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Entrevista: Rosa Corvino
Rosa Corvino tem uma biografia muito peculiar. A saga da família tem início com a chegada de seu avô ao Brasil. Ele veio da Itália no começo do século passado e trabalhou na construção do Teatro Municipal de São Paulo. Caiu nas boas graças do famoso idealizador dessa casa de espetáculos líricos, o arquiteto Ramos de Azevedo que o convidou a administrar e morar no Teatro com a família. Anos mais tarde, com o seu falecimento, quem assumiu o posto foi seu filho, pai de nossa entrevistada. Num parto feito às pressas, Rosa Corvino veio à luz nas dependências do Teatro Municipal no ano de 1926. Lá dentro passou boa parte de sua vida. Nessa conversa, ela nos conta saborosas passagens de glamour e bom humor sobre os bastidores de memoráveis apresentações de óperas e concertos, envolvendo celebridades como Beniamino Gigli, Maria Callas, Guiomar Novaes e Bidu Sayão. Recentemente, escreveu um livro com essas histórias e o vende em frente ao Teatro Municipal, sua antiga residência.
Sua relação com o Teatro Municipal de São Paulo começa antes de você nascer, não é? Seu avô participou da construção do Teatro e posteriormente o administrou?
Isso mesmo. Meu avô e minha avó vieram da Europa em viagem de núpcias. Acabaram ficando por aqui. Então, ele se apresentou ao Ramos de Azevedo, o grande arquiteto, quando teve início a construção do Municipal. Meu avô trabalhava com mármore. Ramos de Azevedo era um homem muito simples. Ele gostava muito do vovô. Quando o Teatro ficou pronto, ele pediu para o vovô ficar tomando conta do teatro. Naquela época, o Teatro ficava fechado, três, quatro meses, porque as companhias líricas demoravam a vir. Era preciso ter uma pessoa de confiança lá.
E seu avô morava no Teatro?
Morava. No começo, morava num jardim próximo onde havia casinhas lindas. Depois, ele foi morar dentro do teatro que tinha um espaço interno enorme. Tinha muita escada. Só tinha um elevador que dava para a galeria. Para os aposentos precisava-se da escada. Eram três andares, tudo muito alto, depois fizeram outra reforma, em 1952. A gente entrava pela porta dos fundos, subia dois, três degraus, para chegar ao palco. O palco era muito alto, tinha um corredor comprido com três camarins, um deles era enorme e tinha um espelho lindo. Em volta desse espelho havia um trabalho art nouveau lindíssimo. Mas, o retiraram e ninguém sabe onde foi parar.
Segundo uma matéria, em um jornal diário, você critica as reformas que lá aconteceram. Você acha que a arquitetura original sofreu muita mudança?
Ah, sim. A primeira reforma ocorreu no começo dos anos 50. Eles mudaram os camarins que tinham o pé direito alto. Eles diminuíram essa altura. E havia esse espelho lindíssimo, folheado a ouro. Mudaram o estilo dos camarins que eram amplos. Esse espaço foi dividido em dois andares, fizeram mais andares e puseram o elevador.
Seu avô participou da construção e passou a morar no Teatro que foi inaugurado em 1911. Até quando ele ficou lá?
Ele ficou muito tempo, acredito que uns... quando começaram a vir as companhias de fora, papai já era crescido. Acho que uns doze anos, mais ou menos. Deve ter ficado até os anos trinta. E daí o papai já tinha crescido e ficou no lugar dele. Papai já tinha dezoito anos.
E seu pai tinha irmãos?
Tinha irmãs. Elas se casaram muito moças quando o vovô ainda morava no teatro. Depois que se casaram foram cada uma para um lado e papai ficou tomando conta do Teatro. Eu até me lembro quando vovô faleceu. Eu devia ter uns doze anos. Papai ficou apegado ao teatro. Ele queria tomar conta de tudo. Depois ele se casou e continou por lá.
Há um linda foto desse casamento em seu livro. E você nasceu mesmo dentro do Teatro?
Pois é. No caso dos meus dois irmãos, mamãe foi para casa da mãe dela e eles nasceram lá. Mas eu não. Acho que não deu tempo e, então, eu nasci lá dentro, no ano de 1926.
Como era o trabalho de seu pai?
O papai tomava conta de tudo. Acompanhava a chegada dos artistas, com todas aquelas malas com as roupas que traziam. Muitos vinham da Itália, eles iam a Buenos Aires e depois vinham para o Brasil. Era uma longa viagem, vinham de navio, demoravam semanas.
E eles traziam cenários também?
Nos anos 30, por volta de 1935 ou 1936 os cenários passaram a ser feitos aqui. Puseram empregados para montar e tudo mais.
E onde ficavam hospedados os artistas?
No hotel Esplanada, nos fundos do teatro, onde atualmente está a Votorantin. Todos os artistas lá se hospedavam, o papai falava que o Caruso sentava muitas vezes na porta do hotel para o engraxate lustrar seus sapatos, e ele cantava e fumava. E fumava muito. Papai falava: “como você fuma?! Vai lhe fazer mal!” Uma beleza aquele hotel. Há um fato muito interessante. O teatro, isso eu descobri depois de muitos anos, porque o papai não comentava com ninguém, ele tomava muito cuidado com isso, esse teatro tem uma passagem por baixo que vai dar lá na Votorantin. Era muito bem trancado. Papai fechava, trancava, porque as pessoas podiam invadir. Essa passagem fica no porão. O porão é o alicerce, aquilo é uma beleza. Agora, fizeram a besteira de quebrar uma parte para parecer lá no fundo uma escadaria que vai para o palco ou para ir aos camarotes. Mas o perigo é que não podiam abrir nunca essa parte. Aí, está inseguro, porque você aparece embaixo da platéia. Mas é essa mania de mudar tudo lá dentro. Quando fizeram a restauração, em 52, tivemos que sair do Teatro. Fizeram uma reforma muito grande, mas o papai estava todo dia lá. Nós mudamos porque estavam reformando, mexendo em tudo. Quando terminou a reforma, voltamos. Depois ainda houve duas ou três reformas, agora é a quarta, não dá para entender porque tanta reforma. O papai ficou lá até falecer. Ficou trabalhando lá até os 63 anos de idade.
E os bailes de carnaval no Teatro? No livro você conta que pararam porque estavam estragando o teatro, subiam nas frisas e camarotes.
Os bailes de carnavais eram muito interessantes. Mas, estragavam o Teatro. Foi uma coisa muito ruim. Naquele tempo não tinha maconha, coca, mas tinha lança perfume. As pessoas se drogavam. O primeiro carnaval foi muito lindo. Foi muito bem feito. Com desenho bonito, tiravam todas as cadeiras da plateia, mandavam para um outro teatro, mas tomavam muito cuidado. As primeiras cadeiras eram de palhinha, não eram cômodas. Em 1916, houve o primeiro baile, então tiraram todas as cadeiras e mandavam para o Teatro São Pedro. Daí, resolveram colocar poltronas mais cômodas, porque as de palhinha eram mais estreitas e cansavam. Daí puseram as poltronas de veludo e tudo. Fizeram três ou quatro carnavais. No primeiro foi lindíssimo, dançavam, não pulavam e nada de fumar. Da segunda vez, foi bonito. O terceiro e o quarto bailes foram um horror e não houve mais. Eu pedi à diretora as fotografias dos bailes de carnaval, porque eu tinha poucas e queria um acervo que ficou dentro do teatro. E esse acervo, que o papai guardou, quando precisei para fazer o livro, pedi para diretora. Aí ela falou que não, que não podia dar. Me pediram lá para o museu do Teatro e eu doei e me arrependi. Não devia ter doado nada. O papai tinha guardado muita coisa no escritório dele. Quando ele saiu entraram outros diretores, que não davam muita bola para carnavais, tiraram tudo, me virei com o que eu tinha em casa.
E sobre a Semana de 22 , seu pai lhe contou alguma história?
Ele contou que foi um acontecimento muito bonito, mas era uma turma da pesada, essa turma do Modernismo. Eram muito inteligentes. Papai dizia que eles queriam por toda lei fazer um trabalho bonito, e fizeram a Semana de Arte Moderna. Papai disse que foi muito bonito, elogiou muito a Semana. Papai disse que foi um trabalho que eles fizeram com muito amor.
A grande pianista Guiomar Novaes não quis fazer parte da Semana, não é?
É, ela não concordou. A Guiomar era maravilhosa. Como pianista, a sonoridade que ela tinha! O Nelson Freire, mais ou menos, lembra a Guiomar. A Guiomar era muito simples, ela foi para Europa e deixou os dois filhos aqui. Teve muito problema com os filhos. Ela tinha um carinho muito grande com o teatro, sempre tocou lá. Ela participou da Semana de 22, ela não queria participar, isso que o papai contava, mas no fim acabou gostando. Foi um movimento bonito o que fizeram. Naquele tempo que a gente tinha medo de falar disso e daquilo, a turma ia para a Europa, voltava com novas idéias e fazia barulho. Eu não havia nascido, mas o papai me contou.
Voltando às recordações de sua infância, quais as primeiras lembranças que você tem?
Vinham muitos balés russos. Eles usavam a sapatilha até gastar. E não recebiam nada. Desde o nascimento, desde criança viviam num regime fechado, vinham sem dinheiro, com aquelas roupas muito usadas, a gente pensava, nossa, essa gente nem parece artista. E elas perguntavam para o papai onde comprava sutiã e outros produtos. Nessa época havia muitas lojas na rua Barão de Itapetininga. Uma beleza, lojas finas. Em frente ao teatro estava o Mappin com um salão de chá, tudo muito bem servido, talheres banhados a ouro, garçons muito bem vestidos. Dá saudade. Essa região central de São Paulo era frequentada pela elite.
Em seu livro você conta que as sapatilhas das russas não podiam ser aproveitadas, porque usavam até terminar.
Usavam até terminar. Eu e minha irmã não podíamos usá-las. Mas com as americanas a coisa era diferente. Deixavam as sapatilhas no camarim, iam embora e deixavam as sapatilhas quase novas. A gente entrava lá e pegava as sapatilhas.
E o bailarino Nijinsky?
Eu não o conheci, mas a mamãe falava muito dele, ela contava que ele foi o maior bailarino do mundo. E sabe por que foi? Porque ele tinha “pé de pato”, segundo ela. Por isso ele “voava”. Eu sei que teve que fugir para os Estados Unidos. Não sei o que aconteceu, eu sei pouco sobre ele. Mas daí ele ficou doente, foi internado e faleceu em Londres.
E você assistia às óperas e concertos desde pequena?
Sim, desde pequena. Era engraçado. Eu dizia: “Onde será que vou sentar hoje? Tomara que não venha muita gente, senão nós vamos parar na galeria”. Na galeria a gente nunca ia, porque não dá para ver direito. Os empresários davam algumas entradas para a gente. Havia ótimos empresários, eram uns amores, então, eles davam as entradas, mas isso quando já éramos moças, quando criança a gente sentava na escada.
Você conta em seu livro uma passagem bonita, dos dias de seus aniversários, a colocavam na primeira fileira e diziam que o espetáculo estava sendo apresentado especialmente para você. Foi isso mesmo?
Sim! E eu acreditava! Mas, pior mesmo foi quando teve aquela revolução Constitucionalista, em 32, aí a gente ficava fechada no teatro, quando passava a polícia com metralhadora e partiam para cima dos estudantes. Prendiam os estudantes. Nós ficávamos no terraço vendo a cavalaria e ficávamos assustados. Eu tinha oito, nove anos. Eu não entendia direito o que era. E o papai nos trancava, porque no jardim ficavam muitos estudantes que o papai abrigava. Ele dizia assim: “vocês se escondam, eu vou abrir a porta, vocês fiquem no corredor”. Era um corredor comprido, que ia até o palco, e “vocês se escondam aí que a polícia está passando”. E o pessoal se escondia lá dentro. E o papai dizia que eles eram corajosos.
Você tinha contato com os artistas?
Era mais o papai que tinha o contato direto com eles. O papai não deixava ter muita conversa com eles. Uma ocasião eu e minha irmã fomos ao camarim onde estava o grupo de teatro do Ziembinsk. Eles faziam um teatro maravilhoso. Eles eram ótimos, gostavam do que faziam. O que aconteceu? Tinha um contrabaixo e tinha um piano. Quando eles viram o papai chegando... eles avisaram “Olha, seu pai está chegando!”. Minha irmã já se meteu atrás do contrabaixo, ficou lá. Eu também me escondi também.
Como foi o seu encontro com o Vila Lobos enquanto você tocava piano? O que aconteceu?
Havia um corredor entre os três camarins e era nesse espaço onde ficava o piano. Eu levantava cedinho para estudar antes da chegada dos músicos, porque oito horas já começavam a ensaiar. E eu estava tocando, alguém bateu no meu ombro e disse: “está errado, está errado”. “Quem será esse homem”? pensei. Não conheço. Porque eu conhecia todos músicos e essa pessoa eu não sabia quem era. Eu estava tocando a música do Caboclo, que é dele! E ele falou: “mas o pedal está errado”. Daí ele foi embora, acho que ele achou que não valia a pena perder tempo comigo (risos). À noite, papai falou, “não percam o concerto, porque quem vai reger é o nosso maravilhoso Vila Lobos”. Eu fui, assistir ao concerto. Quando ele entrou no palco, eu quase desmaiei! Mas tinha uma coisa, ele não deixava entrar no palco. Mas meu irmão era curioso, entrava em cada lugar! Ele que descobriu certas coisas no porão. Ele descia as escadas todas.
E como foi sua formação musical?
Eu sempre tive gosto pelo piano. A gente via muito pianista. Eu estudava no piano do Teatro. Em quase todos camarins tinha piano. Eu estudava ali. Eu tinha que me preparar porque às dez horas eu ia para o Externato São José, na rua da Glória. Já o fecharam, era uma escola de freiras. A gente ia a pé porque não tinha muito dinheiro, eu e minha irmã. Januária, era minha irmã. Ela era mais nova. A gente ia a pé, uma ou outra vez que tomávamos o ônibus. A nossa vida era muito difícil. Era difícil comprar letras de música, eram caras. Quando precisávamos usávamos da biblioteca, porque não dava para comprar livro.
Em seu livro você conta algumas saborosas histórias, como a do gato que adentrou o palco em plena apresentação. Com foi isso?
Essa história é excepcional. A cantora que se apresentava era Nísia de Castro, uma voz linda, fantástica. E apareceu um gato de repente, porque os gatos entravam pelo porão. Do porão era só um corredor e já se entrava no palco. O gato entrou e ficou parado olhando para ela. Quando ela parava, nas pausas, o que acontecia? O gato miava! Acho que ele queria que ela continuasse. Foi muito engraçado! (risos) Por três vezes aconteceu isso. O gato miava! O público caiu na risada.
E a história do colchão excessivamente macio?
Ah, meu Deus! Essa foi muito engraçada. Foi no último ato da ópera Tosca. Bem, mas nos atos anteriores também ocorreram uns imprevistos hilários. A soprano no papel de Tosca tinha uma voz lindíssima, mas ela era muito exagerada nas cenas. Então, ela estava no primeiro ato, o personagem Mario cantando e ela está com o leque na mão, então, conforme o texto da peça, ela fica brava, discute com ele, se desentendem, joga o leque que fica preso na parede! (risos). E ela fica olhando para o leque e todo mundo dá risada. Foi muito engraçado. Nesse dia aconteceu de tudo. No segundo ato, após matar Scarpia, ao invés de depositar o crucifixo em seu peito, ela, desastrada, o atira sobre ele. O que aconteceu? Ele levou um susto, estava morto, mas levou um susto e deu um pulo. A platéia desabou (risos). Mas vinha mais coisa! Os soldados vão atirar em Mário, amante da Tosca, eles vem com as carabinas e se preparam, mas o contra regra lá no fundo se precipitou e provocou o barulho de tiros antes deles! Mais gargalhadas (risos). Pensam que acabou? Não. Na cena final, ela se atira do terraço. Acontece que puseram tanto colchão para amparar sua queda, que ela foi e voltou várias vezes! Imaginem, numa cena drámatica, ela subindo e descendo com se estive numa cama elástica! São coisas que acontecem.
Há também em seu livro uma história envolvendo o governador Adhemar de Barros.
Sim. Ele estava sempre no teatro. Em uma ocasião ele chegou atrasado e perdeu o primeiro ato da ópera. Pois ele foi ao camarim e pediu para que repetissem o primeiro ato! Imagine só. Para isso ele pagou um bom cachê ao elenco. Ficou todo mundo alegre, mas o público teve que ver duas vezes o mesmo ato. Ele era muito bacana. Ele era muito amável com todo mundo.
Você se lembra de apresentações da Maria Callas?
Ah, a Maria Callas era impossível. Ela tinha um gênio muito bravo. Eu assisti a seu ensaio, ela se prepara para ópera Aída. Eu disse assim à mamãe: “Mamãe, acho que amanhã vamos ter uma ópera maravilhosa. A mulher tem uma voz lindíssima”. Mas, coitada, ela tinha doença de elefantíase, a perna era enorme, por isso ela sempre usava vestido longos, até os pés. Dá para ver um pouco em uma fotografia. Eu até achei desagradável contar uma coisa dessas, mas a perna dela era bem inchada. Pois bem, no dia seguinte, ela se aprontou, se vestiu, e Aída é uma ópera linda, embora o Verdi não tivesse conhecido o Egito, ele nunca foi lá e a ação se passa lá. Mas ele era inteligente. Naquele tempo havia compositores fantásticos. Daí, ela se vestiu como Aída, e na hora de levantar o pano, já havia sido dado o terceiro sinal, ela resolveu virar as costas e ir embora. Ela foi embora! Foi para o hotel. Pânico geral. Ela não deu bola e se mandou. O empresário quase enlouqueceu. O papai, então, lembrou da Norina Grecco que estava presente porque era casada com o dono do hotel Esplanada. Ela era muito fina, toda vez que ela vinha, trazia uma boneca para minha irmã. Foram até a frisa onde ela estava para pedir que substituisse a Callas. Disseram que a Callas havia se sentido mal. Ela disse: “eu vou substitui-la, mas vou cantar como estou.” Ela cantou e foi muito aplaudida. No dia seguinte, Maria Callas, como estava programado, cantou A Traviata e ponto final. Como se não houvesse acontecido nada. Não deu satisfação para ninguém. Nessa noite, eu fui ao seu camarim e pedi a ela uma fotografia para dar para mim e para minha irmã, e ela pôs quatro ou cinco fotografias para escolhermos. Depois disse: Peguem tudo!
O que você lembra da Bidu Sayão?
Ah, eu gostava mesmo era da Bidu Sayão. A Bidu era fina, tinha uma voz lindíssima. Enquanto que a Maria Callas morreu nova, com cinquenta e poucos anos. A Bidu foi para mais de noventa. Bem diferente da Callas, ela era muito simples, humilde, cumprimentava a gente. A voz dela era linda. Era um pássaro. Foi a única que conseguiu cantar a ópera Cecília, de dificílima execução, só ela conseguiu cantar.
E o público, de modo geral, como se comportava?
Maravilhosamente bem. Todos muito bem vestidos. Os homens de terno e gravata e as mulheres de vestido longo, nada de calça comprida. Nem pensar. E mesmo quando o público não gostava da apresentação, eles não vaiavam. Só os críticos, os jornalistas, se manifestavam pelos jornais. Mas ninguém se manifestava durante a apresentação. Seria falta de finesse.
Como era a composição do público? Além da elite, o cidadão comum também assistia ópera?
Era assim: cada um comprava o que podia. A platéia era bem mais cara, era da elite, que, muitas vezes, comprava antecipadamente toda a temporada. Sete óperas, oito óperas, a temporada toda. Aí era de Matarazzo para cima nas frisas e nos camarotes. Mas, a galeria e o anfiteatro, sempre foram mais baratos. Lá ficavam os contratados pelos empresários para baterem palmas. Eram as claques, pagas para aplaudir. Era a maneira que muitos arranjavam para assistirem aos espetáculos, pois mesmo a galeria era cara para muita gente. Todo mundo ia à ópera. Era uma coisa incrível. O paulista ia muito à ópera. E muitos estrangeiros também.
Comparativamente, o interesse do público por ópera, por canto lírico era maior ou menor do que o atual?
O senhor fez uma pergunta muito importante. Hoje não existe mais público para o teatro lírico. Até porque não se apresentam mais óperas no Teatro Municipal. Concerto ainda tem um ou outro. O Nélson Freire veio há pouco tempo. Geralmente as apresentações se dão na Sala São Paulo. Mas, a juventude não conhece ópera e não faz questão de conhecer. O nosso povo não tem cultura. Fazem barulho, gritaram, comem pipoca, não ficam quietos. Acabou o teatro de ópera no Municipal, acabou. Mas, quem vai à Sala São Paulo é porque quer ouvir uma boa música e fica quietinho.
O que você acha das atuais políticas culturais do governo, o que deveria ser feito para estimular o acesso da população ao teatro lírico?
Bem, o Teatro Municipal logicamente está na mão do atual prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Agora, o Teatro está fechado, ele mandou restaurar. Quando falamos em restauração me dá medo, porque eles começam a mudar tudo, principalmente com essa diretora que está lá.
Você vende seu livro em frente ao Teatro Municipal. Qual é a reação das pessoas?
Os jovens não querem saber de música clássica, de ópera. Eles acham chato. Eu sei porque estou vendendo o livro na rua. É na rua que eu quero vender. Eu quero conhecer o que está acontecendo em São Paulo. É um horror. Estou com uma decepção, não acredito no que vejo. Chegam a passar duas, três mil pessoas, nem olham para o livro. Não precisa comprar, mas ao menos olhem. Então, exponho fotografia dos artistas, mas ninguém olha. Eles são bagunceiros, tem que tomar cuidado senão eles tropeçam nos livros.
Em 2005 e 2006 quando você monitorava grupos de visitantes ao teatro, chegou a presenciar no Teatro Municipal esse tipo de postura?
Sim. Mesmo nas visitações. Mas, a maioria apreciava a visita. Eu dei essas aulas durante muito tempo. Quando eu me aposentei, eu pensei: “tenho que fazer alguma coisa, o que vou fazer”? Fui falar com a então prefeita Marta Suplicy e imediatamente ela se comunicou com a diretora da época e passei a monitorar as visitas. A Suplicy é ligada à arte e ela ia a muitos concertos. No começo foi uma beleza. Eram oitenta, noventa pessoas por visitação. Iamos até o porão, eu contava toda história do teatro.Mas, aos poucos foram diminuindo meus dias de trabalho, até que colocaram uma moça no meu lugar, sem experiência, sem conhecimento. O que aconteceu? A moça não sabia responder às perguntas. Você tem que saber do palco, o que acontecia com as óperas, tem que contar um pouco de tudo. Todo estilo do teatro. Muita gente queria se impor e me dizia: “esse teatro é cópia do Ópera de Paris”. Eu dizia: “Não tem nada a ver, aquele é “art nouveau”, esse aqui é diferente. E essa moça começou a teimar comigo que era cópia do Ópera de Paris. Eu dizia, “ você está ensinando errado”. Foi indo, foi indo, a diretora Beatriz Amaral, entrou, me demitiu e ficou essa moça. Ela não gosta de cultura. Por ela e pelo Kassab o teatro ia abaixo.
Em que local exatamente da Praça Ramos de Azevedo você expões seus livros?
Coloco os livros em frente ao teatro, mas na outra calçada, junto à loja das Casas Bahia. Mas, no começo eu pensei: “será que posso ficar aqui? E se chegar o ‘rapa’ e levar tudo?” (risos). Sabe o que aconteceu? De apareceram dois guardas, a polícia lá não é brincadeira, ficaram parados, olhando, pensei, “está na hora de me levantar e ir embora”. Um deles disse: “seu nome é Rosa e a senhora está vendendo o seu livro?” Eu disse: “estou, sim senhor”. Ele disse: “Esse livro é do Teatro Municipal, toda história do teatro”. Eu disse: “Sim, senhor, toda a história do teatro e comecei a tremer”. Daí ele disse: “Então, a senhora vai continuar vendendo seu livro aqui. Pode ficar sossegada. Este livro pode ser vendido aqui sim. Porque esse livro é a história daquele teatro, que nós já sabemos. A senhora vai ficar aqui. Se fizer muito sol, a senhora vai ficar mais perto de nós. Aqui se precisa de uma aula de cultura, da história do teatro Municipal, ninguém vai mexer com a senhora.” Eu pensei: “Obrigado, meu Deus!” (risos). Dei um livro para cada um deles, com autógrafo e tudo. Daí chegaram mais três ou quatro...Que beleza, dei mais livros! Fora o que meu irmão levou para um médico, dá para o outro. Ele já deu não sei quantos livros.
Você bancou sozinha essa edição?
Sozinha. Não quis procurar nenhuma editora. Quando a diretora do Teatro soube do livro, me chamou. Saiu no jornal, a Livraria Cultura me ligou. “soubemos que a senhora escreveu um livro, a senhora gostaria de vir até aqui mostrar o livro”? “Pois não”, eu fui. Mostrei o livro. “Ah, muito bom”. Então, eu perguntei: “por quanto vocês vão vender esse livro?” “Por oitenta, noventa reais”. “Ah, então tá, muito obrigada, fiquei um pouco lá, não quis ser grossa, “eu vou pensar e depois eu vejo”. Quando fui embora disse, para mim mesma “eu quero vendê-lo a um preço que todo mundo possa comprar”. Por isso que estou lá na frente do teatro. Vendo por quarenta reais. Por quarenta reais eu vendo, se passar, eu sinto que não vendo. O pessoal está “duro”. E muita gente que passa por aquele lugar nem olha o livro. Chegam a passar três mil pessoas. O morador da metrópole passa sem observar, com muita rapidez. É o mundo dos loucos também, porque também passa bêbado, passa de tudo. E as moças que passam vão chutando o que tem na frente, é uma falta de educação. São Paulo é uma loucura. E depois tem uma coisa: eles não têm o hábito de ler.
Caminhando para o final dessa agradabilíssima conversa, como você sabe, essa entrevista é para a revista A Terceira Idade que traz artigos sobre questões do envelhecimento. Para essa entrevista convidamos sempre pessoas com muitas experiências e vivida, como é seu caso. A propósito, como você vê a situação do idoso de hoje no Brasil?
Uma situação muito triste, porque muitos deles não saem de casa. Eles têm medo, ficam todos trancados em casa. Mas tem uma coisa, eles leem. O idoso lê. Lá na praça passam alguns idosos, eles leem. Eles param para ver, a juventude não. Você fez uma pergunta muito importante e isso também eu noto, vou colocar no outro livro. O jovem apenas não tem o hábito de ler.
A situação dos idosos é muito difícil. Geralmente, a maior parte deles ganha uma baixa aposentadoria. Eu vejo que o idoso não é valorizado. O remédio é caro. Os idosos temem a violência, por isso não saem. São Paulo é um lugar perigoso. Eu também não ando muito pela cidade. Geralmente da minha casa para o Teatro.
E como você está nessa fase da vida?
Eu estou muito bem. A única tristeza é ter perdido minha irmã alguns anos atrás. Com isso eu não me conformo até hoje. Era uma pessoa maravilhosa. Agora, tenho uma nova irmã em casa. É uma pessoa que me ajudou a escrever o livro e gosto muito dela. Tem dois filhos e é sozinha, trabalha muito. Tem muito valor, muito inteligente. Ela foi muita amiga da minha irmã.
Queremos agradecê-la por essa conversa tão agradável.
Eu que agradeço. Obrigado a vocês do SESC.