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Fruto do contexto conturbado do pós-guerra, Pasolini e sua obra ainda oferecem elementos inovadores para o entendimento do mundo contemporâneo


Conhecido mundialmente por criar e recriar histórias no cinema, Pier Paolo Pasolini (1922-1975)teve uma vida capaz de inspirar roteiros para deixar impressionado qualquer espectador. Italiano de Bolonha, escreveu as primeiras linhas ainda criança, mas foi na juventude e graças aos poemas do francês Arthur Rimbaud (1854-1891) que um novo horizonte poético apareceu.


As letras vieram antes da dedicação ao cinema. Polivalente, foi poeta, tradutor, pintor, jornalista, teatrólogo e crítico de arte, atuações que, simultâneas, o tornaram um intelectual com estilo próprio. Quem explica é a docente do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora do livro Pier Paolo Pasolini (Cosac Naify, 2002), Maria Betânia Amoroso: “Ele apresentava um perfil muito particular como homem da cultura italiana. Criado na sofisticada tradição humanista, esteve envolvido na vida pública e política do país e, diferentemente dos pensadores do seu tempo, viveu em contato com a realidade que o cercava”.


O primeiro livro, Poesia e Casarsa (1942), foi publicado no dialeto “friulano”, língua de sua mãe, Susanna Pasolini, originária de Casarsa della Dizia, no norte da Itália. A escolha pode ser vista como afetiva e literária, pois o autor moldou a língua para expressar uma cultura e sentimentos silenciados pelo regime fascista da época. Além disso, nos anos 1940, morou na região com a mãe e seu único irmão, Guido, o que propiciou contato maior com a língua e com os camponeses que ali viviam, despertando grande respeito de Pasolini pela cultura camponesa, a qual se opunha à cidade e sua própria cultura familiar.


Manifestação de intolerância


A região também abrigou controverso episódio de intolerância. Pasolini foi expulso do Partido Comunista Italiano em 1949, após escândalo ocorrido na aldeia de Ramuscello. “Foi denunciado por sedução de menores, após se relacionar com alguns rapazes em uma festa na aldeia. Assim, perdeu o posto de professor e fugiu para Roma, onde viveu com a mãe na década de 1950, em grandes dificuldades, até o sucesso de seu primeiro romance, Meninos da Vida (1955)”, conta Luiz Nazario, pesquisador e professor de Cinema da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de Todos os corpos de Pasolini (Perspectiva, 2007).


Sobre aqueles “atos impuros” cometidos com os menores de Ramuscello, Pasolini alegou em sua defesa ter realizado um experimento inspirado em leituras de Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido), André Gide (1869-1951) e Jean-Paul Sartre (1905-1980).  “Mais tarde, em Teorema, romance e filme de 1968, o personagem de Deus, vivido por Terence Stamp, lê As Iluminações, de Arthur Rimbaud, e A Morte de Ivan Ilitich (1886), de Leon Tolstoi (1828-1910). Pasolini também apreciava o romance de iniciação homossexual Maurice, de E. M. Forster (1879-1970), sobre o qual escreveu uma resenha”, completa Nazario.


Enfim, cinema!


A mudança para Roma, embora cercada de dificuldades, coincide com convites para colaborar em coletâneas de versos, colocando-o em contato com relevantes críticos e escritores. À procura de emprego, começa a dar aulas na periferia da cidade, onde reside por um período. “Nessa realidade mais complexa, pressionado pela necessidade de se expressar e pelo desamparo e penúria no qual se encontra, descobre o cinema”, diz Maria.


Envolto nessas ambiguidades, em 1955 participa pela primeira vez de um roteiro, A Mulher do Rio, de Mario Soldati (1906-1999), e, no ano seguinte, colabora na revisão do dialeto romanesco usado por Federico Fellini (1920-1993) em Noites de Cabíria (1957), atividades que intensificam seu ofício de roteirista. Todavia, não deixa de escrever poemas e ensaios.


A estreia no cinema acontece quase aos 40 anos, em Accattone: Desajuste Social (1961). O ponto de partida cinematográfico de Pasolini foi o neorrealismo, movimento tido como uma resposta às limitações da indústria italiana, durante e depois da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), que recorria a uma estética semidocumental, com atores amadores ao lado de profissionais, reproduzindo o cotidiano de um país em reconstrução. “A precária situação econômica do país após décadas de fascismo favoreceu essa visão política, que passou a dominar toda a cinematografia local”, explica Nazario.


Segundo o pesquisador, o cineasta apresentou ainda uma inovação: “Impor a presença dos marginais da sociedade nas telas, a desfrutar da companhia honrosa dos monstros sagrados do teatro e do cinema. Diversos escritores amigos de Pasolini, como a romancista Elsa Morante (1912-1985) e mesmo sua mãe, no papel de Maria, participam como figurantes em O Evangelho segundo São Mateus (1964). O jovem prostituto e grande amor do diretor, Ninetto Davoli, interpretou o filho do célebre comediante Totó (1898-1967) em Gaviões e Passarinhos (1966)”.


Tendo dirigido mais de dez filmes entre 1961 e 1970, década na qual já era um cineasta respeitado e amplamente conhecido, tinha o sonho de fazer um filme sobre São Paulo ambientado em várias capitais modernas. “O projeto não saiu do papel, principalmente porque [as capitais] eram inumeráveis”, comenta Maria.


No mesmo ano do lançamento de Saló, os 120 Dias de Sodoma (1975), Pasolini é encontrado morto em um campinho de futebol de periferia, em Roma. Assassinato juridicamente resolvido com a prisão de Pino Pelosi, aos 17 anos de idade, mas que na visão de Nazario permanece sem solução: “No mundo de hoje não há a possibilidade de uma existência subversiva como a de Pasolini, que não por acaso foi moral e fisicamente massacrado pela sociedade italiana da época. Sofreu 33 processos antes de ser assassinado de modo brutal, num crime cercado de tabu e mistério, permanecendo até hoje insolúvel”.



Representações do mesmo autor

Exibição de filme e leitura dramática abordam ¿diferentes campos de atuação do cineasta italiano


Pier Paolo Pasolini foi relembrado em imagem e palavra em duas atividades promovidas pelo Sesc Pinheiros e Belenzinho. Na primeira, o dia 16 de julho foi reservado à exibição de Saló, os 120 Dias de Sodoma (1975), como parte do projeto Os Imperdíveis, dedicado aos filmes antológicos da cinematografia mundial, seguido de bate-papo com o público, abordando o contexto histórico da época, a produção do longa e o diretor em questão.


Já a unidade do Belenzinho incluiu o diretor na atividade realizada pelo grupo Teatro de Narradores, no dia 27 de julho. A leitura da peça Pílades (foto), de 1966, se insere na premissa do Sesc em apoiar as iniciativas de pesquisa nas variadas linguagens artísticas. “O Teatro de Narradores vem mantendo uma continuidade dos modos de produção, organização e pesquisa coletiva, alinhado com um pensamento crítico acerca da metrópole e da sociedade como um todo, e completou 15 anos de resistência”, diz a técnica do Núcleo de Música e Artes Cênicas da unidade, Cynthia Petnys.


A retomada deste espetáculo em formato de leitura foi sugerida pelo próprio grupo, por marcar um momento em que os estudos sobre as relações entre cinema e teatro se aprofundaram em sua trajetória. “A montagem foi finalizada em residência artística no Sesc Pinheiros em 2010, quando o grupo buscava a aproximação entre Glauber Rocha (1939-1981) e Pasolini. Na leitura, menos provida de recursos técnicos, provavelmente as aproximações com Pasolini e seu pensamento político são mais fortes”, diz Cynthia.
Para o diretor e dramaturgo do Teatro de Narradores, José Fernando Azevedo, a peça é um importante marco cultural: “Trata-se de uma leitura sobre o destino da Itália, seu pacto com o progresso e, de quebra, o abandono de toda uma perspectiva humanista – ou a revelação de sua verdade e limite, que atravessou a formação de uma cultura”.



Ideias e referências

Assim como a amplitude de interesses e produções, as influências de Pasolini também são diversas

Teóricos e teorias

Antonio Gramsci (1891-1937) Cartas do Cárcere e outras obras de Gramsci, que prega uma revolução camponesa em uma Itália ainda não industrializada, exercem forte influência na visão política de Pasolini, cuja infância e juventude transcorrem nos campos de Friuli, entre os jovens das aldeias de Casarsa e Ramuscello.
Herbert Marcuse (1898-1979) O sociólogo e filósofo alemão, posteriormente naturalizado norte-americano, influenciou Pasolini especialmente com Eros e Civilização (1955) e Ideologia da Sociedade Industrial (1964), assumindo a grande recusa à sociedade unidimensional.


Roman Jakobson (1896-1982) A teoria da linguagem, de Jakobson, inspirou-lhe para desenvolver sua própria semiologia da realidade na série de ensaios de linguística reunidos no livro Empirismo Herético (Lisboa: Minerva, 1982). Tal semiologia foi aplicada à realidade da sociedade italiana dos anos de 1960-1970 numa série de ensaios críticos publicados em jornais e revistas da época e reunidos em diversas coletâneas: Os Jovens Infelizes, Cartas Luteranas, Caos e Escritos Corsários.


Cineastas e filmes


Charles Chaplin (1889-1977) A partir de (1935), vemos uma sequência marcante de referências. A obra de Chaplin foi influenciada por A Nós a Liberdade (1931), de René Clair (1898-1981), que buscou inspiração em Metrópolis (1927), de Fritz Lang (1890-1976). O imaginário desses filmes marcou Pasolini em seu ideal anti-industrial, com a fábrica assumindo a figura da máxima alienação e exploração do homem.


Carl Dreyer (1889-1968) Considerado um de seus mestres, o diretor do filme O Martírio de Joana d’Arc (1928), revela a contradição entre a pureza da jovem martirizada e a corrupção dos inquisidores que a condenam à fogueira, tentativa de monopolizar para a igreja a dimensão do sagrado. Intuito frustrado, pois a jovem se torna uma santa, prometendo ao inferno os homens da igreja.
Sergei Eisenstein (1898-1948) Podemos relacionar a sequência do massacre dos inocentes em O Evangelho Segundo São Mateus (1964), de Pasolini, à famosa sequência da escadaria de Odessa, do Encouraçado Potenkim (1925). Daí surgiu o empréstimo da cena do massacre em degraus, quando os bebês são arrancados dos braços das mães e assassinados pelos soldados sob as ordens de Herodes, evocando os degraus da escadaria de Odessa.
Fonte: Luiz Nazario