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Meu irmão

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti



INÉDITOS
por  Julián Fuks


1
Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado. Se digo assim, se pronuncio essa frase que por muito tempo cuidei de silenciar, reduzo meu irmão a uma condição categórica, a uma atribuição essencial: meu irmão é algo, e esse algo é o que tantos tentam nele enxergar, esse algo são as marcas que tanto insistimos em procurar, contra a nossa vontade, em seus traços, em seus gestos, em seus atos. Meu irmão é adotado, mas não quero reforçar o estigma que a palavra evoca, o estigma que é a própria palavra convertida em caráter. Não quero reforçar sua chaga e, se não quero, não posso dizer chaga.
Poderia empregar o verbo no passado e dizer que meu irmão foi adotado, livrando-o assim do presente eterno, da perpetuidade, mas não consigo superar a estranheza que a formulação provoca. Meu irmão não era algo distinto até que foi adotado; meu irmão se tornou meu irmão no instante em que foi adotado, ou melhor, no instante em que eu nasci, alguns anos mais tarde. Se digo que meu irmão foi adotado é como se denunciasse sem desespero que o perdi, que o sequestraram, que eu tinha um irmão até que alguém veio e o levou para longe.


A opção que resta é a mais pronunciável; entre as possíveis é a que causa menos inquietação, ou a que melhor a esconde. Meu irmão é filho adotivo. Há uma tecnicidade no termo, filho adotivo, que contribui para sua aceitação social; há uma novidade que o absolve das mazelas do passado, que parece limpá-lo de seus sentidos indesejáveis. Digo que meu irmão é filho adotivo e as pessoas tendem a assentir com solenidade, disfarçando qualquer pesar, baixando os olhos como se não sentissem nenhuma ânsia de perguntar mais nada. Talvez compartilhem da minha inquietude, talvez de fato se esqueçam do assunto no próximo gole ou na próxima garfada. Se a inquietude continua a reverberar em mim é porque ouço a frase também de maneira parcial – meu irmão é filho – e é difícil aceitar que ela não termine com a verdade tautológica habitual: meu irmão é filho dos meus pais. Estou entoando que meu irmão é filho e uma interrogação sempre me salta aos lábios: filho de quem?


2
Ele é adotado, foi o que eu disse alguma vez a uma prima que teimava em ressaltar como éramos diferentes, ele e eu, seus cabelos mais escuros e encaracolados, seus olhos tão mais claros. Na minha declaração não havia maldade ou despeito, eu acho, eu devia ter uns cinco anos de idade. Estávamos dentro de um carro, dirigido por meu pai, e minha mãe só podia estar ausente porque meu irmão ocupava o banco da frente, não sei se acompanhando a conversa ou perdido em pensamentos insondáveis. Fez-se um silêncio imediato. Tão contundente foi aquele silêncio que dele me lembro até hoje, entre tantos silêncios pouco memoráveis.


Não estarei tentando me absolver do equívoco, espero, ao dizer que naquela época as orientações que recebíamos eram ambíguas e vagas. Desde sempre meu irmão soubera que havia sido adotado, era o que meus pais diziam, e esse desde sempre me deixava intrigado: como dizer algo assim a uma criança que mal domina as mais simples palavras, com que distância ou frialdade ditar-lhe, mamãe, papai, nenê, adoção? Como transmitir a importância daquele fato, com a gravidade que o assunto exige, sem lhe atribuir um peso desnecessário, sem transformá-lo num fardo que o menino jamais poderia carregar? Era Winnicott quem ditava os passos – fizemos tudo o que indicava a teoria winnicottiana, eu ouviria anos mais tarde, sem compreender ao certo, mas notando o tom de lamento, a voz desolada. Que ele soubesse, que nós soubéssemos, que soubessem todos os habitantes da casa, era algo que se sabia fundamental. E, no entanto, de alguma forma instaurou-se a reversão desse processo, em algum momento o que era palavra tornou-se indizível, calou-se a verdade como se assim ela se desfizesse. Não creio impreciso dizer que foi meu irmão quem impôs sobre todos o silêncio que lhe era mais confortável, e nós simplesmente aceitamos, tão gentis, tão covardes.


Na minha lembrança os olhos do meu irmão estavam marejados, mas desconfio que essa seja uma nuance inventada, acrescida nas primeiras vezes que rememorei o episódio, tomado de pleno remorso. Ele estava sentado no banco da frente. Se chorava, decerto continha qualquer soluço e qualquer espasmo e escondia as lágrimas com as mãos; ou voltava o rosto para a janela, extraviava a vista em presumíveis pedestres. O caso é que não me olharia, não viraria para trás. Talvez fossem os meus os olhos marejados. 


3
Que força tem o silêncio quando se estende muito além do incômodo imediato, muito além da mágoa. Há anos observo em meu irmão, impressionado, sua capacidade de afastar prontamente os pensamentos que lhe desagradam, de interromper conversas sem brusquidão alguma, de deslizar entre uma ideia e outra de forma quase instantânea, sem sobressalto. Vejo seu rosto crispar-se por um segundo ante algum vago infortúnio, alguma frase infeliz que ninguém chegou a proferir, uma ínfima sugestão ou aproximação ao que o perturba, para logo retornar às suas feições comuns, sua indiferença, sua neutralidade anestesiada. Não são poucos os indícios de que ele soube de fato esquecer, embora esquecer não seja a palavra certa – recalcar é a palavra que meus pais indicarão aqui, posso prever. Não são poucas as evidências de que ele passa longos períodos sem admitir sequer para si, sem aceitar ou reconhecer – dias, semanas ou meses, talvez anos, trancado em seu quarto sem que nada disso o acometa, sem que retorne à sua mente tudo o que eu não quero e não posso dizer, tudo o que eu preciso dizer.


Que força tem o silêncio quando se estende muito além, eu me pergunto, muito além do incômodo imediato, e da mágoa, mas também muito além da culpa, e assim chego enfim a me responder. Também eu fui capaz, durante muito tempo, de esquecer. Estamos no carro mais uma vez, agora a viagem é longa e o cansaço nos toma quase tanto quanto o tédio, o calor, o exaspero, e aqui de novo parece que tento justificar minha insensibilidade, minha insensatez. Por alguma razão estou irritado com minha irmã, não quero mais estar ao lado dela, mas sou obrigado a isso e diante disso me desespero: não sou mais seu irmão. Anuncio que não sou mais irmão dela e ela se indigna, você não pode, você é meu irmão, não tem jeito, você é meu irmão e vai ser meu irmão para sempre. Eu insisto, eu não quero, você não é mais minha irmã e pronto, está decidido, eu já decidi. Ela apela ao meu pai, que lhe dá a devida razão disfarçando o riso, minha mãe concorda e também ri, vendo graça no absurdo de tudo, no alcance da minha teimosia.


O veredito não me vale nada nesse momento: não adianta, que se danem todos, não sou mais irmão dela e acabou.
A anedota tornou-se um clássico na família, repetida em jantares mesmo quando todos os presentes já a tinham ouvido, relatada sempre no tom risonho que os dois da frente, meus pais, lhe atribuíram. Dois dos que estávamos atrás também assumimos esse tom, também nos lembramos do episódio como algo cômico, passando inclusive a concebê-lo como um rito de consolidação da cumplicidade que soubemos construir. Mas éramos cinco no carro. Meu irmão não se pronunciara a respeito, e ainda hoje não se pronuncia, preferindo calar em seu canto da mesa, deglutir o resto de sua comida, retirar-se cada vez mais cedo. Eu estava sentado no meio, entre ela e ele, e devo ter lhe dado as costas enquanto discutia, empenhado em defender minha posição impossível. Não sei como terá soado aos ouvidos dele esse meu empenho, se lhe agradou ouvir o pouco valor que eu dava aos laços sanguíneos, se foi doloroso saber da precariedade em que eu subsumia os vínculos fraternos. Eu não questionava se ele era meu irmão, a nossa relação eu não queria suspender. Mas me pergunto se ele terá ainda assim, por um segundo, franzido a testa, baixado os olhos, crispado o rosto de menino.


*Trecho de romance homônimo ainda inédito.

Julián Fuks é escritor e jornalista, autor de ¿Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu (7 Letras, 2004), Histórias de Literatura e Cegueira (Record, 2007), ¿e Procura do Romance (Record, 2012)