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“Ainda se discute muito o número de turistas e pouco a qualidade do turismo”

Marta Irving, pesquisadora do Eicos (pós-Graduação em psicossociologia de comunidades e ecología social) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas e Estratégias de Desenvolvimento da UFRJ

“Se o brasileiro não conhece o próprio país, como ele vai ter sensibilidade para querer um país diferente?”. É com esse questionamento que Marta de Azevedo Irving, especialista em desenvolvimento vinculado às relações sociedade-natureza, inclusão social e governança democrática, apresenta, nesta entrevista, sua avaliação de que, no brasil, o conceito de turismo sustentável já está bem difundido, mas ainda no plano do discurso.

Para ela, essa noção ainda não é aplicada em políticas públicas, e a população ainda não incorporou a necessidade de promover e participar de um turismo nacional sustentável. no entanto, a professora do programa Eicos (pós-Graduação em psicossociologia de comunidades e ecologia social), na UFRJ, diz estar otimista, pois enxerga muito potencial em “ações isoladas”.

Ela aponta, a seguir, caminhos e oportunidades para o desenvolvimento do turismo sustentável e responsável no Brasil.

SESC Em sua opinião, o turismo, para ser sustentável, tem de ter baixo impacto ambiental, ter base na demanda local e trazer benefícios para a população do entorno. Esse turismo já existe no Brasil?

Marta IrvIng O turismo, interpretado como a atividade econômica que mais cresce no mundo, passa gradualmente a incorporar novos olhares de planejamento como resultado de seu potencial gerador de emprego e renda, aporte de benefícios econômicos, sociais e ambientais e mecanismo para inclusão e transformação social.

No entanto, de maneira geral, no Brasil as estatísticas do turismo e o discurso oficial frequentemente expressam concepções idealizadas dos benefícios possíveis gerados pelo desenvolvimento turístico e tendem a mascarar ou minimizar os impactos socioambientais e culturais decorrentes desse processo.Para mim, promover e praticar turismo de base sustentável requer, sim, um novo olhar sobre os problemas sociais, a diversidade cultural e a dinâmica ambiental dos destinos. é preciso que o mercado esteja atento às peculiaridades locais e às especificidades dos destinos turísticos e não se preocupe apenas com o turismo de massa.

A sustentabilidade no turismo depende de uma concepção estratégica e duradoura de desenvolvimento, apoiada na interpretação interdisciplinar e integral da dinâmica regional, resultado de uma sinergia mutante, apoiada na noção de espaço material e imaterial, lugar concreto e abstrato, cenário de interações, conflitos e transformações, ponto de contato simbólico entre local e global.

Quais as expectativas futuras para o desenvolvimento do turismo sustentável no Brasil? 

Acredito que a diversidade biológica não se limita ao mundo das plantas e animais, inclui também a diversidade cultural humana. a diversidade de culturas se manifesta em diferentes línguas, religiões, arte, música, tipos de manejo da terra, estruturas sociais, dieta e seleção de cultivos, entre outras coisas.

No Brasil, ainda não é possível mensurar os resultados dos projetos de turismo sustentável ou de base comunitária, pois ainda não há critérios ou uma padronização estabelecida. O que vemos são ações isoladas e alguns tipos de iniciativas inovadoras, mas ainda predomina o turismo massificado, de grande escala, dirigido somente ao mercado. ainda se discute muito o número de turistas e pouco a qualidade do turismo. temos, sim, alguns exemplos que ilustram modelos de desenvolvimento turístico de base comunitária, influenciando o processo político e a ocupação do território.

Você poderia citar um exemplo bem-sucedido de turismo de base comunitária?

Na região Nordeste, o exemplo da Prainha do Canto Verde, no Estado do Ceará, merece destaque. o local é habitado por uma comunidade tradicionalmente pesqueira, historicamente envolvida em sérios conflitos fundiários pela posse da terra. a beleza natural da região, associada ao modelo dominante de turismo de sol e praia no estado, acabou por atrair de maneira agressiva a especulação imobiliária, e,consequentemente, os riscos de confronto e exclusão das populações locais.

A ação de formadores de opinião, com o apoio de entidades não-governamentais, iniciou então um processo de sensibilização de lideranças e captação de recursos. como resultado, atualmente existe na comunidade um conselho de turismo que delibera sobre as questões de interesse e uso coletivo da área para fins de turismo sustentável.

No entanto, nós ainda não sabemos exatamente o resultado concreto dessa e de tantas outras ações disseminadas pelo país.  a gente discute muito, mas falha na hora de aplicar e mensurar os resultados do que está acontecendo.

Por que isso acontece?

O grande problema é que nunca ninguém avaliou os retornos do que está sendo feito de maneira sistemática. falta avaliação para que as lições sejam aprendidas. embora os dados sejam animadores, a médio e longo prazos são também incapazes de demonstrar a fragilidade do processo e os ilimitados desafios a serem vencidos.

Enfim, é tudo muito complexo, pois as tendências são promissoras e apontam para a revitalização, o fortalecimento progressivo e a consolidação do ecoturismo no Brasil em função da prioridade governamental dada ao setor, de maneira geral, e também em resposta aos desdobramentos das discussões técnicas, acadêmicas e do setor privado. no entanto, o ecoturismo no brasil representa uma possibilidade ainda não transformada em realidade.

Qual o potencial desse ecoturismo e quais benefícios ele poderia trazer ao país no futuro?

Não será uma solução mágica para os problemas econômicos que o país enfrenta, mas poderá representar uma oportunidade excepcional para a conservação de recursos naturais, para a mudança de comportamento do homem urbano diante da natureza, para o exercício democrático da  cidadania e para a melhoria de qualidade de vida no país, sendo respeitados valores éticos.

É possível então dizer que a sociedade brasileira está mais consciente e já reconhece os espaços protegidos de biodiversidade como patrimônio público, ou ainda há um distanciamento muito grande nesse sentido?

Na parte dos articuladores e agentes do turismo, eu chamaria a atenção para uma recente iniciativa do Ministério do Turismo que abriu edital para receber propostas de turismo de base comunitária. o resultado foi surpreendente: mais de 600 projetos. no entanto, apesar da grande demanda, eles se apresentaram sem articulação estratégica, sem linhas de fomento estruturadas.

Existe uma apropriação dos termos “turismo comunitário” e “turismo sustentável” que veio sem padrão, critérios e questionamentos do envolvimento local da população. Essa é uma demonstração fiel de como o turismo sustentável é visto e vivido hoje no Brasil. Hoje, se eu disser “nós queremos transformar o Brasil em uma experiência de sustentabilidade”, o que teremos nas mãos será muito pouco e muito disperso.

E como se dá a dinâmica entre turistas e setor privado nesse sentido? O brasileiro quer turismo sustentável, o mercado oferece opções?

O conhecimento ou está no âmbito da academia ou das gestões públicas, e o setor privado tem se preocupado mais em ganhar dinheiro com estatísticas do que com qualidade. assim, quando falamos em conscientização da sociedade, o que notamos é uma pequena mudança de comportamento. os pacotes ainda dominam claramente, e a viagem ainda é muito cara, só para as elites.

O brasileiro ainda não tem consciência do brasil como dele. no sudeste, a gente fala da amazônia como um Brasil distante. por isso que enfatizo: no discurso até que estamos indo bem, mas a consciência ambiental ainda é muito pequena e banal, ainda mais quando se fala em turismo.

Quais são os futuros caminhos para que sejam, enfim, estabelecidas ações concretas nesse sentido?

Acho que o esforço e a sensibilização da sociedade para o turismo sustentável são essenciais para a construção de novos paradigmas de desenvolvimento turístico envolvendo, além da capacitação das comunidades locais, o investimento nas potencialidades de uma região e a discussão dos riscos e benefícios que o turismo pode trazer para um determinado destino. além disso, temas relacionados à educação, cultura e formas de organização social devem sempre estar incorporados à discussão para que as comunidades de destino possam se organizar e se qualificar para a gestão do turismo.

Para concretizar os benefícios sociais faz-se necessário um olhar mais atento às questões da participação da população no planejamento, na implementação e no monitoramento da atividade. enfim, para que a proteção sustentável aconteça, as pessoas têm de entender o valor dessas áreas como patrimônio.

Como fomentar esse entendimento?

O distanciamento entre o turista, o trade e a população local precisa acabar. precisamos de muita vontade, de cabeças abertas para mudanças, de diferentes agentes sociais integrados, trabalhando em parceria para resolver e partilhar o turismo sustentável. com essa estratégia, a percepção do turista e de seu papel na seleção de destinos social e ambientalmente desejáveis vai aumentar de forma surpreendente.

Somente essa abordagem exigirá do trade turístico uma nova postura que privilegia a competitividade, mas também as especificidades das escolhas do turista e a qualidade do destino como um ambiente hospitaleiro e acolhedor que favorece encontros, formação de vínculos entre desconhecidos ou reforço de vínculos entre conhecidos, um lugar onde as pessoas e os grupos humanos estão em contato, onde se descobrem, gerando diversificação e riqueza de valores.