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Envelhecimento e elaboração das perdas
SONIA SIRTOLI FÄRBER
Introdução:
A condição de transitoriedade do ser humano é realidade aceita por todos os povos, de todas as culturas e de todos os tempos. Difere, porém, o entendimento que é feito desta verdade pelos vários grupos humanos. O ser humano vive em um estado de constantes mudanças, adaptações e ressignificações da própria existência, visto estar em constante processo deconstrução que, por vezes, exige desconstrução de uma condição anterior.
As passagens espontâneas de um status para outro não são detectadas a priori, nem é feita reflexão consciente sobre elas; simplesmente são vividas e seu impacto é assimilado no cotidiano, sem grande desgaste de energia psíquica e emocional. Assim se dá na passagem das estações e dos meses, na troca de horários de atividades ou no cuidado (terapêutico) e estético), entre outros aspectos. O mecanismo é outro quando as passagens incidem sobre a pessoa, exigindo dela uma reorganização da vida, dos projetos e sentidos. Essas passagens necessitam ser acompanhadas com reflexão consciente e com ritos de passagem, por serem mudanças que evidenciam a efemeridade da condição humana, a provisoriedade das relações e, especialmente, a transitoriedade da vida.
Essas passagens são marcadas por sentimento de morte simbólica, que se processa quando a pessoa se volta para si mesma, se recolhe e vivencia a experiência de um final de etapa ou de estado de vida que, sob algum aspecto, não deixa de caracterizar-se como morte, naquele recorte específico. Estas realidades de morte acompanham a vida.
As ciências humanas expõem o progresso humano nas suas várias dimensões, analisando os seus estágios de desenvolvimento, por meio dos quais são evidenciadas as transformações inerentes à condição humana e as adaptações necessárias à vida em comunidade, e impostas, portanto, pelo meio em que vive. Dessas mudanças, doenças, amputações, desemprego e aposentadoria tendem a ser aquelas que, mais veementemente, incidem para deflagrar a crise de meia-idade e a percepção de que o envelhecimento se aproxima.
Doença e amputação
Na sociedade e em tempos em que são priorizadas a competência e a produção, adoecer é ser exilado do ambiente em que a vida acontece, especialmente porque a doença implica dependência e sujeição a outras pessoas, deixando implícito o grau de secundaridade em que a pessoa está colocada. A todo custo, a doença é evitada e, quando não se alcança esse sucesso, ao menos é disfarçada.
O desenvolvimento do capitalismo transformou o corpo humano em um instrumento de produção. Adoecer nesse contexto significa deixar de produzir, o que significa vergonha da inatividade, que deve ser oculta do mundo social (COMBINATO e QUEIROZ, 2006, p. 210).
Além de trazer a noção de fraqueza ante o grupo social em que o indivíduo está inserido, a doença traz em seu bojo um alerta para a finitude da vida e a provisoriedade da autonomia do sujeito. Isto é, ainda que inconscientemente, o mais temido. Ao adoecer, a pessoa encontra-se diante de uma ruptura com a vida em sua plenitude e isso lhe remete à consciência de sua mortalidade.
A doença também é um tipo de morte. Em outras épocas, a doença teve uma fase glamourosa (por exemplo: a tuberculose): “a doença era vista como um refinamento, o sofrimento dignificando o homem” (Kovács, 1996, p. 21). Atualmente, ela é vista como fraqueza e punição, tendo em vista a interrupção à produção. De qualquer forma, a doença coloca o indivíduo em contato com sua fragilidade e finitude; ou seja, ele é afastado das suas atividades rotineiras, pode sofrer paralisias, mutilações,enfrenta muitas vezes a dor ao longo do tratamento e percebe-se enquanto ser mortal (COMBINATO; QUEIROZ, 2006, p. 212).
Eventualmente, em decorrência do adoecer, a pessoa confronta-se com nova transformação, que exigirá esforço para vivenciar luto e morte,decorrente da perda de um órgão ou membro. A amputação é multifatorial e pode se dar em decorrência de traumatismos, acidentes ou degenerações, porém é característico do processo que a pessoa amputada tenha de lidar com a finitude da vida ao ter de considerar que uma parcela de si entrou em óbito.
A comunicação sobre a amputação desperta o sentimento de perda e luto (Cavalcanti, 1994), compara-se a perda do membro com a perda de uma pessoa querida (MACEDO; CREPALDI, 2009, p. 64).
Em algumas situações, para potencializar a assimilação da perda e elaborar o luto, o membro perdido é protagonista de um rito de passagem, incluindo funeral, féretro e deposição em túmulo, com lápide pertinente3. Tais ritos não são apenas dramatizações, mas mecanismos que possibilitam o enlutado de escoar sua dor, uma vez que a sociedade, de modo geral, não avalia a real dimensão do sofrimento que esta transformação gera.
Contudo, o luto pela perda do membro não é aceito socialmente como o luto pela morte de um ente querido, visto que a sociedade não espera que o indivíduo fique enlutado pela perna como ficaria por sua esposa (PARKES apud MACEDO; CREPALDI, 2009, p. 63).
Ainda que cultural e socialmente o processo de luto por um órgão, membro ou parte do corpo não seja aceito – e até mesmo por isso –, pesquisadores têm acompanhado pessoas imersas em tais situações comprovando que pessoas amputadas sofrem o estresse equivalente ao que ocorre com a morte. Macedo e Crepaldi apresentam os resultados da pesquisa de Gallagher & MacLachlan4, que demonstra que pessoas amputadas no período pós-cirúrgico experimentam sentimento de desolamento e estresse “equivalente à adaptação ao processo de luto pela perda de algo precioso”. Não apenas o luto pela amputação não é aceito socialmente, mas o próprio amputado, ao longo se sua vida, eventualmente, experimenta a rejeição.
Aposentadoria e desemprego
A aposentadoria é uma ruptura significativa na história individual, pois implica mudança radical da organização do tempo, das entradas financeiras e, especialmente, vem carregada de valor simbólico, pois altera o papel social desempenhado até este limite. Uma vez afastado do meio produtivo habitual, a tendência é buscar uma reorganização espacial, temporal e de identidade, quando essa aposentadoria acontece tardiamente e alcança o adentrar da terceira idade. “A aposentadoria é o momento de reestruturação da identidade pessoal e o estabelecimento de novos pontos de referência” (RODRIGUES, 2008, p. 9).
Muitas vezes parece óbvio que, em alguns casos, a aposentadoria seja uma forma de libertação de uma atividade que tenha sido desagradável e insatisfatória e o indivíduo queira simplesmente descansar ou experimentar uma sensação de liberdade. Entretanto, essas supostas férias não terão fim e as pessoas tendem a se sentirem vazias, sem saber o que fazer depois de descansar (FRANÇA, 1999, p. 19-34).
Beauvoir entende que o idoso é beneficiado, em vários aspectos de sua vida, com a manutenção de uma rotina de trabalho, pois, “sentindo-se ativo e útil, ele há de escapar ao tédio e à decadência” (BEAUVOIR, 1970, p. 246). Porém, é notório que não só os idosos, mas todos aqueles que se afastam radicalmente do ritmo laboral, e não se inserem em um trabalho alternativo, sofrem física e psiquicamente em decorrência da demanda social e do movimento interior que clama por ritmo e utilidade.
Uma coisa que impulsiona o homem a uma atividade frenética é o terror pela própria morte. Esta afirmação confirma o resultado repentino da morte de pessoas idosas que deixam o posto de trabalho, descontinuando suas atividades aplicadas durante toda a vida, ou seja, a morte do vínculo do homem com sua ferramenta de trabalho, levando a morte em si, expressa pelas pessoas que convivem com o enlutado “... ele foi morrendo aos poucos quando parou de trabalhar” (CATERINA, 2007, p. 5).
A associação entre aposentadoria e fim de vida é subliminar para a maioria das pessoas, o que torna estressante a inflexão do trabalho e a transição para esta nova condição de vida. Porém, o afastamento temporário e indefinido do trabalho também gera sensação de finitude e requer instrumentos de elaboração de uma morte simbólica. Demissão e desemprego, além de se constituir em problema social, se configuram, individualmente, em elemento desestruturador de autoimagem do trabalhador, com sério risco para o equilíbrio psíquico. Estar desempregado coloca a pessoa em condição de instabilidade, ameaçando o equilíbrio doméstico, tanto emocional quanto financeiro. Por isso é realidade temida e tida como um tipo de morte. Seu impacto é semelhante à morte de um parente e requer compreensão e atitude para que o abalo produzido não faça o indivíduo desconsiderar a possibilidade de reintegração no mercado de trabalho e nas relações sociais. Os ciclos do desenvolvimento humano comportam mudanças e transformações que alcançam todas as pessoas, as quais incidem de maneira mais drástica em uns que em outros, porém todos vivenciam este processo. Mas há rupturas e lutos que não são extensivos a todos, por isso a compreensão e a solidariedade nem sempre são demonstradas em favor daqueles que estão em tais situações.
Crise de meia-idade
No decurso da existência, as pessoas vão se instrumentalizando para lidar com as perdas que as transições originam. Dessa forma, com o avanço da idade, a aquisição destes meios torna o viver mais tranquilo e menos exposto ao estresse que assola a idade mais jovem. Isso não significa que as representações de transitoriedade da vida e provisoriedade das realidades estejam superadas, ao contrário.
Uma fase de transição muito exigente e que, se não for bem vivenciada e amparada, pode trazer repercussões severas, é a chamada “crise de meia-idade”. Na mulher, ela acontece acompanhada com a sintomatologia da menopausa e precedida pelo climatério que, até algumas décadas atrás, não era suficientemente estudado nem considerado como fase pertencente ao processo de desenvolvimento humano.
Uma forma de abordá-lo, que parece promissora, é considerar a fase de menopausa como um momento de “crise de desenvolvimento” (crise caracterizada pela mudança das tarefas psicológicas e dos papéis sociais).(SOUZA, 2005, p. 87).
Segundo Rostosky & Travis (2000, p. 89), quando comparadas com o homem, as mulheres são consideradas “o outro” em relação à normalidade, pois, enquanto os homens de meia-idade sofrem alterações hormonais e estas são vistas como “normais”, a mesma realidade nas mulheres é entendida como patológica. A menopausa é entendida como síndrome (irregularidades menstruais, ondas de calor, enxaqueca, depressão), sendo que em todas as idades as mulheres estão propensas a ter alguns desses sintomas, e não só na menopausa. Por último, as mulheres são apresentadas como fracas e impotentes em relação ao médico e à autoridade científica, que definiu a menopausa como síndrome, e ainda determina o que ela é e como deve ser vivenciada.
Enquanto a menarca é celebrada pela família e pela sociedade como indicativo de saúde e estatuto de qualidade devida, a última menstruação é, eventualmente, reconhecida pela mesma sociedade e cultura como declínio produtivo e estigma de falência física. Com tão forte imposição social, é compreensível que uma parcela significativa de mulheres passe por esta transição munidas dos mesmos sentimentos e contradições que se afirmam no processo de luto.
Na década de cinqüenta, Erikson também já havia considerado os aspectos positivos e negativos das situações de crise ao postular que, na caminhada da infância à velhice, o ser humano passa por diferentes estágios de desenvolvimento psicológico e a transição entre eles é sempre mediada por crises. Essas crises, que foram chamadas por Erikson de “crises de desenvolvimento”, são caracterizadas pelas mudanças das tarefas psicológicas e dos papéis sociais que marcam a passagem de um estágio a outro (SOUZA, 2005, p. 91).
A crise da meia-idade é prenúncio da tomada de consciência do envelhecimento e da contundente perspectiva da morte. Morte e vida, provisoriedade e estabilidade estão em constante tensão na existência humana, e sempre que a provisoriedade prevalece, o senso de morte emergente e a necessidade de luto se apresentam. O êxodo do viver humano atinge esfera dramática quando vislumbra o percurso feito ereconhece que , do itinerário, menos da metade há por ser transitado. Envelhecer requer coragem.
Envelhecimento
Na obra Saber envelhecer, Cícero ensina que “uma vida tranquila, honorável e distinta pode do mesmo modo levar a uma velhice pacífica e suave” (CÍCERO, 1997, p. 15). Viver é estar em constante aprendizado e o desenvolvimento deve acontecer durante todo o percurso da vida. Mas quem não aprendeu ao longo da vida sofre duramente a transição final,
quando esta se aproxima.
(...) devemos nos envolver de todo o coração nos acontecimentos do envelhecimento. Isto requer curiosidade e coragem – neste caso, coragem para deixarmos para trás velhas idéias e nos deixarmos levar por ideias desconhecidas, deslocando a importância dos acontecimentos que tememos. Ou seja: a coragem de ser curioso (HILLMAN, 2001, p. 19).
Destarte, a velhice é vista como fase de grandes dificuldades para o ancião e seu núcleo social, nas várias sociedades em tempos históricos. Porém, a realidade pós-moderna torna o envelhecer ainda mais complexo e temeroso, pois a sociedade vive sob a égide da efemeridade, na qual, para manter-se, há de se ser produtivo e jovem, uma vez que a mais-valia e a meritocracia são as ideologias vigentes.
O individualismo requer dos cidadãos independência e agilidade de adaptação às mudanças, que rapidamente ocorrem. E os avanços tecnológicos não são dominados por todos os que são da geração anterior à atual. Enquanto a sociedade valoriza a informação, os idosos condoem-se com a perda da memória e do senso de continuidade histórica reinante.
A sociedade de produção valoriza a beleza, a eterna juventude e a longevidade, mas não aceita o longevo com características de idoso. Com este panorama, envelhecer é malvisto, e, portanto, tenta-se evitá-lo com os meios que estão disponíveis. Diante de tais pressões sociais, envelhecer tornou-se vergonhoso e, portanto, excludente, fazendo com que a pessoa que vive essa transição da vida adulta para a velhice tenha um sentido de morte simbólica pela ameaça ao sentido de pertença à sociedade, com igualdade de direitos.
Em reação à discriminação e exclusão do idoso, impõem-se eufemismos para designá-lo. Da parte dos que estão em processo de envelhecimento, eles negam a passagem do tempo e transvestem-se de jovens , pelo uso de linguagem, modos e moda juvenis. Outros se tornam hostis e projetam suas frustrações naqueles com quem convivem, e há ainda os que sucumbem e resignam-se, esclerosando-se na nostalgia, por não terem capacidade de reeditar sua história, tornando-se depressivos.
O essencial é usar suas forças com parcimônia e adaptar seus esforços a seus meios. Então não sentimos mais frustração nem fraqueza. Conta-se que Mílon fez sua entrada no estádio de Olímpia carregando um boi sobre os ombros. O que vale mais? Ter esse vigor físico ou aquele, inteiramente intelectual, de Pitágoras? Em suma, usemos tal vantagem quando a tivermos e não a lamentemos quando ela desapareceu. Acaso os adolescentes deveriam lamentar a infância e depois, tendo amadurecido,chorar a adolescência? A vida segue seu curso muito preciso e a natureza dota cada idade com qualidades próprias. Por isso a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo (CÍCERO, 1997, p. 29).
Ressignificando as perdas acumuladas ao longo da vida, pode o idoso superar o sentimento de inutilidade, pois as perdas não assimiladas e os lutos não elaborados ao longo da vida aniquilam a possibilidade de envelhecer e viver a velhice com qualidade. Epimeleia é a profilaxia necessária para viver bem cada uma das fases da vida, independente da especificidade da faixa etária, sabendo, ao mesmo tempo, que esta será transitória e
que sua passagem é questão de tempo.
Considerações finais:
Investigações científicas, como a Tanatologia, têm se ocupado com o caráter transitório da vida humana e sua ordenação para a morte; a Psicologia fornece elementos sobre a elaboração psíquica e emocional desta contingência pertinente a todos os seres humanos; e a Antropologia, estudando os fenômenos que demonstram a provisoriedade da vida humana, apresenta como as várias culturas e povos ritualizam os eventos importantes da vida, experimentando, assim, mortes simbólicas. A morte está presente na vida. No decurso da existência, todo ser humano, independente da longevidade ou brevidade, vivencia eventos significativos carregados de elementos finais de estado de vida, nos quais a cessação de uma condição não implica óbito, mas ascensão a uma nova condição social ou biológica.
Cada uma das fases, presentes na curva da existência humana, estabelece o fim de uma realidade para que outra possa existir. De passagem em passagem, do nascer ao morrer, o ser humano segue o fluxo de sucessivos êxodos que inculcam a ideia da provisoriedade das realidades e da própria vida.
Apesar da similaridade da existência dos seres humanos, há realidades específicas que não são comuns a todos, ainda que uma parcela significativa as experimente. Perdas importantes são ocorrências que se caracterizam em mortes simbólicas, que apontam para a fragilidade das convenções sociais e a precariedade das aquisições individuais. Dados que apontam para a similaridade de impacto que existe entre a morte em si e as perdas ocorridas na vida das pessoas; no aspecto físico e biológico, também aparece a sintomatologia de processo de morte e luto: doenças degenerativas, amputações, cirurgias, intervenções e processos terapêuticos, que alteram a aparência, a autonomia ou a condição física do indivíduo, temporária ou definitivamente.
Em todas as esferas humanas, a provisoriedade da vida é mais bem assimilada quando o indivíduo acompanha, conscientemente, as mudanças que acontecem ao longo de sua história e desenvolvimento, absorvendo assim o impacto das perdas, ao passo que acolhe os ganhos que as mudanças proporcionam.
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