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"Os cidadãos desconhecem os problemas reais da cidade"

O professor e consultor Ladislau Dowbor em sua casa em São Paulo
O professor e consultor Ladislau Dowbor em sua casa em São Paulo

texto: Flavia Galembeck   fotos: Flavita Valsani

Filho de poloneses, Ladislau Dowbor veio ainda pequeno para o Brasil. Ele nasceu no lado espanhol dos Pirineus, (Cordilheira ao sudoeste da Europa que forma uma fronteira natural entre a França e a Espanha) porque na época esse era o único lugar possível. aportou por aqui em 1941. Dois anos antes, a segunda Guerra mundial havia começado justamente com a invasão da Polônia pela Alemanha. A fala baixa e cadenciada do economista político e doutor em ciências econômicas revela sua procedência em um leve sotaque, mas não o explica totalmente. Ainda jovem, Dowbor foi estudar ciências econômicas na universidade de Lausanne, na Suíça. Ao voltar para o Brasil, já formado, em plena ditadura militar foi obrigado a voltar para a Europa, num exílio que durou 12 anos, durante o qual fez mestrado e doutorado.

Professor de pós-graduação de economia e administração da PUC-SP, Dowbor trabalhou décadas na agência de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU), elaborando sistemas de planejamento. Foi também consultor de assuntos políticos especiais do secretário-Geral da ONU, entidade da qual ainda hoje é consultor. Integrante do Movimento Nossa São Paulo, Dowbor mantém um site com seu nome (dowbor.org), pelo qual suscita questões e debates sobre a sustentabilidade das metrópoles brasileiras. Nessa entrevista ele discorre sobre o passado, o presente e o que poderia ser o futuro de nossas cidades.

SESC - Como se deu o processo de urbanização no Brasil?

Ladislau Dowbor - A urbanização no Brasil se deu mais por expulsão do campo do que por atração das cidades. O brasil em 1950 tinha 2/3 de sua população no campo. a cidade de São Paulo tinha 1,5 milhão de habitantes. A massa urbana hoje no município de São Paulo reúne 11 milhões de pessoas e somando-se o entorno (o Grande ABC) esse número chega a 20 milhões. No brasil, 84% da população está em meio urbano. Essa migração do campo para a cidade aconteceu de forma mais acelerada durante a ditadura militar, em que havia pouca possibilidade de resistência política no campo.

Em que esse processo de urbanização contribuiu para os problemas das metrópoles?

Isso gerou um sistema de cidades desequilibradas, com pequenos núcleos tradicionais prósperos cercados de periferias pobres, o destino de quem fugia do campo com uma mão na frente e outra atrás. Durante o processo de urbanização o crescimento foi acelerado, da ordem de 7%, 8% ou mais ao ano, incremento impossível de ser acompanhado por infraestrutura, saneamento etc. Na época, dizia-se com orgulho que São Paulo era a cidade que mais crescia no mundo. Ainda hoje sofremos as consequências disso.

Você poderia citar um modelo de urbanização oposto ao nosso?

Sim, o da Inglaterra, onde à medida que a população rural migrava para a cidade, desenvolvia-se a manufatura, especialmente a têxtil. Essas pessoas achavam trabalho e tinham ainda a opção de migrar para os estados unidos. então, a urbanização lá se deu de outra maneira e não houve o mesmo grau de pressão de pessoas entrando no meio urbano sem renda e sem emprego. Não é contraditório que o país que no passado atraía imigrantes para o cultivo de café tenha expulsado as pessoas do campo?

Historicamente, o brasil tinha deficit de mão de obra, então, durante vários séculos, a monopolização da terra era uma forma de obrigar os trabalhadores a se sujeitar às condições oferecidas pelos grandes produtores. Aqui, a ocupação não foi como nos
estados unidos, onde os colonos recebiam seus 70 acres de terra e, no entorno dessas propriedades, surgiram pequenas vilas que ofereciam serviços para esses pequenos produtores rurais. essas vilas deram origem a pequenas cidades, onde ficavam o “saloon”, o ferreiro, os bancos etc., com
tecidos urbanos mais equilibrados.

A reforma agrária poderia aliviar o inchaço das grandes metrópoles brasileiras?

Sem dúvida, e ela é necessária. A reforma agrária é mais do que o acesso à terra. É o uso racional das relações urbano-rurais no país, e com a segurança de posse da terra. esse conceito não é nada revolucionário, está na constituição, mas nunca foi implementado por resistência de certos grupos. a agricultura continua tendo grande potencial de absorção de mão de obra. nNo Brasil há condições de coexistência entre o agronegócio e a produção alimentar nos chamados cinturões verdes da cidade.

O que são cinturões verdes?

São terras no entorno urbano dedicadas à agricultura familiar de policultura e hortifrutigranjeiros, que abastecem a cidade de sua região todos os dias com produtos frescos. Elas são muito intensivas no uso de mão de obra o ano todo, criam espaços de lazer para a própria população, uma vez que o morador da cidade pode ir até lá e colher suas próprias verduras, e ainda oferecem esse produto diretamente aos consumidores, por meio de cestas entregues nas residências urbanas.

Existe um motivo para a concentração de terras no país?

Durante muito tempo, aqui no Brasil, as pessoas que tinham dinheiro investiam em terras como reserva de valor, uma vez que o dinheiro não era confiável. É por isso que temos a maior reserva de terra do planeta e conflitos permanentes movidos por pessoas que não têm acesso a ela e que querem produzir. A Europa resolveu essa questão no século 16, com a reforma protestante, uma vez que o grande latifundiário no continente era a igreja católica. as pessoas sempre pensam essa questão sob o aspecto religioso, mas o grande motivador foi o acesso ao solo. aqui, as grandes propriedades, com mais de 10 mil hectares, utilizam apenas 5% de suas terras, enquanto na agricultura familiar, de até 20 hectares, esse percentual é de 65%. a agricultura familiar hoje, mesmo ocupando uma área reduzida, responde por 70% da produção de alimentos consumidos pelos brasileiros.

Mas esses pequenos produtores conseguem vender para as redes de varejo?

Colocar no supermercado produtos vindo de longe, às vezes importados, transportados por milhares de quilômetros, tratados para não se deteriorar ao longo do tempo de estocagem, é um contrassenso, uma vez que você pode ter produtos frescos, produzidos localmente, sem esses custos de transporte, sem emissão de gás estufa, e sem essas químicas. na Inglaterra já existe a obrigatoriedade de colocar na gôndola a origem territorial dos produtos, para que o consumidor considere isso no momento da compra, uma vez que é cada vez mais forte a tendência mundial de comprar o que é produzido localmente.

O que pode ser feito para diminuir as disparidades e o inchaço nas metrópoles?

Eu, Paulo Vannuchi (Ministro de Direitos Humanos), Márcio Pochmann (presidente do instituto de pesquisa econômica aplicada, o IPEA), e outros, fizemos um estudo por um ano e meio para descobrir o que seria necessário para gerar dinâmicas de desenvolvimento local mais equilibradas. resumimos isso a estes itens: expansão gradativa dos programas de renda mínima, democratização do acesso ao crédito, acesso às tecnologias, sistemas de informações desenvolvidos para o fomento local, capacitação para a gestão municipal e criação de fóruns voltados para o desenvolvimento local.

Como o renda mínima e a democratização do crédito podem melhorar as cidades?

A forma de lidar com a pobreza crítica é a expansão progressiva de programas de renda mínima, como o bolsa família. depois, temos a democratização do crédito, que é a forma produtiva do processo, a ruptura do cerceamento de acesso aos recursos. O modelo atual, com juros extorsivos, faz parte da concentração de renda no Brasil, onde os bancos comerciais cobram cerca de 67% de juros para empresas ao ano, quando na Espanha esse percentual é de 6%. É necessário que haja a evolução para um sistema moderno de crédito, para fomentar o empreendedorismo.

E qual a contribuição do acesso às tecnologias?

Todas as atividades produtivas hoje tendem a ter grande intensidade de conhecimento incorporado. a índia, por exemplo, criou unidades de fomento tecnológico em 620 mil vilas, para as quais o governo treinou 1,2 milhão de pessoas. essas comunidades de fomento tecnológico comunicam entre si todo e qualquer avanço tecnológico que permita dinamizar as atividades de pequenas e médias empresas, sejam elas urbanas ou rurais. na realidade, além disso, é necessário fomentar o desenvolvimento, e não coibi-lo, com patentes etc.

Há alguma experiência semelhante a essa no Brasil?

Na favela de antares, no Rio de Janeiro, a comunidade generalizou o acesso à internet de banda larga. Hoje eles produzem serviços e produtos de design e cultura. se você está conectado, conta com um instrumento de comunicação e pode vender sua produção para o mundo. isso vale também para o meio rural, porque grande parte do êxodo é motivado pelo isolamento dos pequenos proprietários do campo.

São tantos os problemas nas grandes cidades que fica difícil para o cidadão estabelecer prioridades e cobrar medidas.
É por isso que precisamos desenvolver sistemas de informações municipais para que os cidadãos conheçam os problemas principais de sua comunidade e pressionem o governo a solucionar essas questões, barrando bobagens como acrescentar pistas na marginal Tietê ou aquele do [exprefeito celso] pitta, de fazer aqueles elevados de veículos, coisas completamente surrealistas, que só acontecem porque os cidadãos desconhecem os problemas reais da cidade.

Já há iniciativas nesse sentido acontecendo aqui no Brasil?

O Paraná, por exemplo, evoluiu bastante com o Orbis, um sistema de informações locais. Em Porto Alegre, os dados de cadastro da Secretaria da Fazenda sobre as pessoas jurídicas da cidade podem ser acessados pelos empreendedores que querem investir ali. Com isso, uma pessoa que quer abrir uma farmácia consegue visualizar no mapa onde há oportunidade de negócios. É um absurdo que em pleno século 21 você conte nos dedos o númerode municípios com dados gerenciais adequados. Com o Movimento Nossa
São Paulo lançamos 130 indicadores básicos, que nos dão a imagem real doque acontece na cidade.

Poderia citar um exemplo relacionado à cidade de São Paulo?

As pessoas que trabalham perdem todos os dias duas horas e quarenta minutos no trânsito. um tempo desperdiçado. a velocidade média de um carro em são paulo é de 14 km por hora. Soma-se a isso o fato de que a cidade ocupa uma área de 1.500 km2, com 950 km2 impermeabilizados. Então, quando chove a água não tem para onde escorrer. A malha de metrô é ínfima, de apenas 60 km, contra 400 km de Paris, que é muito menor. Temos assim uma cidade paralisada por água e por excesso de carros, sem um sistema de transporte coletivo.

Esse quadro é causado pela falta de planejamento ou pela falta de preparo dos gestores municipais?

As duas coisas. No caso de  São Paulo, não se trata de falta de conhecimento, afinal temos urbanistas excelentes. mas quando temos que formar um gestor municipal essa pessoa vai para Turim, na Itália. O brasil tem 5.564 municípios e não tem um sistema de formação de agente de gestão municipal. esse é um atraso grande. Existem alguns esforços isolados, mas eles não condizem com o tamanho do desafio, já que 84% da população brasileira é urbana e não há capacidade de gestão correspondente. o problema maior reside nos interesses de grupos, como a indústria automobilística e empreiteiras, que financiam as campanhas políticas e têm seus interesses sobrepostos aos da coletividade, graças aos políticos corruptos.

Qual sua opinião sobre a redução da jornada de trabalho?

A redução da jornada de trabalho é inevitável. As pessoas têm resistência, mas para mim isso é uma questão de bom senso, uma vez que os avanços tecnológicos e os ganhos de produtividade exigem esse repensar o trabalho. Hoje você tem uma minoria sobrecarregada com excesso de trabalho e uma grande parcela da população desesperada pela falta de emprego. Um bom exemplo é o estado norte-americano de Utah, que resolveu a equação estabelecendo quatro dias de trabalho, em jornadas de dez horas. dessa maneira não houve necessidade de redução de salários e foi registrado um incremento da economia local, com o desenvolvimento da indústria cultural e de lazer