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Sobre a preservação da possibilidade
P.S.
Lembro-me, como algo já amarelado na memória: a minha primeira vez foi de um encantamento inocente. Esperei um bom tempo para ter um sinal de que estava realmente acontecendo, assim como todos os que estavam ali ao meu lado a experimentar algo novo. Foi ainda no final do século passado, em uma salinha entre o 2º e o 3º andar da escola. Naquela manhã, renunciei ao papo com os colegas e ao lanche para me dedicar a algo inusitado: meu primeiro acesso a uma informação pela Internet.
Considero hoje a experiência frustrada não só pela demora de quase uma hora para carregar a foto pretendida na tela, mas pela relação rasa entre mim e a máquina/informação naquele momento. Foi uma relação passiva, de um fã que pensava ainda nada poder fazer para influenciar o que lhe era apresentado. Mesmo assim, até hoje me pergunto o porquê daquele tipo de fascínio curioso que me prendia a atenção inexplicavelmente.
Mais tarde, o potencial da ferramenta foi se revelando. Refiro-me às possibilidades de produzir conteúdo, de mobilizar pessoas e criar interfaces para debates cotidianos. No desenvolvimento tecnológico acelerado que se passou desde a minha experiência primeira, os blogs pessoais, a publicação aberta, o creative commons e o copyleft, o p2p, os fóruns e tutoriais colaborativos, a filosofia do software livre com todos os seus desdobramentos e os diferentes usos das redes sociais denotaram uma atualização importante na troca de conhecimento.
Em dez anos atuando como estimulador de práticas em torno desses recursos junto ao público freqüentador de diferentes unidades do Sesc, pude não apenas experimentar pessoalmente um pouco dessas novidades enquanto elas surgiam, mas principalmente observar como elas eram assimiladas às rotinas de muitos sujeitos diferentes, advindas de histórias pessoais e profissionais diferentes. Para muito além da generalização proposta por teorias que tentam definir grupos específicos conforme o uso das tecnologias (“Geração X, Y, Z”, “nativos digitais”, etc...), o que vi foi a diversidade das experiências particulares de cada sujeito.
A observação sobre a complexidade desse conjunto diverso de experiências passou me deu nova dica sobre o motivo do fascínio nos meus primeiros acessos. Tratava-se da sensação de vivenciar o uso de um suporte então novo para a comunicação, apoiado sim em controles técnicos mas ainda livre de amarras e vícios já definidos pelas circunstâncias políticas, econômicas e sociais, diferente das experiências até então me oferecidas com a TV, o rádio, jornais e revistas, telefones e livros.
Com a cabeça ainda um tanto colonizada pelas experiências anteriores, fui percebendo que, mesmo ameaçada pelos padrões que engessam seus ancestrais, a ferramenta insistia em se apresentar como possibilidade; e ao mesmo tempo que encantava os curiosos, podia desestabilizar arranjos políticos, jurídicos e econômicos vigentes. A partir daí, me flagrei em cada “clique” assumindo posturas políticas no meu uso e criação cotidianos de recursos na Internet e aparelhos agregados. Nossa convivência física e a digital-conectada nunca foram dissociadas.
Manter a Internet enquanto possibilidade passou a depender cada vez mais de escolhas pessoais cotidianas comprometidas com a garantia da diversidade de apropriações de seu potencial atual e daquele que ainda não se concretizou. Ao mesmo tempo, poder subverter os usos já engessados por circunstâncias políticas e econômicas de qualquer sistema de comunicação o devolve ao campo da possibilidade, restaurando-lhe a serventia para o coletivo. Ficou cada vez mais claro: o meu fascínio e interesse não eram pela nova ferramenta, mas sim pela possibilidade, pelo diferente.
Cássio Quitério, sociólogo e jornalista, é assistente técnico ¿para a área de Cultura Digital do Sesc