Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Entre megeras e donzelas-mortas

CECILIA PRADA

Desde o lançamento do primeiro volume de suas memórias, Baú de Ossos, em 1972, Pedro Nava marcou presença original em nossa história literária. A sua é uma memória crítica, que verruma o passado para questioná-lo, compreendê-lo, uma memória nunca complacente – lúcido instrumento que vai buscar uma colossal galeria de personagens minuciosamente descritos, vibrantes de paixões, paradoxos, cacoetes, grandeza e mesquinharia. “São como peças complexas de um puzzle, intrincadas, difíceis de enclavinhar, abarbadas, duras de combinar mas que, afinal engrenadas umas às outras, compõem a paisagem humana que quero descrever.”

Nascido no limiar do século 20 (em junho de 1903) e descendente de famílias tradicionais do Ceará, pela parte do pai, e de Minas, pela da mãe, Pedro da Silva Nava teve o privilégio de ser um observador estrategicamente colocado, pela época e pelo meio, para colher o extenso material que usaria em seus escritos. Decorridos quase 30 anos desde sua morte, em maio de 1984, sua memorialística, em sete volumes, permanece como legado ímpar, permitindo tanto o desfrute de seu valor literário e sua originalidade de estilo quanto o acesso a um inigualável cabedal de informações históricas, científicas, sociológicas e políticas – um desentranhamento da nacionalidade, da formação social e cultural do país no período abrangido entre meados do século 19 e as décadas de 1940 e 1950.

Nada melhor que a paisagem humana descrita por Nava para nos dar uma visão abrangente do caráter essencialmente masculino da sociedade brasileira, que parece ter estabelecido no curso de nossa história apenas uma grande “conversa entre homens” – mas com a recorrente e inquietante passagem de personagens femininos ao fundo. Lembramos o dito da socióloga italiana Ida Magli, segundo a qual “a mulher tem sido sempre apenas um escabelo aos pés da história”. Do colossal conjunto memorialístico de Nava destaca-se um “à vontade” de ires e vires, de companheirismo desde a tenra infância, desde o tempo dos internatos (lugar por excelência da violência, da pedofilia e do apartheid masculino), de relações pessoais ou profissionais, de amizades, amor, ódio, ressentimentos, competição – mas somente no mundo dos homens, que é a face aparente da sociedade, o lado direito do intrincado tecido da nacionalidade. E para a mulher, o lugar da sombra e do mistério, do incompreendido, o avesso do bordado – imprescindível, mas tão pouco olhado.

Em entrevista a Maria Aparecida Santilli, professora da Universidade de São Paulo (USP), Nava disse que, se falou pouco de sua vida amorosa em suas memórias, foi por ter sido sempre muito tímido, com “poucas ligações, poucos amores até me casar” (aos 43 anos), e que isso se devia a um grande desgosto sentimental que tivera, “um fantasma proibidor de uma amada que morreu”. Sabe-se agora, porém, que Nava escondeu cuidadosamente, a vida toda, suas inclinações homossexuais – e que o suicídio, aos 80 anos, foi devido a uma chantagem que lhe estava sendo feita por um garoto de programa. Não era ainda aquele ano, 1984, época de liberação e transparências, infelizmente.

Seja como for, é de importância secundária o esquadrinhamento da vida íntima do escritor – sua obra basta para nos dar acesso ao inconsciente coletivo do homem de sua geração e de seu meio, dividido, contraditório e literalmente assombrado por imemoriais arquétipos femininos, como os dois extremos exemplos, a “mulher forte” e a “amada morta”. Radicalmente opostas, uma e outra, mas com uma característica comum: são ambas “mulheres impossíveis”. Exemplo de “mulher forte” (terrível) é sua avó materna, Maria Luísa da Cunha Pinto Coelho Jaguaribe, “inhá Luísa”, matriarca mais temida que amada, que viveu entre 1847 e 1913. Na síntese do neto: “Minha avó, que foi mãe admirável, sogra execrável, sinhá odiosa para escravas e crias, amiga perfeita de poucas, inimiga não menos perfeita de muitas e corajosa como um homem – era de boca insolente e bofetada fácil. Te quebro a boca, negra. E quebrava”.

Brilhante azul

Era uma velhota feroz, que mandava cultivar varas de marmelo “flexíveis como floretes, cruéis como chicotes” e que em pleno século 20 “não tomara conhecimento do 13 de Maio e chegava a ratamba não só nas suas crias como nas empregadas assalariadas”. Porém, ao elegê-la como personagem, Nava sente- -se obrigado a devassar, tomado de fúria genealógica, toda a ancestralidade de que personagens e escritor haviam saído.

A história de sua avó vem inserida na de outro personagem forte, o pai dela, o bravo e pétreo Luís da Cunha Pinto Coelho Vieira Taveira do Souto Maior e Felgueiras... que uma vez, escoiceado por um burro, revidou com um pontapé que abateu a alimária. Era um rico proprietário de tropas que exercia impunemente sua brutalidade sobre família, escravos, agregados e todos os que caíam em seu desagrado. Dava surras de tala de couro cru na filharada, meninas incluídas, “espavoria a família, que só respirava quando ele viajava a negócios”. A cena do castigo que infligiu a um pobre viajante que ousara elogiar a abundante cabeleira de sua mulher é horripilante – de tal grau de sadismo que vale por todo um tratado sobre o sistema social brasileiro na época do Segundo Reinado.

Sobre o pano de fundo de outras cenas de violência institucional daquele interior das Gerais, acompanhamos o desabrochar de Luísa, “flor de candura, divinal quebranto” (como a cantaria, na mocidade, um primo poeta e apaixonado), mas que desde pequena mostrava personalidade voluntariosa. Aos oito anos já fugia de casa com um irmãozinho de seis, contra a ordem paterna, para assistir ao enforcamento em praça pública de duas escravas que haviam estripado sua crudelíssima sinhá. Conta o bisneto Pedro: “Luís da Cunha e seus filhos Luís, de 20 anos, e José Luís, de 17, armados de tala, levaram os escravos e escravas da casa para assistirem, de joelhos, aos enforcamentos das negras e ficarem bem humildes e bem escarmentados”. As duas crianças perderam os sentidos, diante de tanto horror. Depois tiveram dias de febre alta, terrores noturnos – até incorporar, em um tempo desprovido de psicólogos, a tremenda carga emocional às outras lembranças da infância. Descrevendo um daguerreótipo da inhazinha Luísa da época, nos permite o narrador conhecê-la, “bonita cara, mas de expressão antipática e voluntariosa, com um olhar carregado de desconfiança e uma boca de dobra amarga”.

Luísa é dotada de grande inteligência e personalidade – e até, coisa rara em seu tempo, recebe uma educação refinada em um colégio de Juiz de Fora, conhece línguas, gosta de poesia e música. Apaixona-se aos 15 anos pelo tal primo poeta, Inácio Gama – paixão inútil em termos práticos, pois o belo rapaz não ousava contrariar o próprio pai para casar-se com ela, considerada uma “prima pobre”. Para grande ira de Luís da Cunha, a moça foi mantendo o namoro durante quatro anos, até um dia de reviravolta – ao descobrir que seu belo passara uma noite de farra em um bordel, “gritou para quem quisesse ouvir que não queria mais saber do cachorrão do Inácio Gama”. E aí Nava nos dá o momento decisivo da personagem, quando, no auge da rebeldia, e contra a ira ainda mais acirrada do pai e da família, ela cinicamente assume casar-se, aos 19 anos, com um alemão milionário de 70 anos, o duas vezes viúvo comendador Halfeld, que a presenteia com um argumento irrecusável – um brilhante azul quase do tamanho de uma avelã. Quando o comendador morreu, sete anos mais tarde, Luísa tinha 26 anos, era bela e riquíssima. Não demorou muito para escolher a dedo outro marido, desta vez belo e três anos mais moço – o agrimensor Quincas Jaguaribe, que seria o avô de Pedro Nava.

Valeria por um tratado de psicologia feminina e de sociologia a atitude assumida pela jovem Luísa – é o momento em que ela toma sua vida nas mãos, o que não era costumeiro, e nem fácil, na época, e em família tal. Como não poderia deixar de ser, entretanto, tal rebeldia era apenas um verdadeiro acatamento das normas – em uma escala mais ampla e definida. Ela não renega o meio, nem lhe acorreria nunca querer modificá-lo ou subverter suas leis – e como poderia ser de outra forma no sertão das Gerais, em 1867? Apropria-se, num repente, do poder masculino e dali por diante extrai todas as vantagens de sua situação e da manutenção do status quo – protótipo de donzela-guerreira ou dama de ferro em seu âmbito doméstico. Bela, vaidosa, tem uma penca de filhos. É corajosa, lutadora, sobrevive à perda da fortuna, mantém a família unida e forma um círculo social refinado a seu redor. Contudo, envelhece amargamente, feia, solitária, desleixada, avarenta, indiferente e distante. Mesmo assim – diz Nava – “tinha uma autoridade imanente, uma imposição natural e uma majestade espontânea que me fascinavam”.

Noiva de mármore

Sinhá Luísa é a principal das megeras que Nava descreve, mas não a única. A “mulher forte”, tirana doméstica, é a contrapartida perfeita e extrema para outra imagem que o obsessiona: a “donzela-morta” que de quando em quando se enfia por suas lembranças, belíssimas e imaculadas virgens adolescentes, “santinhas de cera” ceifadas na flor da vida e preservadas para sempre em sua qualidade de “inatingíveis”. A morte na infância e na mocidade era, claro, um elemento constante naquela época de precários recursos médicos – morria-se de uma simples infecção, de tifo, de coqueluche, de apendicite, sem contar a ceifa da epidemia de gripe espanhola, em 1918.

É desta última que o escritor extrai sua melhor imagem de “donzela-morta” – Nair, belíssima, que deveria casar-se logo, mas que, colhida pela epidemia, transforma-se apenas no “jacente de uma noiva de mármore”, no arquétipo capaz de causar no adolescente Pedro um frisson de reconhecimento inconsciente. Olhando para um dos dois espelhos venezianos do salão onde velavam a jovem, ele vê que um “reproduzia o outro e os dois repetiam numa cripta imensa, de cada lado da sala, dez, vinte, cem, mil, undesmil virgens mortas cujos rostos iam se cavando e arroxeando na medida que progredia o dia”.

E há mais – 20 páginas antes, ao descrever Nair viva, saudável e jovial, Nava prende-a já a um imperativo característico do imaginário romântico. Descreve-a “feita com a amplitude da estatuária clássica” e diz que poderia subir num pedestal, pois era amada por todos os homens da casa – dos meninos aos adultos – pelo seu “halo maternal... no sortilégio de um mistério religioso porque essa criatura da natureza de Ísis e Osíris era a um tempo una e múltipla, antepassada e descendente, materna, fraterna, filial, consanguínea e bem amada”. Mais ainda: capaz de ressurgir da cova, intacta e mumificada cinco anos depois da morte, porque fora preservada por uma camada petrificada de lama – e diz o escritor, fechando-a para sempre na condição ideal de bela incorruptível, “a estátua de mármore tornara-se estátua de bronze”. A morta acaba por ser a mulher “ideal”, justamente porque impossível, imobilizada, desprovida de exigências – mulher-objeto por excelência, objeto de um desejo cerebrino, masturbatório e também ele natimorto.

No entanto, no penúltimo volume das memórias, O Círio Perfeito, Nava, já encarnado em definitivo no personagem de seu alter-ego José Egon, conta outro episódio da série “donzela-morta” – e desta vez, mesmo mascarando-a com tintas de idealização e trocando o nome real por um “Lenora” saído diretamente da famosa morta de Poe, dá-nos uma personagem, sentimos, que é viva, concreta. E real é o trauma sofrido pelo jovem médico Egon (Pedro) quando, em Belo Horizonte, lhe chega a notícia do inexplicável suicídio da amada, no Rio de Janeiro. Somente 47 anos mais tarde, por intermédio de um primo de “Lenora”, inteira-se da verdade: ela se matara por estar condenada a viver somente mais uns poucos meses. Tinha leucemia e, diz o escritor, “quando viu que a moléstia ia desfigurá-la, aviltar-lhe o corpo maravilhoso e a cabeça divina – retirou-se em beleza e foi ao encontro dos deuses seus irmãos”. Nota-se que, mesmo em relação a essa moça, a única com quem descreve o namoro, platônico conforme a época e partilhado com outros adoradores, o adjetivo que usa é “divina” – ela é que tomara a iniciativa do namoro, mantendo-se ele o tempo todo deslumbrado pela sorte porque ela era, “nem mais nem menos, a coisa mais insigne, admirável e peregrina da cidade”.

“Lenora” é o único relacionamento que descreve com moça de seu meio e educação – mas nele podemos ver o alto grau de idealização (e consequente distanciamento) do jovem Nava em relação à mulher. A amada é tão perfeita que, diante dela, ele se despersonaliza, impotente. E, na descrição de suas perfeições, acaba por ver transparecer nela a máscara das heroínas trágicas, “seria Antígona, Electra ou Jocasta de cabeça divina... com um pescoço de coluna grega – só que viva”. A hiperbólica projeção da mulher ideal (irreal) obnubila até mesmo sua acuidade profissional – médico, ele não percebe a doença da moça, cuja palidez, achava, “dava impressão de saúde e força”.

A mulher real, marcada pelo sofrimento e pela doença, demonstra claramente seu desejo sexual – é ela quem toma a iniciativa do primeiro encontro e imprime ao namoro marca de ousadia inédita para a época na provinciana capital mineira. A timidez do doutor Egon-Nava desconhece os sinais para uma aproximação maior e o faz continuar a debater mentalmente sobre as melhores definições da amada – seria parecida mais com a Gioconda ou com uma Virgem com bambino, ou teria olhos das antigas figuras chinesas? Com isso, já vai traçando o destino posterior da “donzela-obrigatoriamente-morta” – a amada impossível.

Marianismo

Como “impossível”, nos transmite também a figura de sua mãe, Diva, cujo apelido era sintomaticamente “Sinhá Pequena” – em contrapartida à “Sinhá Grande”, que era a terrível avó. Mulher corajosa, feminina, Diva inventava mil recursos, culinários ou artesanais, para manter os quatro filhos. O narrador das memórias entremostra-a apenas, mal esboçada, ao fundo do cenário. Ela se encaixa no “culto à mãe”, ou “marianismo”, analisado por Gilberto Freyre como elemento ideológico essencial do imaginário masculino brasileiro – mais uma, a principal “mulher impossível” de nossa cultura.

Possíveis, numerosas, descritas à exaustão, são em compensação as prostitutas que entretêm todos os machos, na sagração orgiástica normal da sociedade – não há na literatura brasileira elementos melhores que os de Nava para estudo da vida sexual dupla, costumeira tanto para rapazes solteiros como para sisudos chefes de família, os pilares da sociedade, e aceita passivamente pelas moças e senhoras da “boa sociedade” (menos por uma rebelde donzela-guerreira como inhá Luísa, como vimos).

No livro Memórias Videntes do Brasil – A Obra de Pedro Nava, José Maria Cançado analisa como a matéria do vivido pelo narrador e a matéria histórica se completam para registro “dos dois complexos mais entranhados do viver brasileiro”, o do “culto da mãe” e o complexo (ou trauma) da escravidão. Na situação de violência permanente e multiforme da sociedade patriarcal escravocrata contra a mulher (negra ou branca) imprimem-se de maneira indelével todos os traços de discriminação e desentendimento psicoafetivo que, apesar dos avanços sociais e dos movimentos libertários do século 20, continuam a estigmatizar a interação sexual em nossa cultura.

Podemos dizer que esse gênio literário, esse grande homem que foi Pedro da Silva Nava, ao revelar (ou não revelar) os refolhos de sua sexualidade, de sua “timidez diante da mulher”, atribuída à “desilusão com a noiva morta”, e, de outro lado, ao escancarar até detalhes ridículos ou obscenos suas orgias em bordéis, seu desfrutamento das negrinhas empregadas, autorizado e encorajado pelo sistema familiar, expõe até o âmago o “Homo brasiliensis” de seu meio e de sua época – um ser complexo, dividido, contraditório, feito de silêncios, sombras, tradição e privilégios, e também de sofrimento e frustração.

Para remate: perpassa, porém, ao fundo da memorialística naviana, uma outra sombra feminina mal esboçada, admitida como contra a vontade, mera figurante de terceira fila, parece, do grande espetáculo do século 20. É a mulher real. De carne e osso. Que se firmava com identidade própria, que emergia já da máquina patriarcal e buscava uma colocação própria no mundo, que ia começando nas primeiras décadas do século a se introduzir, a custo, nos quadros profissionais masculinos. Em raríssimas passagens Nava dá conta dessa modificação – registra que “naquele ano de 1926, uma certa liberdade feminina começava a apontar”, mas identifica-a exclusivamente com as mudanças da moda, “vinha de trás, com os cabelos à la garçonne”. Gasta meia página nos detalhes de cabelos, decotes e modelos copiados das divas do cinema, para depois dizer apenas “começava-se timidamente a conversar nos portões com as amadas ou a abordá-las rapidamente nas ruas”.

Em outra passagem, porém, deixa passar uma informação surpreendente: a existência de universitárias já na turma de seu pai, formado em medicina no Rio de Janeiro em 1901. Descrevendo um dos docentes daquela faculdade, diz que ficava furioso quando via saias, que a medicina, em seu entender, era profissão de macho. “Quando tinha alunas, trocava-lhes o sexo, dando-lhes nomes masculinos.”