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Do lixo à arte
texto: Carina Flosi fotos: Flavita Valsani
"A escultura, a pintura, arte em geral, não deve só procurar a beleza estética, decorativa. Arte é você transmitir sua sensibilidade criativa, intuitivamente representar sua época. Julgo meu trabalho bonito dentro da agressividade, e agora vou fazer de tudo para levar minha arte às favelas, locais igualmente considerados violentos, brutos e esquecidos", Caciporé Torres, escultor, nascido em 1935 em Araçatuba, possui mais de 80 obras expostas em espaços públicos
Materiais brutos, sucateados, pesados, objetos que não chamariam a atenção de nossos olhos apressados ganham forma e significado, há mais de 60 anos, pelas mãos dele. Com um estilo único de esculpir objetos descartados e esquecidos, Caciporé Torres, 75, orgulha-se de ter dedicado sua obra à sociedade e de hoje ser o maior escultor com monumentos expostos em espaços públicos no Brasil.
Com exclusividade à revista do SESC SP, o artista revelou seu inédito e mais recente projeto de levar suas esculturas de ferro, bronze e aço às favelas paulistanas, carentes de valorização social e arte. “Esse é o meu novo sonho, todo o meu trabalho está centrado nisso, sem demagogia. Usarei as chapas recolhidas pelos próprios moradores das favelas e eles serão coautores das esculturas. Será um projeto social e sustentável dentro da cidade de São Paulo”, prevê.
Autor do conceito de que na arte a beleza surge por meio do feio, Caciporé Torres acredita que o projeto de arte-cidadania nas favelas levará criatividade e confiança aos moradores. “Eles serão os guardiões das esculturas. Levarei as obras pré-montadas e eles participarão da produção. Aprenderão a valorizar a arte que ajudaram a criar. Pretendo povoar de obras de arte as favelas de São Paulo. É um projeto original, criativo e que vai levantar a auto estima de quem vive nesses locais”, conta o escultor, animado.
Desde os 20 anos, Caciporé Torres compra chapas usadas e as reaproveita. Defendendo a escultura como coisa pública, passou a elaborar sua arte em grandes volumes costurados pela solda, usando o aço inox no estado de sucata. “Sempre preferi comprar aquela chapa que custa R$ 5 o quilo daquele trabalhador que recolhe o material na sua carrocinha do que a de R$ 300 nova, de uma indústria”, conta. Seu trabalho em metal começou quando voltou de um longo período na Europa. “Eu sempre me senti privilegiado porque cresci em um ambiente intelectual e artístico. Meu pai era jornalista, correspondente internacional. Minha mãe era concertista, falava cinco línguas. Então eu sempre convivi com artistas. Aos sete anos ia
desenhar na casa do Di Cavalcanti.”
Inserido na esfera das artes, o pequeno artista encontrou na escultura a melhor forma de se expressar. “Sei que tive essa vantagem de viver no meio da sensibilidade, da inteligência e da criatividade. E, aos 15 anos, de calça curta, me arrisquei levando cinco trabalhos para um concurso na 1ª Bienal”, lembra. Sem a menor convicção de que poderia concorrer com os amadurecidos trabalhos de artistas renomados, o jovem conquistou um dos prêmios mais importantes, uma viagem de dois anos para a Europa. “Os jurados eram 16 críticos internacionais completamente isentos de qualquer ligação com a arte brasileira. Quando eles descobriram que era um garoto, foi surpreendente. Percebi desde cedo que o artista, embora seja um infantil permanente, uma criança grande, artisticamente pela vivência ele amadurece. Ele nunca pode achar que chegou ao apogeu, que está consagrado, porque daí será o começo do seu fim.”
O contato com artistas europeus levou Caciporé Torres a pesquisar diversos materiais. Ele aprendeu fundição e conheceu ateliês de diversos escultores. Mas, quando voltou ao Brasil, viu-se cheio de projetos, com senso artístico aguçado, mas sem dinheiro. “Aluguei um galpão de uma metalúrgica na Mooca, na zona leste, em que produzi 90 peças com ferro fundido de bueiro. Aquilo foi uma novidade. Vendi tudo para artistas reconhecidos em poucos dias”, lembra.
Esse foi o empurrão que o escultor precisava para levar suas obras de aço aos espaços públicos. “Nessa época eu já me via como um artista urbano e percebi que não daria para depender de galerias, ganharia pouco e minha arte ficaria restrita à elite. Entendi que para sobreviver da arte eu precisaria me integrar a alguma coisa e me apeguei à arquitetura, que é a arte fundamental do século. Naquela época, a arquitetura estava explodindo no Brasil, com grandes arquitetos respeitados no mundo inteiro.”
Caciporé foi, então, bater às portas dos escritórios de Oscar Niemeyer, João Batista Vilanova Artigas e Lucio Costa para se integrar e fazer grandes trabalhos. “A parceria com eles foi maravilhosa. O arquiteto, que é o artista que aprendeu um pouco de matemática, sabe se expressar. Foi muito gratificante. As obras com parceria de todos os grandes arquitetos foram para o Brasil inteiro e isso me dá muita honra. Elas estão em locais abertos, adquiriram grande função social, foram para o Metrô, praças e avenidas. Foi fantástico, e nunca mais parei de me dedicar a embelezar a cidade com minha arte”, resume.
Em todo o Brasil o escultor soma mais de 80 obras em espaço aberto. “Isso foi uma opção minha. Quis integrar minha obra à arquitetura e ao espaço paisagístico. E com isso eu conquistei forte função social e me libertei da precariedade das galerias, que cobram 50% do seu trabalho e não te dão nada. Satisfez mais. São obras públicas e marcantes para São Paulo.”
Até hoje, o escultor trabalha oito horas por dia em seu ateliê, com seus objetos brutos. “São materiais muito bons, autênticos, aparentemente agressivos, mas na arte a beleza vem do feio, você pode cortar, soldar a chapa, mas, no fundo, esse conjunto de agressividade se torna belo. A escultura, a pintura, arte em geral, não é só procurar a beleza estética, decorativa. Arte é você transmitir sua sensibilidade criativa, intuitivamente representar sua época. Julgo meu trabalho bonito dentro da agressividade e agora vou fazer de tudo para levar minha arte às favelas, locais igualmente considerados violentos, brutos e esquecidos.”
A arte de Caciporé Torres iluminando o imaginário da pauliceia desvairada
Mariza Bertoli*
As esculturas de Caciporé Torres fazem toda a diferença, entram na vida da cidade e modificam a paisagem. Dialogam com quem tem olhos pra ver, criam o intervalo necessário para a subjetividade na multidão e vão se ajeitando de mansinho na memória social desta cidade que vive apressada, em ritmo de futuro.
À primeira vista, rudeza e agressividade, uma presença estranha, incômoda, que desafia o caminhante, depois vem aquela chispa de inquietação persistindo, indagando, acomodando-se nas fissuras do imaginário, buscando nas franjas da memória o alívio do conhecido, até que a apropriação se dá, não importa afinal com que desculpa.
Afinal que diabo é isso? - Eu nunca vi um troço desses, mas que existe, existe... Se não for por fora, jogado no mundo é por dentro da gente. Poderia ter dito um passante ao se defrontar com a escultura monumental instalada na Praça da Sé. O volume desafia o espectador, com sua forma inusitada, o que se convencionou chamar de abstrato, mas não há nada mais concreto e palpável no mundo que esse imenso pássaro-serpente, feito em metal, com cicatrizes vivas formando superfícies cilíndricas que chamam o toque. Os brilhos do metal, as suturas aparentes, os pedaços costurados dão testemunho do trabalho árduo e prazeroso da construção da obra e do artista. Parece brotar do chão e elevar-se, criando asas. Lembra o desejo e as contingências. É pássaro e é serpente, quer voar, mas se arrasta – eis o fundamento da vida simbólica. Todos vivemos tensos entre esses contrários e deles nascem os sonhos e as obras de arte e nascem também as ideias consideradas revolucionárias.
Diante da Faap o artista plantou outra escultura intrigante, fascinante pela exuberância e pelo excesso. O volume que se eleva se divide também em forma de asas, mas nasce com uma base vigorosa, e estende braços cilíndricos como se fossem a brotação da árvore da vida; em cada gesto uma geração na qual o espectador se coloca literalmente, espelhado no brilho do aço. E as espias convidam o olhar para as raízes. Os buracos são provocadores, como entranhas por onde se pode espiar o mistério, o coração do símbolo.
Falar de cidade sustentável é falar também de arte pública, e Caciporé é o escultor brasileiro que tem o maior número de obras nas ruas ou em lugares de grande movimentação de pessoas. Além das esculturas monumentais, criou paineis em relevo, gênero em que foi pioneiro, como a fachada da rua Haddock Lobo, originalíssima, que oferece ao espectador duas faces escultóricas, como frente e verso. Ao associar sua obra à arquitetura, introduz no espaço esse diálogo sempre novo com o espectador, que se surpreende – é o caso de tantos paineis entre os quais os da Fundação Carlos Chagas e do Banco Santander.
O passeio do escultor é ir ao ferro-velho, diz o artista, a propósito da ideia de sustentabilidade. Usar os resíduos urbanos, a sucata que se acumula, pode ser uma busca estimulante, como se fosse um “ready-made”, o objeto encontrado. Juntar os pedaços é também ofício de escultor que não terceiriza o seu trabalho, como é costume hoje. Juntar partes tem esse gestual meu, muito próprio. Seja monumental ou pequena, com a superfície metálica, polida, patinada ou com adição de cor, tem sempre a invenção e a construção como estímulo.
*Pesquisadora e crítica de arte integrante da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte) e da CESA (Sociedade Científica de Estudos da Arte)