.
Revista: Há um filme sendo rodado sobre na Rua do Triumpho, com todas essas histórias.
Archimedes: Sim, parece que há uma verba e eles estão rodando.
Revista: Você circulou muito ali, não?
Archimedes Circulei. Havia um jornalista chamado Romão Gomes Portão, ele trabalhava naquele jornal que diziam que se espremesse saía sangue, Notícias Populares. O Romão apelidou aquele quarteirão de “o quadrilátero do pecado”. ((risos)). Até hoje eu me lembro da frase, porque aquela era a região do baixo meretrício. Acho que agora já não tem tanto, mas há anos atrás era demais. Quando surgia a polícia era uma correria, porque os militares queriam tirar as prostitutas da rua. Elas podiam ficar nos prédios, mas na rua não.
Revista: Isso foi durante a ditadura?
Archimedes: Durante a ditadura, então, a viatura passava, tocava a sirene, para limpar a rua. Todo mundo corria para se abrigar nos prédios.
Revista: Nessa época você já estava muito envolvido com o cinema.
Archimedes: Eu já estava bem envolvido. Na época da ditadura, existia uma companhia que trazia filmes da Rússia. Os filmes do Eisenstein, o Encouraçado Potemkin, e os militares não autorizavam a exibição para esses filmes. Essa companhia tinha um subsidio do consulado da Rússia. Os filmes eram legendados em português na Rússia e entravam no Brasil via mala diplomática. Não tinham certificado da censura e exibíamos em colégios, escolas, faculdades, mas com muito cuidado.
Revista: Chegou a acontecer algum confronto?
Archimedes: Não, eu pegava o projetor, com todo o equipamento e fazia a exibição. Os professores vendiam os ingressos para os alunos, e diziam que eles não poderiam espalhar. No dia da exibição entrava todo mundo, fechava tudo e apagava a luz, ficava naquela escuridão. Deixávamos alguém de confiança no portão, qualquer coisa, ele avisava, mas comigo nunca aconteceu.
Revista: Mas você sabe de algum fato?
Archimedes: Sim, apreenderam cópias no cineclube do Bixiga. No Bijou parece até que liberaram, porque houve um tempo que só passava filme soviético. Depois, houve aquela onda de pornografia. Antes do Brasil produzir pornografia, vinha tudo de fora. Vinha muito da França, e os camaradas - a gente chamava de tarados ((risos)) - queriam assistir filme Super 8 ou 16. Um filme da Sylvia Kristel, Emanuelle, quando chegou aqui foi travado pela censura. Não pôde ser assistido. Um cidadão foi para os Estados Unidos e conseguiu uma cópia em 16 mm, sem legendas, e eles passavam esse filme e ninguém entendia, eram dois rolos grandes ((risos)). Emanuelle, de explícito, não tem nada. Isso me faz lembrar na minha cidade, voltando lá em Santo Anastácio, os juízes ficavam de olho nos filmes franceses. Quando chegava um filme, muitas vezes, o juiz da cidade queria ver trechos para colocar faixas de censura - para 18 ou 22 anos - passava o primeiro rolo, passava um trecho do segundo, se ele via uma ceninha, já colocava a proibição, Proibido para menores de 22 anos. Todo filme chegava com certificado da censura, mas o juiz queria assistir. Na exibição, lá estavam o delegado de policia e o juiz. Você chegava ao cinema com o ingresso, dava para o bilheteiro, ele passava para o delegado e para o juiz. Documento. É maior? Entra. É menor? Não entra.
Revista: E dai a falsificação de documentos.
Archimedes: É mesmo. E tem outras coisas que você não sabe. Um dia chegou à cidade um filme francês chamado A enseada dos desejos, do diretor Max Pecas. O juiz indicou, para 22 anos. Em 1959, quando eu morava na Vila Alpina, passo no Cine Camarões, está lá o filme A Enseada dos desejos, fui ver, porque eu não tinha visto. ((risos)) Era puritanismo puro. Tinha uma cena que o camarada rola na areia na praia com uma garota, aparece levemente o joelho dela, assim, mas pelo fato de estarem se beijando naquela areia, acho que foi aquele ponto que o juiz não permitiu a exibição. O Cangaceiro, com a Vanja Orico, também. Há uma ena que um cangaceiro agarra Vanja, não é propriamente um beijo. O juiz da nossa cidade proibiu para 22 anos, mas descobriram que em Presidente Prudente, perto da minha cidade, o mesmo filme estava proibido para 16 ou 18 anos. Resultado, os trens lotavam todos os dias... ((risos)). Todo mundo ia para Presidente Prudente.
Revista: Como eram as autorizações para exibição?
Archimedes: Veja você, por exemplo, hoje se fala em pirataria, mas há algo que pouca gente sabe, só quem conviveu nesse meio. Compravam-se os direitos dos filmes para exibir para o Brasil e a censura só autorizava por 5 anos. Havia quem viajasse para Itália, e comprava, por exemplo, O Dólar Furado, e tinha o direito de distribuir por cinco anos. Ou então, chegavam os negativos. Eram legendados, copiados, distribuídos e os direitos eram pagos para os produtores. Ao fim dos 5 anos, podia-se renovar. Quando a empresa era honesta, fazia a renovação uma vez, a segunda e depois encerrava porque o Brasil inteiro já tinha assistido ao filme. E o que acontecia? Alguém pegava o negativo e copiava. Copiava cinquenta, cem cópias e escondiam o filme por um tempo, não exibiam, para que o público esquecesse, muitas vezes até trocavam o título. Davam um jeito no negativo, raspavam e tiravam o título e modificavam para exibir novamente.
Revista: Quer dizer que havia a possibilidade de assistir ao mesmo filme, mas com títulos diferentes?
Archimedes: Aquele filme que o John Wayne fez, em 1960, O Álamo, eles roubaram cópias e passaram para mim como Uma grande batalha. Quando fui exibir é que percebi “_ Mas esse é O Álamo” ((risos)). Fiz a exibição, mas depois cheguei para o cidadão que havia me passado o filme e falei “_Escuta esse filme é O Álamo com outro nome”.
Revista: Isso é pirataria.
Archimedes: É, mas tinha quem fizesse isso. E outra forma, aqueles filmes antigos da RKO, da Metro algumas companhias detinham os direitos de exibição. Havia quem comprasse, com contrato e registro, tudo direitinho e com direito a fazer vinte cópias de cada filme. Mas faziam cinquenta cópias de cada e revendiam para distribuidoras do Brasil inteiro, para locais bem distantes. Quem vendeu os direitos não tinha como controlar. Isso é pirataria. Hoje, com o cinema digital a ideia é enviar os filmes por um sistema onde o cinema deve recebê--los através de uma antena.
Revista: Sua noção do cinema é compartilhar e dividir.
Archimedes: Quem faz pirataria, só pensa no próprio bolso. Não é como um bandido, mas é um vigarista. Cheguei a conhecer grupos que ao invés de destruir as cópias dos filmes que as companhias davam baixa na censura, as vendia como cópias seminovas. Muita gente fez isso. Mais tarde, as companhias descobriram, aumentaram a fiscalização. As empresas de cinema, FOX, Columbia, têm uma central de distribuição, e quando o filme sai do lançamento, as cópias são recolhidas, algumas colocadas em arquivo e o restante vira resíduo industrial. Há um controle maior. Há empresas que destroem as cópias bem ruins e guardam as melhores. Cansei de comprar cópias. Todas as 900 cópias que eu tinha, consegui assim.
Revista: Por outro lado, um olhar otimista, foi assim que colecionadores como você conseguiram comprar tantas obras e preservá-las para compartilhar.
Archimedes: Preservar, isso mesmo. Quando cai em mãos de colecionadores, a ideia é exibir de forma gratuita. Compartilhar.
Revista: Caminhando para o fim da entrevista, você tem 72 anos e está bem.
Archimedes: Sim, fiz uma cirurgia há dois anos. Estou vivo por causa da ciência, dos remédios.
Revista: Você está com 72 anos, o que você acha que muda com o envelhecimento? Se é que você acha que muda alguma coisa e quais seus planos para o futuro?
Archimedes: Olha, eu vou continuar trabalhando. Tenho minha gráfica, sempre digo para minha família que vou continuar até quando for possível. Eu falo que sou como uma árvore. Durante muitos anos da minha vida, construí um alicerce, uma base para chegar à velhice. Sabe, é maravilhoso chegar aos 72 anos e ter construído uma família legal. Agora, há mudanças na vida, quando me bateu cinquenta anos, eu já senti alguma mudança. Eu tinha uma mente fantástica, hoje, eu esqueço algumas coisas, às vezes.
Revista: Os especialistas dizem que esquecer também é importante.
Archimedes: Senão a cabeça explode, não é? ((risos)). Esses especialistas fazem cada cirurgia. Tantas operações, a medicina, a ciência, a tecnologia.
Revista: E você acha que a tecnologia pode ajudar o homem no processo de envelhecimento?
Archimedes: Acho que essa tecnologia é uma benção de Deus. Você pode ver como o índice de pessoas idosas cresce no Brasil. No mundo todo. A tecnologia é benéfica para a terceira idade. O avanço da ciência, da medicina e da tecnologia está beneficiando os mais idosos. O número de idosos cresceu.
Revista: Estamos terminando nossa entrevista, há algo que você queira dizer para encerrarmos?
Archimedes: Há uma frase de um cineasta – Fritz Lang - que tomei para mim. Eu estava numa situação financeira precária e li sua frase que dizia “Ou você acredita nas coisas pelas quais luta ou deixa de lutar por elas”. É isso!
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(1) Archimedes Lombardi, Antonio Leão S. Neto e Celso Alves Ágria são os curadores da programação de cinema na Biblioteca Roberto Santos.
(2) A Boca do Lixo é uma região não oficial do centro da cidade de São Paulo caracterizada por ter se tornado um polo da indústria cinematográfica, nas primeiras décadas do século XX, está localizada no bairro da Luz, em um quadrilátero que inclui a Rua do Triumpho e outras nas proximidades.
(3) No centro de São Paulo.
(4) Com uma tiragem de 5000 exemplares, o Programa Cinematógrafo não só divulga, mas também, traz informações sobre os filmes exibidos na Biblioteca Roberto Santos.