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Malabarista das cordas

Um dos últimos registros fotográficos de Garoto, dois anos antes de sua morte, em 1952
Um dos últimos registros fotográficos de Garoto, dois anos antes de sua morte, em 1952

O prodígio musical conhecido como Garoto nasceu Aníbal Augusto Sardinha, na cidade de São Paulo, no ano de 1915. Sua vida foi breve. Faleceu em 1954, com 40 anos incompletos, vítima de infarto. Mas a fugacidade de que foi vítima contrasta com a qualidade e quantidade de sua produção musical. Os diários que escrevia retratam a assiduidade de seu trabalho. É impressionante a quantidade de gravações, registros quase cotidianos dos estúdios, acompanhando cantores brasileiros ou com seus grupos musicais.

Trechos dos diários e a história dessa referência musical brasileira podem ser vistos no livro Gente Humilde – Vida e Música de Garoto (Edições Sesc, 2012). Segundo o autor da biografia, Jorge Mello, a ideia de transcrever os trechos surgiu do seu contato com as anotações, que estavam em pequenas agendas de endereços e telefones. A intenção era aproximar o leitor da intimidade do músico. Os registros evidenciam o período de 1944 a 1946 e de 1951 a 1954. “Ele escrevia tudo o que de mais importante acontecia no seu dia a dia, questões profissionais em sua maioria”, diz o escritor.

Os diários também são úteis porque mostram que o talento de Garoto vinha de mãos dadas a muita dedicação. O violão foi, na verdade, o único instrumento que ele estudava em casa. Na sua vida profissional, entretanto, o contato com outros, como o bandolim, violão tenor, cavaquinho, banjo e guitarra havaiana, era mais intenso, ou seja, ele praticava bastante. “Garoto era um músico em busca da perfeição, creio que essa era a sua maior característica”, enfatiza Mello.

Itinerário musical

Garoto começou a tocar violão com 11 anos de idade, quando foi contratado por uma loja de produtos musicais no bairro do Brás. A identificação e familiaridade com instrumentos de cordas também teve fonte caseira, pois seu pai, o imigrante português Antônio Augusto Sardinha, tocava violão e guitarra portuguesa. Um dos seis irmãos de Garoto, chamado Batista, também dominava a arte. 

Na trajetória profissional, viveu a época de ouro da rádio no Brasil, iniciada nos anos de 1930. O crítico Zuza Homem de Mello, durante o lançamento da biografia do músico, lembrou de como as apresentações de Garoto nas rádios eram marcantes. “Uma das rádios em que ele tocou, a Educadora Paulista, ficava na rua Carlos Sampaio, perto de onde eu morava”, recorda.

Além dessa proximidade emocional, o crítico enfatiza o papel desempenhado por bons instrumentistas no trabalho conjunto com bons cantores: “Graças a músicos como ele, os cantores têm seu ponto de apoio e razão principal do seu êxito”. E bom acompanhante Garoto era. Tocava violão, violão tenor, violão quinto, banjo, bandolim, violino, cavaquinho, guitarra havaiana, portuguesa, violoncelo e contrabaixo. 

Antes de se consagrar nos estúdios da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, Garoto, aos 21 anos, foi provocado pelo cantor Silvio Caldas (1908-1998), quando este veio se apresentar em São Paulo. Ele encontrou o jovem instrumentista com o violão e perguntou se ele tocava tão bem quanto as pessoas comentavam. O rapaz, então, deu um show e conquistou o cantor, que o convidou para tocar em sua turnê.

Rádio Nacional 

É incontestável o papel da Rádio Nacional para o sucesso de Garoto, meio relevante de difusão que não esteve às mãos de antecessores, como Chiquinha Gonzaga (1847-1935), Joaquim Calado (1848-1880) e Zequinha de Abreu (1880-1935). O seu começo na cena musical paulista coincidiu com o estabelecimento, no Rio de Janeiro, da emissora símbolo da época áurea do rádio, que revolucionou o modo de divulgação e popularização da música em nosso país. A primeira transmissão aconteceu em 12 de setembro de 1936, com toda a pompa que a circunstância merecia: uma sinfônica completa e a participação de conjuntos musicais de menor porte. 

Com o ganha-pão diretamente ligado às aparições em programas radiofônicos, Garoto fazia inúmeras apresentações. De 1931 a 1951, passou por sete emissoras: Educadora Paulista, Cosmos, Cruzeiro do Sul, Mayrink Veiga, Nacional, Tupi e Record.

A Rádio Nacional veio substituir o status alcançado pela Mayrink Veiga, que, na década de 1930, era considerada a mais importante do país. A estreia de Garoto na Nacional foi em 1942, com o programa Garoto e seus Mil Instrumentos. Zuza Homem de Mello reconstrói a importância desse período: “O rádio tinha um elenco que fazia programas ao vivo no horário nobre, o que atraía as pessoas para a audição de espetáculos ao vivo, e esse era o contexto de suas apresentações”.

Ainda sobre o período na Rádio Nacional, são conhecidos episódios nos quais Garoto negociava o próprio salário, ato que provocava ciúmes de outros músicos e concorrência entre as rádios, que disputavam seu talento. Tal postura revela autonomia e consciência do valor do próprio trabalho.

Na opinião de Jorge Mello, o instrumentista era consciente em relação ao seu valor como músico e sabia que, se não procurasse por essa negociação, ficaria sem reconhecimento como tantos outros. “Por diversas vezes, queixou-se da forma como os músicos eram tratados nas emissoras de rádio e lamentava a ausência de um sindicato da área musical que fosse realmente combativo”, afirma. Essa postura questionadora Garoto conservou até seus últimos dias. “Um pouco antes de morrer, ele deixou a Rádio Nacional por não aceitar imposições feitas pela emissora, passando a viver exclusivamente das gravações em estúdio e das aulas particulares que ministrava”, completa o biógrafo.

Reunião de Bambas 

A qualidade do violão brasileiro atravessou fronteiras. Desde o início do século passado, a excelência rítmica desses instrumentistas forjou um estilo que alcançou o status de escola. Foram vários os que deixaram sua assinatura – como Canhoto (Américo Jacomino, 1889-1928), que tocou nas primeiras gravações em disco realizadas no Brasil e difundiu o violão popular no início do século 20; Raphael Rabello (1962- 1995), um dos maiores expoentes no violão de 7 cordas; e João Gilberto, um dos criadores da Bossa Nova com seus acordes encorpados e batida inconfundível. A seguir, outros destaques do instrumento:

LAURINDO ALMEIDA (São Paulo, 1917-1995). Em 1936 ingressa na Rádio Mayrink Veiga e participa dos regionais da emissora com Pixinguinha, Luperce Miranda e Gastão Bueno Lobo. Junto com Garoto, formou o Duo do Ritmo Sincopado. Em 1953, com o saxofonista Bud Shank, grava o disco inovador Brazilliance, no qual, pela primeira vez, ocorre a fusão de ritmos brasileiros com o jazz.

LUIZ BONFÁ (Rio de Janeiro, 1922-2001). Pretendia se tornar concertista, mas o fascínio pela música popular fez com que ele desistisse do erudito, ingressando na Rádio Nacional em 1946. Participou do conjunto liderado por Garoto chamado Clube da Bossa. Em 1956 gravou com Tom Jobim o LP 10 pol, com participações de João Donato e Nestor Campos. Como solista de violão gravou o álbum Introspection, considerado um clássico.

BADEN POWELL (Rio de Janeiro, 1937-2000). Iniciou seus estudos violonísticos com Jaime Florence. Ainda bem jovem, foi contratado pela Rádio Nacional. Sua carreira de compositor deslanchou quando conheceu o poeta e então diplomata Vinicius de Moraes. O sucesso como compositor impulsionou a carreira do violonista, que desenvolveu um estilo todo próprio de tocar, aliando ritmo e técnica.

TURÍBIO SANTOS (São Luís do Maranhão, 1943). Um dos maiores violonistas clássicos do mundo. Em 1965 ganhou o 1º prêmio do Concurso da ORTF em Paris e lançou sua carreira internacional. Resgatou o trabalho dos pioneiros do instrumento, como Dilermano Reis e Garoto. Criou a Orquestra de Violões no Rio de Janeiro e a Orquestra Brasileira de Violões.

GUINGA (Rio de Janeiro, 1950). Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, com o apelido Guinga, ficou conhecido por suas composições e por acompanhar nomes relevantes da música brasileira, como Beth Carvalho, Cartola, Clara Nunes e João Nogueira.

YAMANDU COSTA (Rio Grande do Sul, 1980). Começou a estudar violão aos 7 anos de idade. Nessa fase, era ensinado pelo pai, Algacir Costa, líder do grupo de música regional Os Fronteiriços. É considerado um dos mais talentosos violonistas da atualidade, por interpretar e recriar a música brasileira a cada performance. Indicado ao Grammy Latino em 2010.

Parceria fundamental

Garoto montou conjuntos e estabeleceu várias colaborações. Contudo, o parceiro com quem mais conviveu e admirou foi o compositor e arranjador Radamés Gnattali (1906-1988). Ele é apontado por Mello como fundamental no processo de evolução musical de Garoto, para quem Gnattali dedicou seu Concertino nº 2. O músico teve a oportunidade de participar como solista da execução da peça, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1953. Assim tornou-se o primeiro violonista a protagonizar uma apresentação no local. 

O talento de Garoto também podia ser visto em suas composições, como o choro Gente Humilde, cuja letra foi elaborada posteriormente por Vinicius de Moraes e Chico Buarque, e Sorriu para mim, samba feito em parceria com Luís Cláudio; e nas interpretações de canções de outros músicos: Carinhoso, de Pixinguinha, na qual ele tocava violão acompanhado por Lírio Panicalli ao piano, e Dá-me tuas mãos, fox de Robert Martins e Mário Lago. “Ele está na categoria de um grande compositor” explica Zuza. “Se pegarmos os choros tocados no período, dificilmente veremos o tipo de arranjo harmônico utilizado por ele. Lembrando que os acordes dissonantes tirados de seu violão seriam reproduzidos, posteriormente, pela bossa nova.”

Experiência internacional 

Em ritmo ascendente, Garoto teve sua experiência nos Estados Unidos ao excursionar com a pequena notável, Carmen Miranda (1909-1955), no ano de 1939. A viagem não ficou de fora das suas anotações. Criou uma espécie de diário de bordo, “no qual revelava seu espírito mordaz e um senso acurado de observação”, escreve Mello no livro.

Segundo o autor, o sucesso da turnê culminou no entusiasmo da imprensa e dos fãs, com a volta de Garoto ao Brasil. Pensava-se, até, em um retorno aos Estados Unidos e em um contrato mais vantajoso. Fato que não se concretizou. Garoto não embarcou com Carmen e o Bando da Lua em sua segunda viagem. Para o biógrafo, entre as causas de sua negativa podem estar o descontentamento com os termos contratuais e a fragilidade de sua saúde, pois no ano de 1936 ele já havia interrompido a temporada no Rio de Janeiro, devido a uma estafa. “Imagine- se como ele se sentiu nos Estados Unidos, ao enfrentar uma maratona exaustiva de apresentações”, opina Mello.

Porém, a viagem encorpou o repertório do músico, que se confessava fã dos cantores Bing Crosby (1903-1977) e Ella Fitzgerald (1917- 1996) e tinha um carinho especial pelas grandes orquestras norte-americanas. Além de passear, no tempo livre aproveitou para adaptar canções americanas para o ritmo brasileiro.

O registro biográfico só vem a confirmar a assinatura musical de Garoto na base de influência dos instrumentistas que têm no violão seu objeto de trabalho e dedicação. De acordo com Mello, por esse retrato simbiótico entre obra e homem, não é tarefa simples separar sua vida pessoal da profissional. “Garoto foi o maior multi-instrumentista brasileiro de todos os tempos e sempre exerceu sua arte com muita dignidade”, finaliza Mello.

 

Registro musical

Biografia de Garoto é lançada com bate-papo e boa música

Um clima descontraído marcou o lançamento da biografia Gente Humilde – Vida e Música de Garoto, publicada pelas Edições Sesc. O evento aconteceu no Sesc Consolação no dia 8 de novembro e contou com a participação do autor do livro, Jorge Mello, e do jornalista e crítico musical Zuza Homem de Mello, além de intervenções musicais feitas pelo grupo carioca Nosso Choro.

O trabalho do biógrafo começou em 2001. A concepção do livro se deu enquanto o autor estava envolvido em outro projeto, chamado O Violão Brasileiro. Na medida em que entrevistava músicos para a sua pesquisa, notou que o nome de Garoto era citado como um divisor de águas na história do nosso violão. “Isso me deu certeza de que ele merecia um capítulo à parte. Sendo assim, arquivei aquele projeto, que, depois do lançamento do livro, será retomado”, revela Mello.

Para a coordenadora editorial das Edições Sesc, Clívia Ramiro, as publicações ligadas ao selo estão em constante diálogo com a área de programação da instituição cultural. “Nesse sentido, a publicação da biografia busca contribuir para o resgate da memória do compositor e multi-instrumentista virtuose”, diz. “Talvez, por ter vivido apenas 40 anos, a importância de sua obra para a música brasileira ainda não tenha sido devidamente difundida.”

A obra contou com as colaborações do Diretor Regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, responsável pelo texto de apresentação, e da jornalista e apresentadora Patrícia Palumbo, que redigiu o prefácio do livro.