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O distúrbio chamado dislexia

CEZAR MARTINS

Silêncio é uma palavra com alguns mistérios para a pequena Ana Beatriz Regonha. Tímida, a caçula de três irmãos conhece o significado do substantivo e o emprega com perfeição em qualquer história que vá contar, mas escrevê-lo na lousa seguindo o ditado da professora de português é uma tarefa complicadíssima para essa garota de 11 anos que cursa a quinta série do ensino fundamental. Frequentemente, ela é vitimada pelos ardis do idioma e, com a caneta na mão, sentencia: “Cilessio”. O problema da estudante, cujo nível intelectual é igual ao de seus colegas, assim como a alfabetização (concluída no prazo habitual), está ligado à dislexia, um transtorno de origem neurobiológica que dificulta a decodificação das letras, dos fonemas e a fluência na leitura e na escrita. Assim como ela, de acordo com dados da Associação Internacional de Dislexia (IDA, na sigla em inglês), cerca de 10% da população mundial tem esse distúrbio e boa parte ainda desconhece a razão de tantas dificuldades para ler e compreender um texto.

Esse, no entanto, não é propriamente o caso de Ana Beatriz, assistida desde os 6 anos por uma das muitas associações que dão apoio a jovens e adultos disléxicos no Brasil. Todas as terças-feiras, pela manhã, acompanhada da mãe, a menina participa de sessões de terapia em que, ao lado de outras crianças da mesma idade, pratica leitura, participa de jogos educativos e é estimulada por uma educadora a treinar a escrita para, lentamente, ir descobrindo meios de evitar seus erros mais comuns. A dislexia e a pressão para que tenha o mesmo aproveitamento dos outros alunos já não a assustam tanto. Ela diz que gosta mais das aulas de história e matemática, mas ainda enfrenta a resistência de alguns educadores reticentes quanto à necessidade de adaptar seus métodos de ensino e avaliação. “No começo do ano, tive de ir à escola para conversar com uma das professoras a fim de colocá-la a par da situação. Ela achava que o aproveitamento de minha filha em sua matéria, que podia ser bem melhor, decorria de falta de dedicação”, relata a mãe de Ana Beatriz. “Hoje eu compreendo melhor suas dificuldades e sofro menos”, conclui.

Embora a dislexia esteja catalogada na Classificação Internacional de Doenças, publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os especialistas preferem chamá-la de distúrbio de aprendizagem. A perturbação é causada pela inabilidade do lado esquerdo do cérebro em reconhecer automaticamente letras e sílabas escritas, relacioná-las ao som produzido pela fala e transformar esse conjunto em um repertório de palavras que serão úteis em leituras futuras e na produção textual. “É um transtorno de base neurológica, uma disfunção específica da área da linguagem”, explica a psicopedagoga Tânia Freitas, diretora da Associação Brasileira de Dislexia (ABD). Segundo ela, o indivíduo geralmente tem ótimas noções de espacialidade e de proporcionalidade e se expressa bem verbalmente, mas talvez tenha um vocabulário reduzido. “É aquela pessoa que dá voltas e voltas para contar uma história, algumas vezes não entende piadas, confunde as letras quando escreve e lê sem fluência”, diz.

Evidências científicas indicam que o distúrbio tem origem genética, é hereditário e não há cura completa para ele nem remédios capazes de colocar um fim no problema. A única saída é o acompanhamento constante por fonoaudiólogos, psicólogos e neurologistas especializados, por um longo período, até que o aluno aprenda a driblar suas dificuldades. Além disso, é extremamente recomendável que professores e pais participem da alfabetização, oferecendo instrumentos visuais e auditivos mais eficientes para os disléxicos. “O mundo é letrado e toda criança normal entra na escola com vontade de aprender a ler e a escrever. Ninguém quer ficar para trás, ser alvo de gozações, e esse problema pode ter consequências graves no futuro”, observa Tânia. De acordo com a psicopedagoga, que é especialista no tratamento de adolescentes e adultos, dependendo da extensão do trauma a que são submetidos por causa do distúrbio, há casos de disléxicos que se tornam dependentes químicos.

Projeto de lei

Em alguns países, como a Inglaterra e os Estados Unidos, o assunto é debatido amplamente e há políticas públicas que pregam maior atenção aos alunos com esse tipo de dificuldade; no Brasil, todavia, a dislexia ainda costuma passar longe dos despachos das autoridades estaduais e municipais e também dos ministérios que deveriam se preocupar com o tema. Enquanto isso, organizações não governamentais, como a ABD e o Instituto ABCD – que presta o atendimento gratuito a Ana Beatriz e a outras crianças – tentam contribuir com o diagnóstico e a capacitação de professores para a identificação, nas salas de aula, de alunos com sintomas do distúrbio. “A ideia não é levar o educador a fazer o diagnóstico, mas torná-lo informado e esclarecido sobre a questão”, diz Mônica Andrade Weinstein, diretora presidente do Instituto ABCD.

O fato de existirem outras entidades assistenciais em Brasília, Curitiba, Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul mostra que, a despeito da distância oficial, o tema faz parte das preocupações da sociedade civil, exigindo, portanto, maior atenção do Estado. Segundo Mônica, o problema diz respeito às secretarias de saúde, da educação e do desenvolvimento social. “A articulação de programas que envolvam essas três áreas é uma das maiores dificuldades que enfrentamos, devido a questões burocráticas e políticas, quando procuramos tratar do assunto com os governos municipais. Contudo, quando a integração ocorre, o resultado é muito satisfatório”, explica.

Um projeto de lei de 2010, ainda em discussão na Câmara dos Deputados, defende a criação, pelo poder público, de programas de diagnóstico e tratamento da dislexia para estudantes da educação básica, por meio de equipes de profissionais das áreas médica, educacional e psicopedagógica – além de tornar obrigatório que as escolas assegurem aos alunos recursos didáticos mais adequados a sua aprendizagem. A proposta, contudo, encontra resistência em diversas instituições e no próprio governo federal, tendo gerado uma polêmica em torno até mesmo das evidências da existência da disfunção. Relatório da deputada federal Mara Gabrilli (PSDB), na Comissão de Educação e Cultura, favorável à aprovação da lei, cita o Conselho Federal de Psicologia (CFP) como um dos líderes do movimento que “nega a própria dislexia”. Segundo Marilene Proença, representante do CFP, a questão a ser observada é a baixa qualidade do sistema educacional brasileiro. “A escola não atingiu níveis minimamente apropriados no Brasil. A preocupação do Conselho Federal de Psicologia é que as dificuldades de alfabetização são resultado de falhas na formação dos professores, de grades curriculares mal preparadas e de outros problemas. Estamos atribuindo às crianças a culpa por não saberem ler e escrever, mas oferecemos uma escola muito abaixo do que elas precisam”, avalia.

Outro receio se relaciona ao uso abusivo de medicamentos, devido ao que os estudiosos chamam de comorbidades da dislexia. Geralmente, um disléxico costuma apresentar, ao mesmo tempo, outros tipos de distúrbios. Um dos mais comuns é o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, conhecido pela sigla TDAH. Seus sintomas são a incapacidade de concentração por um longo período em determinada atividade, inquietude e impulsividade e, embora seja reconhecido pela OMS, há também estudiosos que tratam o assunto apenas como mito. De qualquer maneira, quando o TDAH é diagnosticado, uma das soluções é a prescrição de um estimulante do sistema nervoso central de largo consumo. O Brasil é o segundo país que mais utiliza a droga, que é de uso controlado, segundo pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, e a administração a crianças, na opinião de Marilene, deveria ser evitada por causa dos efeitos colaterais. “O aluno que costuma correr pela sala toma essa pílula e fica quieto. Mas o custo disso é altíssimo. Ela inibe, por exemplo, o apetite de crianças em fase de crescimento”, relata. Já os defensores do projeto de lei alegam que, como a medicação só pode ser indicada por neurologistas, sua utilização ainda estaria sob parâmetros seguros.

Para tentar sensibilizar os governantes e outros setores da sociedade para a importância do tratamento da dislexia, o Instituto ABCD lançou, em outubro de 2012, uma campanha batizada de “Eu Posso!”, cuja divulgação ganhou o apoio de diversos artistas que aceitaram tirar fotos com a camiseta criada pela entidade. É muito pouco para resolver a questão de vez, mas a fama do cantor e ex-ministro Gilberto Gil, da ex-jogadora de basquete Hortência e de outras celebridades contribuiu para colocar o tema em destaque nos principais veículos de comunicação, mesmo que por alguns dias. “Em outros países, o estigma da dislexia já foi vencido. No Brasil, infelizmente, o portador do distúrbio ainda tem receio de falar sobre ele em público”, lastima Mônica Weinstein.

Diagnóstico

Originada do grego, é bem possível que a palavra “dislexia” tenha sido utilizada pela primeira vez por um oftalmologista alemão, Rudolf Berlin, no final do século 19, quando estudava o caso de um jovem que tinha visão e nível intelectual normais, mas apresentava dificuldades de leitura e escrita. Já naquela época acreditava-se que a falha decorria de causas biológicas e era influenciada por fatores hereditários, mas pouco se sabia sobre as funções cerebrais responsáveis pela decodificação dos sinais escritos, conhecimento que se tornou maior e mais difundido apenas nas últimas décadas. Atualmente, imagens captadas por aparelhos de ressonância magnética indicam que as áreas ativadas no cérebro de um disléxico, quando colocado diante de um texto, são diferentes das de um indivíduo que não apresenta o transtorno.

Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, o diagnóstico da dislexia não é simples e seu custo pode ser muito elevado para as famílias, em especial as de baixa renda. Ele é realizado clinicamente por uma equipe de profissionais de diferentes especialidades – psicopedagogos, fonoaudiólogos e neuropsicólogos – e pelo método de exclusão. Isso significa que uma criança com sintomas do distúrbio necessita passar por uma série de exames físicos para descartar qualquer outro tipo de moléstia capaz de afetar a alfabetização, além de ter seu histórico escolar e familiar esmiuçado para comprovar que tem recebido todos os estímulos fundamentais para o bom desempenho em sala de aula. Outra ressalva importante que os especialistas fazem é que nenhum aluno deve ser diagnosticado como disléxico até que tenha atingido a plena maturidade cerebral e emocional para ser alfabetizado, o que só costuma acontecer a partir dos 10 anos. Antes disso, é comum a ocorrência de trocas de letras e erros ortográficos. Mesmo assim, os professores devem estar atentos aos casos de aparecimento inesperado de dificuldades na aprendizagem – nessas situações as crianças são classificadas como “de risco” e já podem começar a receber acompanhamento adequado para evitar dores de cabeça futuras.

Na prática, medidas simples capazes de estimular o aprendizado por caminhos menos tradicionais, educadores mais bem informados e escolas que atuam com profissionais especializados mostram que a evolução escolar de alunos disléxicos pode ser tão satisfatória quanto a do restante da sala. “Trabalho, anualmente, com 600 alunos e é normal que de seis a oito deles sejam diagnosticados como disléxicos”, conta Fernanda Rissi, coordenadora de ensino fundamental do Colégio Dominante, escola particular de São Paulo. Ela diz que essas crianças passam por um sistema de avaliação diferente, ficam mais perto, na sala de aula, dos professores – que já estão mais conscientes sobre o problema – e têm a garantia de que as orientações dadas pelas psicopedagogas que fazem o acompanhamento serão consideradas.

“É importante trabalhar a confiança da criança com dislexia”, ressalta Fernanda. “Um de nossos primeiros alunos portadores do distúrbio terminou a faculdade de física, na Universidade de São Paulo (USP), e o pai nos mandou um e-mail para agradecer o apoio dado ao filho”, relata. O exemplo bem-sucedido, contudo, ainda é exceção entre os alunos brasileiros. O mais comum, segundo alerta Tânia Freitas, da ABD, é as crianças excluídas do processo educacional se tornarem jovens desinteressados pelas aulas, com baixa autoestima, podendo até mesmo, em casos extremos, abandonar os estudos. Na fase adulta, se tiverem a chance de descobrir as razões de suas dificuldades, sua trajetória pessoal e profissional já estará marcada por fracassos inexplicáveis e crises familiares severas, e terão um árduo caminho a percorrer na tentativa de reescrever, agora de forma certa, sua história.

Inventores e artistas

A despeito das dificuldades cotidianas para entender fonemas e ler fluentemente, os disléxicos possuem o hemisfério direito do cérebro bastante desenvolvido e costumam se adaptar bem a tarefas que envolvam criatividade. Talvez por isso exista uma lista extensa de atores, esportistas, músicos, pintores e gênios da ciência portadores do transtorno que, após superar as agruras da infância e da adolescência, conseguiram ser reconhecidos por suas virtudes na vida adulta. A lista é extensa, podendo ser citados Thomas Edison, inventor da lâmpada, Walt Disney, criador dos desenhos animados, e, na atualidade, estrelas de Hollywood, como Tom Cruise e Whoopi Goldberg, que costumam decorar os roteiros de filmes com a ajuda de gravadores.

Cruise acredita ter sido curado após aderir à cientologia (seita que mistura a psicoterapia com ensinamentos do hinduísmo, budismo e cristianismo), mas Whoopi, que ganhou um Oscar por sua atuação no filme Ghost e não se furta a abordar o transtorno com a imprensa, admite que teve problemas para esquecer as críticas de professores e colegas que não compreendiam seu baixo rendimento escolar. “Para um jovem, o efeito das palavras ‘estúpido’ e ‘burro’ é devastador”, diz.

Nascido na Alemanha e naturalizado suíço, o cientista Albert Einstein, ganhador do Prêmio Nobel em 1921 e considerado o maior responsável pela revolução nos conceitos modernos da física, começou a falar tardiamente e só teria sido alfabetizado aos 9 anos de idade, mas não há a certeza de que realmente sofresse do distúrbio. Sobre a escritora inglesa Agatha Christie, que morreu em 1976 e se destacou como autora de livros do gênero policial, paira a mesma dúvida. O fato de boa parte de suas histórias ter sido ditada a sua secretária faz os especialistas suporem que a “Rainha do Crime” tenha sido portadora do transtorno.

Já o escocês Jackie Stewart, tricampeão mundial de Fórmula 1, tomou ciência de que era disléxico quando um de seus filhos foi diagnosticado com a doença. Ele conta, em suas memórias, que ficava envergonhado quando a professora o convocava para fazer leitura em voz alta. “Olhava para a página e não enxergava nada além de uma massa de letras indecifráveis. Todos me tinham como um garoto pequeno e atrevido, com um brilho nos olhos, mas, naqueles momentos, minha fina camada de confiança era simplesmente arrancada.” Motivo de chacota na escola, o ex-corredor chegou a ser agredido por outros alunos quando tinha 14 anos. Adulto, interessou-se pela mecânica de automóveis, algo em que já se destacava e que o levaria para as pistas de corrida. Outro piloto disléxico, mas ainda em atividade, o inglês Justin Wilson tornou-se embaixador da Associação Internacional de Dislexia, com sede nos Estados Unidos.