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O Natal Milagroso do Ti’Olímpio

Ti’Olímpio exemplava de ser homem livre de boca: falava o que viesse à cabeça. Culto-religião não tinha. Talvez por influência do avô, Seu Valeriano, meio maçom, meio positivista. Paixão mesmo era com a Verdade. Não a soubesse, calava. Perguntado, respondia sem rodeios.

A seu tempo, a Medicina era ciência exata. Palavra de médico não se contestava, nem por mera caçoada. Seria o mesmo que negar a existência de Deus, duvidar sobre a virgindade de Maria ou das ocultas sentenças do Criador. Mesmo porque, em termos de Religião e aperreios do corpo, dúvida não havia em Transvalina. Exceto o Ti’Olímpio, único, com a boca solta.

Ideias escalafobéticas. Achava por exemplo que uma coisa é tarde caindo, conforme aqueles poentes majestosos da cidade. Outra coisa seria a chegada da noite. “Tarde” parecia-lhe despedida das luzes. “Anoitecer”, a chegada sorrateira das sombras, império da luxúria, da mentira. 

O povo maldava dos seus rompantes, pois ele gostava de corrigir os falantes. Até o mundo, se pudesse. Odiava a palavra “beiço”. Mais ainda se alguém machucava o “beiço de baixo” ou “beiço de cima”. Já viu só? O certo é “lábio inferior” e “lábio superior”.

— Se alguém falar errado perto de mim, eu “corrujo” na hora.

O seu ponto fraco estava em não pronunciar corretamente os tempos do verbo corrigir.

Findo o expediente, Ti’Olímpio visitava casa por casa, levando e trazendo as verdades de cada família. Canal vivo da rede de intrigas locais. Somente concedia senhoria à Diretora do Grupo Escolar Professor Firmino, Dona Eulâmpia Maricá. Pesadona, de verdes olhos autoritários, coxas grossas, sapatões e pisadas de estilo militar. Mulher direita, não se escancara em risadinhas, segundo depunha Ti’Olímpio.

Seus olhares não vadiavam sobre as preferidas do erotismo municipal. Bastavam-lhe os obséquios da vida conjugal. Dona Bartira, pejada de filhos, mal se arrumava para a Missa do domingo. Mas a cunhada, igrejeira, era pau para toda obra. Com a vinda do novo Padre Cunegundes, mais chegado a obras sociais, diziam que Carismático, Tarsila vivia de limpar a Igreja, dar aulas de catecismo, ensinar o b-a-bá do culto católico. Sempre de preto, puxava o coro dos cantores. Com o rosto pontilhado de verrugas, mais inspirava a castidade do que volteios demoníacos.

Nos últimos tempos, Ti’Olímpio gastava mais tempo na casa da viúva do Compadre Chico Espanhol, Dona Filó. Grande amigo, o compadre gostava de viajar e contar folias do seu tempo em Sevilha. Dança, música, bebidas, mulheres. Tudo contado a meia-voz, a fim de não magoar os brios de Dona Filó.

Os campos do amor têm muitas flores, coloridas são as vestes dos ciganos, com os seus corações andejos e fervente sangue. Quando Chico Espanhol vinha com suas lorotas, Dona Filó, em muxoxo, desdenhava os vigores do parceiro.

– Quem te viu, quem te vê.

E lançava-lhe o bordão:

– Quién fué a Sevilla perdió su silla.

O Compadre Chico Espanhol guardava variada biblioteca cujos livros ia emprestando a Ti’Olímpio. Este gostava mais dos escritos anarquistas, tinha a devoção de Fourier, amava as libertinagens, todos os poemas de maldizer, os folhetins picarescos. Tudo às escondidas, a fim de não tisnar o perfil de homem reto e inflexível. A bem durar sua vida, não desejava quebra dos princípios éticos.

Nos derradeiros dias de peregrinação diária, fechadas as contas de partidas dobradas do Borrador, feita a limpeza do açougue, ligado o frigorífico, Ti’Olímpio sentia-se mais solto nas visitas a Dona Filó, coitadinha, tão sem rumo. Gozava o aroma do café coado na hora, as quitandas fresquinhas, a prosa cada vez mais picante. Ele não tinha reparado, antanho, nos cabelos negros, na colante saia cinza, com forte abertura do lado, de onde emergiam pernas imortais. Os seios soltos na blusa flácida.

Passou a assuntar discretamente a opinião dos outros, coisa que nunca lhe ocorrera. Seres vulgares, de botecos e sorveterias, viviam de injuriar pessoas abastadas, autoridades e até de manchar a reputação das senhoras da sociedade. O que ouvira, à socapa: diz-que Dona Filó dava mais que chuchu na cerca. Como pode? Cavalheirescamente a acompanhou às barraquinhas, chegou a oferecer-lhe discreta prenda: no alto-falante o disfarçado galanteio: “Vamos ouvir Tenderly que alguém oferece a alguém”.

Até o nome de Dona Bartira entrava na roda da falação. Viram o padre novato, Cunegundes, a galgar com ela pela escada do coro, as mãos apoiadas nos braços soberbos. Ou com os olhos cravados nas pernas de meias negras, a subir rumo ao campanário. Ali tem coisa, repisava o barbeiro Argemiro.

Ti’Olímpio queimava etapas, vociferando insultos aos falastrões. Quer dizer: isso na primeira fase. Diziam que o Padre Cunegundes instruíra Dona Bartira a reconduzi-lo ao Catolicismo. Chegaram a inventar que ele era kardecista, mediúnico, meio holístico, tinha parte com o Demo.

Ti’Olímpio passara a meditar. Quando Dona Bartira desejava visitar Belo Horizonte, fazer compras, a solução era sempre a mesma: vá com Tarsila, a irmã. Ele, por princípio, jamais faria o desplante de sair de Transvalina, sua única e última trincheira.

Agora vinham os poréns. Um dia, Dona Tarsila chegou à casa com novidade: o Padre Cunegundes queria que ela e Dona Bartira ensaiassem o Coro do Natal. Seria a maior festa religiosa de toda a História de Transvalina. Mas precisava de um homem honrado e experiente que fosse à Capital fazer as compras do material festivo, na Casa Cor. E olhou com candura para Ti’Olímpio.

As pontas começaram a juntar-se. Dona Filó, de confidência em confidência, deixou rolar no chão da fantasia a moeda da perdição: que tal, Compadre Olímpio, irmos juntos a BH? Tenho saudade do movimento de lá. O Chico, quando me levava, nas raras vezes, tomava o Oeste Hotel. A gente ia ao Cine-Teatro Glória, ver as peças de sucesso do Rio, com Procópio Ferreira, Eva Tudor, Palmerim. Nada da Pensão Boa Noite, na Lagoinha, Praça Vaz de Melo – e piscava maldosamente os olhos – aquela em que se afundou o Compadre Boanerges.

Caso famoso em Transvalina. Compadre Boanerges perdera a jardineira da Empresa Romeu para a terrinha natal e resolvera dormir perto da rodoviária. Ao acordar no dia seguinte, tinham roubado tudo dele, inclusive as calças. O dono da Pensão Boa Noite emprestara-lhe uma calça velha e o aguerrido oficial da Força Pública tivera de caminhar a pé, de volta, batendo os cinquenta quilômetros da estrada carroçável.

Dona Filó não suportava mais os bons princípios da paróquia. Padre Cunegundes, aquecido pelas suas múltiplas aparências, começou a arquitetar piedosas consolações à sua viuvez. No entender dela, o Ti’Olímpio estaria mais à mão. Prometera a ele seguir pelo ônibus da Empresa Campo Limpo, rumo a BH.

O milagre começara a se desenhar. Pressões de Dona Bartira e de Dona Tarsila moviam o opiniático guardião de princípios à primeira viagem à Capital. Tomado de repentina malícia, Ti’Olímpio se prontificou: poderia viajar sozinho, passar o Natal em BH, ir – imaginem! – até mesmo ao Palácio Episcopal a fim de receber as bênçãos do Senhor Arcebispo. Dona Tarsila agradecia à Virgem tão estrondoso milagre. 

No dia aprazado, lá se foi Ti’Olímpio. Dona Filó, induzida por nova santificação, não tomara a jardineira ajustada. Ficara a arrumar a casa, costurar finas roupas, exceder-se nas pinturas, receber préstimos e cuidados do vigário. Lembrava-se bem de que o Natal, em bom espanhol, poderia ser tanto navidad como nochebuena. Navidad lhe proporcionava Chico Espanhol. Nochebuena, ao que consta, era a especialidade do Padre Cunegundes.

 

FÁBIO LUCAS é ensaísta, professor, ficcionista, autor, entre outros, de A Mais Bela História do Mundo (Global, 4ª Ed., 2012); Peregrinações Amazônicas (Taubaté: LetraSelvagem, 2012), O Zelador do Céu e Seus Comparsas (contos, Natal: Sarau das Letras, 2012).