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Os desplugados

Fica cada vez mais difícil fugir da Revolução Tecnológica. Como um furacão, ela nos arrasta com suas novidades diárias. Mas, apesar de tudo, quase na clandestinidade, ainda existem pessoas que resistem às suas seduções. E tal recusa, voluntária ou compulsória, não impede que os desplugados continuem a trabalhar e se divertir como qualquer mortal

O Brasil tem, segundo pesquisa divulgada pelo Ibope, 4,8 milhões de internautas. O Chase H&Q's Research Group, consultoria internacional que pesquisa o fenômeno da Internet no mundo, estima que até 2003 a América Latina terá 47,5 milhões de usuários. Eles serão seduzidos pelas facilidades da Internet gratuita, pelo advento de novos sites de conteúdo e serviços localizados e ainda por uma estratégia de marketing agressiva por parte das empresas do ramo. Estas, por sua vez, pensando nos lucros, querem levar a Web ao maior número possível de brasileiros.

Os dados e os interesses econômicos impressionam. Mas, apesar do crescimento da importância da rede mundial de computadores no dia-a-dia de milhões e milhões de pessoas, ainda existe um número bastante expressivo de cidadãos que não estão integrados e não pretendem se render à nova era digital. Os desplugados, termo amplamente utilizado para designar aqueles que não querem a informática em suas vidas, continuam trabalhando, namorando, lendo e indo ao banco do mesmo jeito que faziam antes de a Internet invadir o país.

De acordo com Antônio Ricardo Alves Ferreira, diretor da Divisão de Audiência do Ibope, a última pesquisa realizada pela empresa constatou que não são apenas os problemas sociais que estão impedindo o avanço da Internet no Brasil. Na opinião dele, a Web ainda não conquistou uma parcela maior da população por não contar com elementos suficientes de sedução. Para se ter uma idéia, os valores apontados na pesquisa realizada em todo o país indicam que 71% dos brasileiros entrevistados não usam computador e apenas 29% o incluíram em sua rotina. Desses 29%, apenas 13% usam Internet.

Entender por que a população menos prestigiada financeiramente não tem acesso às inovações tecnológicas não é tarefa das mais complicadas. Estranho é constatar que, mesmo na classe alta, algumas pessoas preferem ignorar a informática. A pesquisa do Ibope indicou que 43% das pessoas pertencentes às classes A e B não querem nem saber de computador e muito menos de contato com a rede mundial. "A questão não está ligada ao poder econômico", declara Antônio Ricardo. Para ele, a Internet ainda não cumpriu seu papel social de forma satisfatória. "Nas classes mais abastadas, existe um número enorme de pessoas que considera que a Web não tem nada de interessante", diz o diretor do Ibope.

História

Mas a culpa parece não estar somente na pouca atração que a Internet exerce. Os desplugados da era digital têm as mesmas características dos que, na época do surgimento da televisão, recusaram-se a abandonar o rádio. Na verdade, esse tipo de rejeição, segundo os especialistas, aconteceu em vários momentos da história da humanidade.

Quando Johann Gutenberg criou a tipografia móvel, no século 15, muitos acreditaram que estava sendo declarada a morte das obras manuscritas. Em Notre-Dame de Paris, o escritor francês Victor Hugo conta a história do padre Claude Frollo, que, apavorado com o invento da prensa, demonstrava sua preocupação apontando para um livro e para as imagens de sua catedral e dizendo "este matará aquela", ou seja, o livro matará a catedral.

A preocupação do padre fazia sentido, pois antes da "galáxia de Gutenberg" as obras manuscritas estavam reservadas a uma elite restrita a pessoas letradas e o ensino encontrava-se nas mãos da "catedral", a Igreja.

Aníbal Bragança, professor de História da Comunicação do curso de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense e especialista na obra de Marshall McLuhann, o guru que cunhou a expressão "aldeia global", lembra que não foi somente a criação da tipografia que assombrou a humanidade. "Com a Revolução Industrial, as novas máquinas surgiram como ameaças ao trabalho humano, causando medo e afastando uma grande parcela da sociedade das vantagens que elas podiam oferecer", explica o professor.
Segundo Aníbal, as mudanças tecnológicas acabam avançando para todos os campos da sociedade, e isso altera a maneira de pensar das pessoas. A resistência seria decorrente do medo dessas alterações. "A Internet gera uma profunda mudança nos paradigmas culturais e científicos", diz Bragança.

Para ele, a explosão do conhecimento e da informação que a Internet propiciou é a maior causadora do temor, que, apesar de preocupante, não tem razão de ser. "Vivemos no limiar de um mundo melhor, no qual as barreiras territoriais vão sendo quebradas e o conhecimento fica cada vez mais descentralizado", filosofa.

Ainda segundo o professor, a angústia e a rejeição diante dessas mudanças não podem ser ignoradas ou transformadas em motivo de exclusão. "É preciso entender que, com a Internet, cai por terra o conjunto de referências que uma pessoa tem do seu próprio mundo, e isso pode gerar desconfiança e medo", completa.

O diretor do Ibope concorda com Aníbal Bragança, mas acrescenta mais um fator significativo às causas da rejeição à informática. Para ele, o computador é, na verdade, um estranho. "É mais fácil ignorá-lo do que aprender a lidar com o jeito pouco amigável e o número infindável de problemas que ele apresenta", polemiza Antônio Ricardo. Ele faz a comparação da Internet com a TV por assinatura, mercado que, segundo ele, está estagnado há dois anos. "Um grande percentual da classe alta tem TV por assinatura, mas, por falta de tempo e de interesse, acaba não usando", compara. Portanto, assim como a TV paga, se a Internet não se tornar mais interessante e oferecer mais serviços próximos à realidade, aos poucos pode ficar paralisada, sem crescimento de mercado.
O escritor Luis Fernando Verissimo, autor de Comédias da Vida Privada e colunista de várias publicações, é um dos que não fazem questão nenhuma de ter contato com a Internet. Apesar de ter um de seus trabalhos transformado em e-book (um conto virtual do qual participou no site de compras Submarino, www.submarino.com.br), ele confessa não ser adepto da novidade e não ter a menor paciência com o computador. "Uso o micro como máquina de escrever, mas ainda tenho uma certa impaciência e uma espécie de preconceito", admite o escritor. Veríssimo, no entanto, reage com humor ao ver uma obra sua na Internet. "Estou colaborando com o inimigo, mas fico feliz que, pelo menos por enquanto, o autor seja uma peça fundamental. Teremos de nos preocupar quando os computadores começarem a escrever e inventar coisas", implica.

Estresse e medo

Para o psiquiatra Augusto Cury, autor de Inteligência Multifocal e Análise da Inteligência de Cristo (Editora Cultrix), a rejeição à informática pode ser entendida como dificuldade de enfrentar novos desafios, crença na existência de uma incapacidade intelectual diante de uma tecnologia desconhecida ou simplesmente medo de uma redução na liberdade de expressão. Segundo ele, várias causas podem impedir o primeiro contato com a máquina mais importante da atualidade.

A primeira seria o medo do confronto com uma coisa nova e desafiadora. Ele entende que o medo acaba causando estresse e ansiedade, que, juntos, geram incompreensão. "Quando a pessoa se defronta com algo novo e capaz de realizar tantas tarefas, é normal que ela se sinta incapaz de aprender a dominar a máquina", analisa.

Augusto Cury se une a Aníbal Bragança ao lembrar que, durante a história do homem, vários foram os momentos em que determinados grupos se tornaram céticos a determinadas novidades tecnológicas. Ele faz a analogia do momento atual com o surgimento do cinema falado. "Grandes atores do cinema mudo, ao serem obrigados a trabalhar em filmes sonoros, não se adaptaram e simplesmente foram excluídos do mercado", compara. O psiquiatra admite também a existência de pessoas que simplesmente não se importam com as novidades, principalmente quando elas não fazem falta em sua rotina intelectual. "Essas pessoas não têm medo, elas simplesmente acham que uma tela de computador a mais não fará a menor diferença em suas vidas", explica. Para aqueles que não se adaptaram por medo, mas acreditam que, de uma forma ou de outra, a tecnologia está fazendo falta, Augusto Cury aconselha a terapia. "Essas pessoas terão de aprender a gerenciar a tensão emocional, porque a Internet, se bem utilizada, pode democratizar o processo de aprendizado e transformá-lo de elemento passivo e repetidor de informações a pensador atuante e útil à sociedade moderna", garante o psiquiatra.

A padeira Ana Lúcia Ferreira Lima, 43 anos, é uma das que não podem ouvir falar em computador sem sentir um medo inexplicável. Apesar de admitir que a posição de "desplugada" não é das mais confortáveis, Ana Lúcia tenta culpar a falta de tempo pelo afastamento que se forçou a ter com o computador. "Gasto muito tempo com o meu trabalho e não teria tempo, mesmo se quisesse, para aprender a lidar com todas essas novidades", explica. Mas acaba confessando, no entanto, que o desinteresse chegou a um ponto tal que ela admite pensar na possibilidade de contratar alguém só para fazer o "trabalho sujo" em seu lugar. "Prefiro ficar na minha padaria fazendo os pães a me aventurar em uma tarefa da qual não entendo nada", confessa.

Para o professor Aníbal Bragança, a reação de Ana Lúcia é bastante compreensível. Assim como a modernidade e a globalização podem ser medidas pelo ritmo e a velocidade com que as tecnologias são desenvolvidas, a falta de tempo e a demanda por um número cada vez maior de atividades podem despertar angústia e medo. "A vida moderna exige que não se perca tempo, mesmo que esse tempo seja para aprender a lidar com as exigências dessa mesma vida moderna", teoriza o especialista.

Iniciativas

No entanto, a resistência voluntária ou fruto de um comportamento cultural à informática tem uma companhia desagradável. São os desplugados devido à desigualdade social, vítimas do que os especialistas chamam de apartheid digital. O problema social parece ser o maior causador da pouca intimidade que parte dos brasileiros tem com as tecnologias emergentes. "Para as classes menos afortunadas, a Internet ainda é um grande mistério", acredita Ricardo Alves Ferreira, diretor do Ibope.

Para combater esse quadro desanimador, enquanto muitas pessoas, a exemplo de Rodrigo Baggio, diretor do Comitê para Democratização da Informática (CDI) (ver box ao lado), lutam para conscientizar as pessoas de que é necessário diminuir o abismo entre os conectados e os desplugados, grandes empresas lançam iniciativas com a intenção de facilitar o acesso às tecnologias que elas mesmas desenvolvem. Gigantes como IBM, Motorola, Dell, Compaq e Xerox participam doando softwares e equipamentos para a criação de escolas de informática, como as construídas pelo CDI de Rodrigo Baggio, além de proporcionar treinamento para jovens pertencentes às comunidades carentes.

Já o America Online (AOL), maior provedor de acesso à Internet do mundo, de olho no potencial do mercado nacional, mas preocupado com o grande número de brasileiros que ainda não têm computador, arregaçou as mangas para promover sua própria alfabetização à informática, visando, é claro, atingir o público que lhe interessa. A AOL promove o financiamento de um computador em até 24 vezes, ao preço mensal de 89 reais. Por enquanto, essa "ajuda" ficará restrita a quem pode pagar a prestação. Para uma grande parcela da sociedade, as preocupações principais ainda são comida, saúde e escola. E essa tal de Internet? Ainda é acessório de última necessidade, um verdadeiro luxo que, pelo menos por enquanto, vai mudando a vida dos que podem, e querem, pagar por ela.

Elis Monteiro é jornalista do Caderno de Informática do Jornal do Brasil

Romantismo: A vida à moda antiga

Os escritores ainda parecem estar contaminados pela aura de romantismo da máquina de escrever e do papel e caneta. Roberto Drummond, autor do sucesso Hilda Furacão, conta que todos os seus nove livros foram criados com a ajuda de uma "Olivetti made in Italy" que, para ele, está dando uma forcinha na sorte que tem alcançado em suas obras.
Drummond confessa o que, para muitos, pareceria improvável nos dias de hoje: sua nova obra, Cheiro de Deus, ainda sem data para ser lançada, está sendo concebida à mão. "Estou cheio de calos nas mãos", admite. Mas o escritor, apesar de acreditar que mais dia, menos dia, terá de se render à informática, sonha em nunca largar a máquina de escrever velha-de-guerra e o papel, que, ao lado da caneta, proporcionam-lhe calos tão bem-vindos. "Preciso escrever com uma certa febre, e o computador cura a febre do livro", poetiza. O pai de Hilda Furacão ainda faz piada ao dizer que não é o único escritor no mundo que prefere não usar computador. "Não estou sozinho, junto comigo estão Machado de Assis e Dostoievski", brinca.
E para os que pensam que quem trabalha na televisão, por estar sempre rodeado de tecnologia, precisa ser um entendido no assunto, a atriz Márcia Cabrita surge para fazer muita gente mudar de idéia. Ela confessa não ter a menor atração pelo computador e que prefere não se aproximar demais. "Eu não preciso disso para o meu trabalho", explica a Neide Aparecida do programa Sai de Baixo. Ela conta que o marido comprou um micro há pouco tempo, mas confessa mal saber onde é o botão que liga a geringonça. "Minha filha, que está para nascer, vai me achar muito burra por eu não saber lidar com aquilo", constata. "Aliás, eu também me acho uma idiota, já que até minha sobrinha de seis anos não só sabe mexer como também imprimir textos e fazer mil coisas que eu nem faço idéia do que sejam", lamenta-se a atriz.
Para os artistas românticos de carteirinha, a informática não é bem uma forma de inspiração. A artista plástica Marília Kranz explica que seus colegas de classe levam muito tempo criando uma obra, pintando um quadro ou construindo uma escultura. "Um artista plástico tem um tempo muito curto", enfatiza. Marília jura que não tem medo do computador como máquina, mas confessa ter arrepios só de pensar em bater papo em uma sala de chat na Internet. "No chat não existe afetividade e eu preciso disso para me corresponder com alguém", explica a artista. Para ela, ao contrário da carta, a Internet é um campo com o qual ainda não sabe lidar. A rejeição será eterna? "Não preciso comprar um computador só porque todo mundo tem. Mas acredito que a Internet pode servir para facilitar a nossa vida prática", responde.
O também artista plástico Cláudio Cambra se exclui, com orgulho, do fã-clube da Internet. Ele admite que nunca quis se adaptar à modernidade proposta pela informática e que está muito satisfeito e feliz do jeito que vive. A inspiração, fator fundamental para seu trabalho, encontra-se preservada. "Na época em que cursava a faculdade de Belas-Artes, meus colegas começaram a conhecer os programas editores de imagens", lembra. "Eu os conheci e não fiz questão nenhuma de usá-los depois de terminar o curso", admite Cambra. Ele explica sua rejeição afirmando que a sensibilidade do artista está no traço que o caracteriza, e não na capacidade que tem, ou não, de manejar uma máquina.


Apartheid digital - Os brasileiros que não têm acesso

Antônio Ricardo Alves Ferreira, diretor do Ibope, garante que está longe o dia em que as classes D e E do Brasil estarão plugadas na Internet. De acordo com ele, a pesquisa feita pelo Ibope demonstrou que o número de pessoas pertencentes a essas classes e que não usa computador é assustador: 90% dos entrevistados não têm contato com o micro e nem pensam em ter Internet. De acordo com a última pesquisa Cadê/Ibope, divulgada este ano, a comunidade de internautas está mais concentrada na região Sudeste do país (57% são de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais). Isso significa que o resto do Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer rumo a uma maior intimidade com a rede.
É para diminuir o número de desconectados, o grande contingente de excluídos da tecnologia, que o jovem Rodrigo Baggio, diretor do Comitê para Democratização da Informática (CDI), luta com todas as armas disponíveis para levar a informática e a Internet a quem não pode ter acesso a elas. Baggio fundou a ONG em 1995, com a intenção de diminuir o abismo que separa os plugados dos que ainda mal conhecem a informática. A batalha tem sido árdua, uma vez que o próprio diretor admite que as questões sociais são apenas uma parte do problema. Segundo ele, o contato inicial das comunidades carentes com as novas tecnologias é um misto de fascínio e medo, fruto da resistência a um novo estilo de vida.
De acordo com Baggio, a vontade de conhecer as inovações tecnológicas é bem mais expressiva na população carente mais jovem do que entre os mais idosos. "A primeira coisa que podemos perceber nessa relação é que o computador exige uma grande interação e a transformação de indivíduos passivos em participantes ativos e atuantes", explica. Com toda sua experiência, o Bill Gates brasileiro (como chegou a ser chamado o jovem professor de informática que virou símbolo da luta contra o "apartheid digital") conta que, nas comunidades carentes, o dinamismo da linguagem e o medo de errar costumam afastar os idosos da relação direta com o computador. "Eles se assustam bastante quando aparecem as mensagens de erro, comuns para quem convive com um estranho chamado microcomputador", explica.
As questões levantadas por Rodrigo Baggio são constatadas pelo folclorista carioca Fernando Lebeis. Viajando Brasil afora durante muitos anos, Lebeis pôde ter contato com pessoas que, segundo ele, ainda acham que Internet é um bicho. Um bicho que morde. "É incrível, mas eu ouço as pessoas dizendo que a Internet está mudando a vida de todo mundo e não concordo", argumenta. Para ele, quando se viaja pelo Brasil, percebe-se que em várias regiões a maioria das pessoas continua sendo educada e segue feliz sem o auxílio e a invasão cultural que a Internet provoca. "Nas cidades grandes é possível ver os prédios acesos até tarde. Nos apartamentos as pessoas se acastelam, isolando-se do convívio com os amigos. Acho isso tudo uma tristeza", lamenta.
O folclorista, que trabalha com musicoterapia e educação, além de ser dono do Centro Cultural Viva, no bairro carioca de Botafogo, lança no ar uma questão importante: para ele, a Internet está se transformando na forma mais moderna de clausura. "A máquina está a serviço do homem e nós não precisamos ficar dependentes dela", completa.