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Quando o lixo se transforma em cifrões

CARLOS JULIANO BARROS

“Atualmente, uma família de quatro pessoas (pai, mãe e dois filhos), considerando uma expectativa de vida de 73 anos no Brasil, vai precisar de três apartamentos de 50 metros quadrados, com pé-direito de 3 metros de altura, só para colocar todo o lixo produzido por ela”, afirma Helio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu, organização sediada em São Paulo que se dedica a promover práticas de consumo consciente. A imagem construída por Mattar ilustra de forma preocupante um dos maiores desafios a ser enfrentados pelo país na busca do tão alardeado desenvolvimento sustentável: o manejo adequado dos resíduos sólidos – o popular “lixo”.

Estima-se que cada brasileiro produza em média 1 quilo de resíduos por dia. Mais da metade das 199 mil toneladas descartadas a cada 24 horas ainda vai parar nos famigerados lixões espalhados de norte a sul do país, sem qualquer tipo de reaproveitamento ou tratamento ambiental adequado – sejam materiais de elevado potencial de contaminação, como lâmpadas de vapor de mercúrio, sejam embalagens misturadas a restos de comida. Segundo a última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, divulgada em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,8% dos municípios ainda recorriam aos lixões como principal destino dos resíduos sólidos. Até mesmo Brasília, que deveria servir de exemplo, faz parte desse lamentável grupo.

Também em 2010, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) finalizou um complexo estudo, a pedido do Ministério do Meio Ambiente (MMA), que calculou em R$ 8 bilhões o potencial de reciclagem no país. Na época, a atividade movimentava, segundo o instituto, cerca de R$ 3 bilhões. “Esse valor está relacionado a questões conjunturais. Pode baixar ou aumentar de acordo com os preços de mercado dos materiais recicláveis”, explica Albino Alvarez, pesquisador do Ipea. “O importante, porém, é ressaltar que não há outro caminho a não ser investir forte na reciclagem, porque ela é estratégica”, sustenta.

Felizmente, o tema entrou de vez na agenda dos gestores públicos e na pauta de prioridades da sociedade brasileira. A verdade, contudo, é que o país que transformou em caso de sucesso o reaproveitamento industrial de nove em cada dez latinhas de alumínio – um recorde mundial – ainda tem um longo caminho a percorrer até estender a mesma excelência a todos os tipos de descartados.

O pontapé inicial para a verdadeira revolução na reciclagem que o país precisa promover foi dado em agosto de 2010, com a promulgação da lei 12.305, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Empurrada com a barriga pelos parlamentares de Brasília, a medida, pasmem, demorou 19 longos anos para ser aprovada. “Ela é um marco, tendo consolidado tudo o que tínhamos até então como regra do ponto de vista de manejo de resíduos, e foi um pouco mais adiante, ao colocar metas claras e determinar responsabilidades para todos os atores da sociedade envolvidos na questão”, define André Vilhena, diretor executivo do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), entidade fundada em 1992 e mantida por mais de 30 grandes empresas.

Uma das metas mais urgentes, por exemplo, é a completa erradicação dos lixões a céu aberto até 2014 e sua substituição por aterros sanitários. Se projetada adequadamente, a infraestrutura de um aterro permite não só a captação do chorume, evitando a contaminação do solo e dos lençóis freáticos, mas também a queima, para fins de geração de energia, do metano proveniente da decomposição natural dos resíduos orgânicos. A Associação Brasileira de Resíduos Sólidos e Limpeza Pública (ABLP) estima que, para o atendimento de todo o país, sejam necessários em torno de R$ 2 bilhões para a construção de 256 aterros de grande porte e 192 de tamanho pequeno. Porém, o próprio governo federal já admite que não será possível exterminar os lixões até o ano que vem, conforme se imaginava.

“Jogue limpo”

Outra resolução ambiciosa da PNRS é a universalização da coleta seletiva, colocada em prática hoje em menos de 14% dos 5.570 municípios brasileiros. A boa notícia é que o número de cidades que já disponibilizam o serviço a seus cidadãos vem crescendo a galope: pulou de 443, em 2010, para 766, em 2012, de acordo com a pesquisa Ciclosoft, divulgada a cada dois anos pelo Cempre. “A reciclagem só funcionará bem com um processo de coleta seletiva bastante avançado. Se, ao sair do domicílio, o lixo é misturado, o custo da separação é imenso”, explica Albino Alvarez, do Ipea.

Além do poder público e da sociedade civil, a iniciativa privada também ganhou uma série de responsabilidades com o advento da PNRS. À semelhança do que já acontecia antes de 2010 com fabricantes de pneus, pilhas, agrotóxicos e óleos lubrificantes, diversos segmentos industriais – sobretudo os que trabalham com resíduos perigosos (insumos com grande potencial de contaminação) – terão de implementar a chamada “logística reversa”: recolher e reciclar (quando possível) os resíduos dos produtos que fabricam.

“Esse sistema vem para atender a um anseio do consumidor e para reduzir o encargo que as prefeituras têm com a coleta diferenciada. É preciso compartilhar custos e responsabilidades”, argumenta Zilda Veloso, gerente de Resíduos Perigosos do Ministério do Meio Ambiente.

No apagar das luzes de 2012, o Ministério do Meio Ambiente noticiou a celebração de um acordo com fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de óleo combustível para dar a devida destinação às embalagens dos produtos comercializados por essas empresas. Nas regiões sul e sudeste do país, o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom) até já promove um programa chamado Jogue Limpo, que orienta os consumidores finais a descartar os frascos de óleos combustíveis em pontos de coleta específicos, como postos de gasolina.

Na realidade, as empresas que atuam na área assumiram, duas décadas atrás, a missão de recolher o óleo propriamente dito com a finalidade de evitar a contaminação do solo e das águas. “Se passar por um processo de novo refinamento, em que são extraídos os metais pesados incorporados durante o uso no motor do veículo, o óleo se transforma, novamente, num produto de excelente qualidade. E após receber os aditivos apropriados para esse tipo de operação, poderá ser novamente colocado à venda”, explica Zilda Veloso, do MMA.

É preciso dizer que o material descartado é recolhido e transportado até as centrais industriais por empresas terceirizadas pagas pelo próprio Sindicom. Só no ano passado, foram reciclados 57 milhões de embalagens. O volume, porém, ainda é tímido: não ultrapassa 10% de tudo o que é vendido no mercado. Agora, a experiência deverá ser ampliada e replicada em escala nacional.

Ainda no primeiro semestre de 2013, o governo espera fechar mais três acordos setoriais para resolver o problema da destinação dos resíduos de outros produtos que também contêm substâncias contaminantes e que são despejados indiscriminadamente em lixões e aterros sanitários país afora. São exemplos os medicamentos, as lâmpadas (de vapor de mercúrio e de sódio) e os eletroeletrônicos (televisões e geladeiras). Além disso, foi criado um grupo de trabalho para discutir a logística reversa no setor de embalagens em geral.

Apesar de a Política Nacional de Resíduos Sólidos prever punições aos segmentos empresariais que não desenvolverem sistemas próprios de logística reversa, o governo continua apostando na construção de acordos setoriais. A estratégia segue a trilha de alguns exemplos de êxito. Segundo o Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (Inpev), o Brasil é referência mundial na logística reversa de frascos de agrotóxicos: hoje, 94% das embalagens primárias (aquelas que entram em contato direto com o veneno) são retiradas de circulação. Só no ano passado, mais de 35 mil toneladas foram recolhidas – um recorde, desde o início do processo de coleta, em 2002.

Outro caso bem-sucedido é o da logística reversa de pneus – material que, em condições naturais, demora até 150 anos para se decompor. Uma vez recolhido, o pneumático é triturado e reutilizado em diversas aplicações, de asfalto a solas de sapato. Em 1999, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) obrigou a indústria desse segmento a dar uma destinação adequada aos pneus chamados de “inservíveis”, isto é, aqueles que já não se prestem a ser reformados. Desde então, o equivalente a quase 400 milhões de pneus de carros de passeio foi coletado, de acordo com a Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos (Anip).

Os catadores

Ainda no segmento automobilístico, outro exemplo de sucesso em logística reversa é a reciclagem das baterias de chumbo-ácido, aquelas que dão a partida elétrica nos motores de carros. No Brasil, os estabelecimentos que comercializam o produto também são obrigados a receber de volta as peças usadas. Como o país importa quase metade do chumbo que consome, a reciclagem tem fundamental importância econômica nessa cadeia produtiva, que também apresenta índices de reaproveitamento superiores a 90%.

Apesar de indispensável do ponto de vista da conservação ambiental, a logística reversa vai, inevitavelmente, fazer com que as indústrias repassem ao preço final de seus produtos o desembolso com o processo de coleta dos resíduos. No caso de uma lâmpada comum, a representante do Ministério do Meio Ambiente calcula que só o gasto para coletá-la e descartá-la de forma ambientalmente correta, sem reaproveitar um grama que seja, pode chegar a R$ 0,40 por unidade.

“Não vai ter jeito, toda a sociedade vai ter de pagar por isso. Na realidade, ela já está arcando com um custo elevado, uma conta que não estamos acostumados a fazer”, observa Zilda Veloso. “O gasto para despoluir o solo, o subsolo e as águas é muito mais alto, sem falar nas doenças e na pressão sobre o sistema público de saúde”, complementa.

Na avaliação de Albino Alvarez, uma das principais contribuições da logística reversa (e da reciclagem de resíduos) é diminuir a pressão sobre os aterros sanitários – isso, é claro, num cenário ideal, com lixões extintos. “Se o lixo continuar chegando, não há aterros que deem conta”, afirma. Poucas pessoas sabem, mas o gasto representado por uma estrutura desse porte não é nada desprezível.

Estudo encomendado à Fundação Getúlio Vargas (FGV) pela Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (Abetre) mostra que apenas a implementação de um aterro de pequeno porte, capaz de receber até 100 toneladas de resíduos diariamente, pode exigir um desembolso de R$ 16,39 por habitante. Para uma cidade com população de 100 mil habitantes, considerando a média nacional de 1 quilo de lixo produzido diariamente per capita, o investimento mínimo seria, na ponta do lápis, de R$ 1,639 milhão.

Porém, mais importante do que construir um aterro é fazer sua devida conservação – até porque, se não for bem manejado por máquinas e pessoal habilitado, ele pode virar um lixão. O mesmo estudo da FGV calcula um custo anual de cerca de R$ 18,58 por habitante nos trabalhos de manutenção, portanto, superior ao de implantação. “Em alguns países da Europa, muito pouca coisa vai para os aterros. O resíduo é reciclado, compostado (no caso dos orgânicos) ou incinerado. A ideia é que só seja encaminhado ao aterro aquilo que não tenha qualquer outra possibilidade de destinação”, explica Alvarez.

É impossível falar de reciclagem – e da gestão de resíduos sólidos como um todo – no Brasil sem mencionar a importância dos catadores. Não existem dados precisos, mas o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) estima que pelo menos 800 mil pessoas se valham no país do recolhimento de material reciclável como fonte de renda. Sabe-se também que funcionam em território nacional em torno de 1,6 mil cooperativas e associações. A despeito da boa imagem que se faz desse segmento, nem tudo é cor-de-rosa. “Posso dizer que sofremos com o preconceito e com a falta de organização, já que, hoje, a maioria dos catadores está nas mãos de atravessadores”, afirma Eduardo Ferreira de Paula, representante do MNCR.

A desorganização e a informalidade se refletem, principalmente, na grande variação que existe nos preços dos principais materiais recicláveis coletados por catadores, de norte a sul do país. Segundo dados compilados pelo Cempre, a tonelada de papel branco tipo sulfite pode ser vendida por R$ 115 em Rio Branco, no Acre, e por R$ 810 em Lavras, em Minas Gerais. Mil quilos de garrafas PET prensadas variam de R$ 630 em Guarapari, no Espírito Santo, a R$ 1,8 mil em Americana, no interior de São Paulo.

Falta de planejamento

Além desses materiais já tradicionalmente recolhidos, outro item que vem crescendo em importância na balança das cooperativas são as embalagens “longa vida” – compostas por uma mistura de papel, plástico e alumínio – que acondicionam sobretudo sucos e derivados de leite. “Na década passada, a embalagem usada não tinha valor. Atualmente, 30% do material já é reciclado”, revela Vilhena, do Cempre.

Desde 2007, a lei federal 11.445 permite que prefeituras contratem cooperativas e associações de catadores para prestar o serviço de coleta e triagem de resíduos sólidos sem prévia licitação. De acordo com a pesquisa Ciclosoft, realizada pelo Cempre, dos 766 municípios que já dispõem de coleta seletiva, 65% atuam segundo esse figurino. “A Política Nacional de Resíduos Sólidos incentiva as prefeituras a usar as cooperativas de catadores nesse trabalho, e a tendência é que isso cresça. Basta que os prefeitos assim queiram”, destaca o MNCR. Na avaliação de Zilda Veloso, é preciso adaptar os catadores à nova realidade proposta pela Política Nacional de Resíduos Sólidos. “O catador no Brasil surgiu no lixão. Isso a gente não quer mais. É uma atividade sub-humana”, afirma. “Por isso, é necessário investir em capacitação. Treiná-los para que passem a ser separadores, aprendendo a desmontar eletroeletrônicos, por exemplo”, diz.

Helio Mattar chama a atenção para um problema curioso: o fato de a coleta seletiva ainda estar longe de ser consolidada em todo o país. A falta de campanhas de conscientização e a ausência de serviços públicos de recolhimento de resíduos acabam inibindo investimentos da própria indústria de reciclagem. “Os empresários da área só vão investir se existir, de um lado, a oferta do material reciclável e, de outro, a demanda por material reciclado”, esclarece.

O caso do papel ilustra de forma emblemática como a equalização entre oferta de material reciclável e demanda por produtos reciclados carece de planejamento. “Quando o prefeito de um município de grande porte baixa um decreto segundo o qual vai fazer compras sustentáveis priorizando o papel reciclado, o produto disponível no mercado não é capaz de suprir a todo mundo”, exemplifica o diretor-presidente do Instituto Akatu. Segundo a entidade, já houve casos em que indústrias produtoras de embalagens, que também utilizam papel reciclável em seu processo produtivo, “perderam” a matéria-prima para as indústrias de papel reciclado – que pagam mais pelo insumo porque produzem uma mercadoria de maior valor no mercado.

Por essa razão, há um longo caminho até que o Brasil consiga organizar, de fato, uma cadeia de suprimento de material reciclável capaz de garantir as necessidades do mercado. Uma das medidas previstas para disseminar a coleta seletiva é a expansão dos Pontos de Entrega Voluntária (PEVs) em supermercados e varejistas de todo o Brasil, fortalecendo a parceria entre indústria e comércio. O Cempre defende, por exemplo, que todo estabelecimento de vendas com tamanho igual ou superior a 4 mil metros quadrados e estacionamento com no mínimo 115 vagas tenha uma área com pelo menos 4 metros quadrados para a criação de um PEV.

Na avaliação do Cempre, outro gargalo da reciclagem no Brasil é a questão tributária. “No comércio de sucatas, por exemplo, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) é muito impactante. Por causa disso, muitas vezes o pequeno empresário se vê tentado a atuar na informalidade. Temos de melhorar esse ambiente de negócios ruim para o país”, afirma André Vilhena. O diretor executivo da entidade também defende incentivos fiscais para a importação de maquinário, a fim de possibilitar a modernização da tecnologia e do parque industrial de reciclagem. Esse é um dos motivos que podem explicar, por exemplo, o fato de que no comércio varejista um pacote de papel reciclado custe mais caro que o de papel virgem. Para tentar corrigir essas distorções, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) até já criou um grupo de trabalho para discutir possíveis medidas de desoneração. “Como o índice de informalidade na cadeia da reciclagem é alto, a renúncia fiscal por parte do governo seria muito pequena”, sustenta Vilhena.