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Os planos para voltar ao cartaz

Ninguém mais vai poder falar que “o cinema brasileiro é uma porcaria”. A atual safra de filmes é robusta o suficiente para contemplar todos os gostos, ainda que somente uma pequena parte deles esteja conseguindo chegar às telas (do cinema e da televisão). Hoje em dia, não há mais lugar para frases pejorativas, repetidas à exaustão por pessoas que ignoravam a pequena e respeitável produção autoral entre os anos de 1970 e 1990. Sim, porque o cinema nacional nunca careceu de filmes de boa qualidade do ponto de vista criativo. Houve durante décadas, é verdade, um atraso técnico que comprometeu enormemente a boa aceitação das películas produzidas no país, fazendo com que muitas delas mofassem nas prateleiras das distribuidoras. O momento agora é outro, podendo-se afirmar que o cinema brasileiro cresceu, melhorou tecnicamente e se diversificou.

Tal panorama, aliado aos bons ventos da economia, levou a Agência Nacional do Cinema (Ancine), subordinada ao Ministério da Cultura, a tomar uma medida que, se não agrada a todos, pelo menos enche de otimismo uma parcela expressiva daqueles que se exercitam na área. O Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual, que estabelece bases para a ação do poder público no setor até 2020, recebeu de agosto a dezembro de 2012 informações e críticas de gente da área com o intuito de colocar o cinema brasileiro num patamar nunca almejado. “O plano é muito bem desenvolvido”, diz Andréa Glória, ativa na área de produção desde 1986, em Brasília, e hoje produtora executiva da Cor Filmes. “Ele oferece ótimas perspectivas para o futuro da comunicação, principalmente com as novas tecnologias, aplicativos e plataformas. Mas, para que consiga alcançar seus objetivos no prazo estimado, é preciso que haja uma real interlocução com o público interessado em filmes brasileiros.” Segundo Andréa, os setores produtivos independentes deveriam ser priorizados pelo governo, tendo em vista a situação de monopólio que se vive no Brasil, tanto no cinema quanto na televisão.

O fato é que, até 2020, o Brasil quer se tornar o quinto mercado para cinema e televisão do mundo – tarefa nada fácil para quem ocupa, hoje, a décima posição. As dificuldades para atingir esse objetivo são de várias ordens. Por exemplo, será preciso dobrar o número de salas de exibição (eram 2.206 em 2010), para receber 220 milhões de espectadores a cada ano.

Segundo as metas estipuladas pela Ancine, nos próximos oito anos vai passar dos atuais 381 para 670 o número de municípios brasileiros com salas de cinema. Destas, 358 serão abertas em cidades de até 100 mil habitantes (6,8% do universo de municípios do país). “Há a necessidade de restaurar e construir novas salas e de recriar nas comunidades o hábito de assistir filmes brasileiros. Esse papel vem sendo desempenhado atualmente pelos cineclubes e Pontos de Cultura que atuam com o audiovisual”, ressalta Andréa Glória.

Curva ascendente

A grande investida do governo, porém, diz respeito ao cinema nacional, e ela busca conquistar uma fatia maior do público atacando em três frentes: produção, distribuição e exibição. A meta é que o filme brasileiro fique com um terço da receita da bilheteria das salas comerciais em 2020. Nos próximos anos, a ideia é aumentar o número de distribuidoras que trabalham com filmes nacionais e incrementar a participação das produtoras independentes no mercado. Além disso, será necessário desbravar novos nichos para os filmes nos canais da televisão aberta e ampliar a participação das tevês a cabo na exibição de produções nacionais.

Ao mesmo tempo, os investimentos devem chegar à distribuição e ao parque exibidor. O plano projeta a ampliação do número de empresas brasileiras entre as grandes exibidoras (com mais de cem salas de cinema no país) e prevê que as distribuidoras de capital nacional passem a fornecer os filmes que respondem pela metade dos bilhetes vendidos (hoje o percentual gira ao redor de 29%). No que diz respeito à distribuição, a meta trabalha com prognósticos bastante otimistas: o número de longas-metragens distribuídos por empresas nacionais deve passar dos atuais 64 para 130 filmes por ano.

Feito isso, imagina-se, o público fará a sua parte, simplesmente ligando a televisão, alugando um vídeo ou indo ao cinema. Entretanto, não se trata de algo tão simples, já que o preço do ingresso é ainda proibitivo para parcela ponderável da população e a locação de vídeos é cara e compete com a pirataria. E há ainda a televisão. Bem, na telinha todo mundo sabe que, infelizmente, na maior parte dos casos a audiência premia os piores programas.

Seja como for, fato é que o momento favorece o mercado cinematográfico, na opinião do exibidor e distribuidor Adhemar Oliveira. “Do ponto de vista do consumo, a situação é boa, já que o Brasil tem uma população grande, a economia vai bem e a curva do cinema é ascendente”, avalia. Ele fala com conhecimento de causa. Oliveira é diretor de programação dos circuitos Espaço Itaú de Cinema, Cinearte e Cinespaço, que somam 23 cinemas, com um total de 113 salas espalhadas por nove estados. Há 20 anos no setor, ele é conhecido como o homem que dá tela aos filmes brasileiros, e é dessa posição que lança um alerta. Segundo ele, é fundamental aumentar o parque exibidor através de políticas próprias, como, por exemplo, o credenciamento no Regime Especial de Tributação para o Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica (Recine).

O Recine integra o Programa Cinema Perto de Você – um dos pilares do Plano de Diretrizes e Metas – e consiste no seguinte: a empresa que tem seu credenciamento aprovado fica desobrigada de recolher as contribuições para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) sobre a receita bruta, livrando-se, também, das taxas que incidem na importação de equipamentos para utilização em complexos de exibição, bem como no material para a construção dos espaços. Com isso, o Recine reduz em cerca de 30% os custos para a instalação das salas, segundo informações divulgadas pela Ancine – salas modernas, bem entendido. Por exemplo, a digitalização, a sofisticação que deu outro ar aos cinemas, é um dos principais eixos do Programa Cinema Perto de Você, e o governo acredita que, por meio dela, será possível reduzir desequilíbrios na distribuição e na expansão do parque exibidor. Em outubro, a Ancine analisava 25 pedidos de credenciamento no Recine para projetos de cerca de 150 salas totalmente digitalizadas. “No total, o Recine contribuirá para a digitalização de cerca de 1.850 cinemas em todo o país”, projeta o site da agência.

Tata Amaral, diretora e produtora da Tangerina Entretenimento, de São Paulo, também acha importante que o enfoque sobre o parque exibidor leve em conta o número de salas, mas chama a atenção para outro problema: a qualidade delas. “É essencial que o Brasil ganhe mais pontos ou salas de exibição, mas eles precisam ser bons. É muito desagradável constatar que a qualidade do filme que você produziu só é comprovada em estúdios de som ou em laboratórios de imagem”, queixa-se.

Torneios sem sentido

Na contramão do otimismo, o diretor e produtor Ugo Giorgetti, conhecido por não ter papas na língua, dispara: “O Brasil está sempre se colocando metas irreais, disputando campeonatos imaginários, fazendo parte de torneios sem sentido, onde procura saltar etapas e espertamente aparecer em quinto lugar numa coisa, em quarto noutra etc. etc. Na verdade, o Brasil está quase sempre em último lugar, como mostram os índices sobre educação e qualidade de vida”.

Giorgetti afirma que, no caso do audiovisual, o governo pode traçar quantos planos quiser. “Aliás, nossa especialidade é a redação de planos – que permanecem por anos e por décadas apenas assim.” Cineasta com grande experiência, ele é um dos poucos diretores que sobreviveram como tal durante os anos de agonia do cinema na era Collor. Autoral, seu cinema sempre foi encarado como “paulistano” demais para decolar fora de São Paulo, mas a verdade é que longas como Festa (prêmio de melhor filme de 1989 no Festival de Gramado), Sábado, Boleiros e, o último deles, Cara ou Coroa, foram exibidos nos cinemas, mas sofreram e ainda sofrem com a escassez de salas e de espaço na televisão. “Quem se importa? O governo pode muito pouco, ou nada, no campo do audiovisual, e sabe perfeitamente disso. Se você quer ter alguma opinião de quem realmente conta nessa área, no Brasil, acho que deveria se dirigir à televisão e a quem a comanda”, alfineta.

Prós e contras à parte, vale a pena tentar entender por que certos filmes não conseguem entrar no circuito comercial. Na opinião do distribuidor Oliveira (que exibe em média 80 filmes nacionais por ano), muitas vezes o problema está justamente nos “certos filmes”. Isso porque, “diferentemente da tevê, que tem uma experiência mais aprofundada e um sistema de produção mercadológico mais profissional, o cinema brasileiro ainda é de autores. Só agora as produtoras começam a tomar a dianteira, passando a ouvir o mercado. Então, há ainda uma vulnerabilidade em termos de resultados”, ele explica. De acordo com Oliveira, do ponto de vista da distribuição, existe certa dificuldade para descobrir com quem os filmes estão falando, a quem eles se dirigem. “Quem pergunta vai achar, quem não pergunta pode acabar falando sozinho. A culpa não é do mercado nem do exibidor. Falta clareza. A televisão brasileira é profissionalíssima nisso. Eles estão sempre pesquisando no meio para saber como a coisa está indo”, assinala.

Um levantamento apresentado à imprensa pelo presidente da Ancine, Manoel Rangel, mostra que a performance do cinema nacional, em 2011, foi boa, sendo os filmes brasileiros responsáveis por 12,7% da bilheteria total do país. Se, em 2010, o sucesso de um único filme (Tropa de Elite 2) engordou as estatísticas, dos 87 filmes lançados comercialmente no ano seguinte, sete atingiram a marca de 1 milhão de espectadores, e três foram vistos por mais de 2 milhões de pessoas. A venda de 140 milhões de ingressos resultou numa bilheteria de R$ 1,4 bilhão, tornando o Brasil o principal mercado latino de cinema do ponto de vista econômico. No entanto, é preciso lembrar que a maior parte das produções nacionais exibidas não conseguiu sequer ultrapassar a faixa de 100 mil espectadores.

Em 2012, o desempenho provavelmente não será o mesmo, mas também não estará entre o piores. Os números apurados na primeira semana de outubro de 2012, por exemplo, indicam que o público acumulado de janeiro até aquela data foi de 7.843.390 pagantes, contra 103.316.293 para os filmes estrangeiros. Em termos percentuais, isso significa que apenas 7,6% do público de cinema preferiu assistir a uma produção nacional. Ainda que a disputa por salas seja desigual (foram lançados 55 filmes brasileiros e 187 estrangeiros), o percentual é baixo, mas não houve uma queda preocupante.

O cinema brasileiro vive, então, um momento de equilíbrio, tendendo para um crescimento regular e a longo prazo, mas na opinião de alguns cineastas isso não se reflete no âmbito econômico, já que, dentre a pequena fatia dos filmes que conseguem captar integralmente os recursos previstos nos orçamentos, poucos chegam às salas de cinema e, quando isso acontece, sofrem com a falta de divulgação. “A maioria não tem distribuidora que os insira na publicidade da tevê aberta, com exceções mínimas, como a Globo Filmes e outras similares, mas que divulgam em sua maioria filmes estrangeiros e poucos nacionais”, lamenta Andréa Glória. Com isso, a produção brasileira acaba ficando limitada à exibição em mostras e festivais de cinema, “e, quando muito, no espaço restrito da tevê aberta, e em poucos canais de tevê a cabo, exceção feita ao Canal Brasil, que é o único exclusivo para filmes nacionais”, lembra a produtora.

Cinema itinerante

O plano do governo, que está em discussão na internet, pretende mexer nesse vespeiro, fazendo ajustes por meio da lei 12.485/2011, que estabelece regras para que as tevês a cabo exibam conteúdo brasileiro em horário nobre. “Essa é a grande revolução na atividade audiovisual brasileira. Há anos já via isso acontecer na França, Espanha, Alemanha”, ressalta Tata Amaral. “Lá a televisão financia e licencia a produção independente”, afirma. Tata participou de vários festivais internacionais, com filmes como Um Céu de Estrelas e Antônia, e integra a parcela de realizadores inseridos na produção televisiva. A sua minissérie Trago Comigo, feita em parceria com o SescTV e a TV Cultura de São Paulo, é um bom exemplo de como é possível fazer audiovisual de qualidade para a televisão.

Nesse sentido, ao que tudo indica, os ventos também sopram a favor, pois em 2012 o Ministério da Cultura e a Ancine anunciaram investimentos de R$ 205 milhões em produção e distribuição de filmes e séries de televisão, via Fundo Setorial do Audiovisual, o principal mecanismo de fomento ao setor no Brasil. É esperado também que com a abertura de novas salas multipliquem-se os espaços para a exibição de curtas-metragens. “Criaram uma lei para a retomada da Lei do Curta”, diz Andréa Glória. Ela salienta que a população brasileira deixou de ter acesso aos filmes de curta duração realizados com recursos públicos, pois, sem a obrigatoriedade da lei, eles perderam o espaço de formadores de público. “A lei nacional está vigorando, mas não vem sendo aplicada e fiscalizada há muitos anos”, lastima.

Um bom espaço para os curtas deve surgir através de salas públicas de exibição e do cinema itinerante, outro projeto que o governo promete colocar em prática nos próximos oito anos. Para contornar o problema da concentração regional, ampliar o acesso ao cinema e a circulação de filmes brasileiros, o Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual prevê que governo federal e administrações estaduais e municipais invistam na criação de uma rede de 300 espaços públicos de exibição até 2020. Quanto ao cinema itinerante, a meta é fazer com que os filmes circulem em 500 municípios “sem-tela”. “O número de salas é irrisório e ainda padecemos do fato de que o grande público, ao longo de décadas, ficou sem assistir filmes brasileiros, tornando-se refém da produção americana e das exibições em televisão aberta”, declara Andréa Glória.

Ela observa que o alto preço dos ingressos e o fechamento dos cinemas de bairro impuseram uma distância entre os filmes e o público que podia ir a uma sala perto de casa. “Por isso, acho que o cinema itinerante é um dos caminhos, e já provou que deu certo em diversos lugares”, avalia. Para Adhemar Oliveira, a questão do custo do ingresso merece ser vista com cautela. “Quando se fala disso é preciso considerar o preço médio, já que o idoso e o estudante – que representam 80% dos pagantes – têm meia-entrada.” Ou seja, o ingresso está caro, na verdade, para os 20% restantes. “Para quem investe, o preço está justo”, rebate Adhemar Oliveira. De acordo com ele, com a abertura de novas salas, o valor tende a cair. “É a lei de mercado”, diz.

Do ponto de vista da produção, há menos dificuldades em relação às décadas passadas, em parte pelos avanços tecnológicos, em parte porque a formação de pessoal especializado (roteiristas, cinegrafistas, produtores, técnicos e atores) vai pouco a pouco se adensando. Ainda que se critique a falta de roteiristas e produtores com visão de mercado, a realidade mostra que não têm faltado produções. O problema é que muitas delas não se concretizam, ou seja, há uma porção de filmes que naufragam já no processo de captação. “Minha maior dificuldade é levantar recursos para o desenvolvimento dos projetos e a aquisição de direitos, entre outros fatores, pois a execução demanda prazos longos”, afirma Andréa Glória. “Começamos a desenvolver um projeto em 2001, e mesmo com todo o potencial ele não foi adiante. Fizemos pesquisas, alguns tratamentos de roteiro, acordos de cessão de direitos de autor, diretor, produtora, mas, como não foi executado no prazo correspondente, o projeto acabou na gaveta, ainda sem perspectivas concretas de retomada”, ela conta.

A dificuldade é a mesma para a diretora Tata Amaral. “Financiamento é sempre o maior problema”, diz. Entretanto, na visão de Ugo Giorgetti, a questão não se encerra aí. “O cinema concretamente não existe mais. Não se pode falar mais em filmes, pelo simples fato de que a Kodak não existe mais; a Fuji acabou de anunciar que não produz mais negativo para filmes e a Panasonic, a Arriflex e a Aaton deixaram de fabricar câmeras de cinema, a não ser por encomenda.” O diretor de Cara ou Coroa argumenta que o cinema não existe mais sequer nas salas, cujas telas, apesar de nos referirmos a elas como “telonas”, se tornam cada vez menores, e cuja projeção já é digital, em grande parte. “Portanto”, ele diz, “minha maior dificuldade como diretor neste momento é aprender a fazer televisão, tecnicamente e talvez como assunto.”