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A escrita como possibilidade coeducativa: aproximando gerações
DIVINA F. SANTOS
NADIA D. R. SILVEIRA
Introdução
Este trabalho se originou de pesquisa realizada a partir da vivência de uma experiência pedagógica de troca de cartas entre alunos de uma das unidades escolares da rede do Serviço Social da Indústria de São Paulo (Sesi-SP), mais especificamente entre alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e crianças do ensino regular, o que resultou na dissertação de mestrado “Relações intergeracionais: palavras que estimulam”, apresentada na PUC-SP (SANTOS, 2010).
Embora se reconheça o uso de cartas como prática educacional de grande valor, o foco de interesse deste estudo se direcionou para a perspectiva intergeracional, com o objetivo de analisar as relações entre alunos de diferentes idades, as preocupações e expectativas que os cercam neste contexto, os resultados deste relacionamento como estimuladores à construção de uma convivência respeitosa, pautada em valores éticos e morais entre cidadãos de diferentes idades, resultados estes observados tanto na escolarização formal como no âmbito familiar e social de modo geral.
A aproximação de diferentes gerações, sobretudo entre jovens e idosos, pode promover e favorecer o crescimento emocional de ambos, enfraquecendo os preconceitos e estimulando o desejo de viver plenamente a vida cultural e social. A relevância dessa aproximação entre gerações tem implicações sociais e emocionais, que muitas vezes atuam como auxiliar para melhorar a autoestima (GOLDFARB e LOPES, 2006, p. 1.378).
A partir das reflexões apresentadas, e destacando o novo papel que se espera da escola na atualidade, torna-se perceptível o valor da vivência intergeracional, como no caso da experiência em pauta, que revela o significado da coeducação entre crianças e idosos, o que permitiu, por meio da realização de um processo diferenciado de comunicação por intermédio de cartas, desencadear novas formas de relacionamento e consciência em relação ao mundo em que vivem.
Desenvolvimento
A realização da atividade pedagógica vivenciada pelos sujeitos desta pesquisa, alunos de um dos Centros Educacionais do Serviço Social da Indústria de São Paulo (Sesi-SP), nos anos de 2008 e 2009, com a utilização de cartas como forma de comunicação, constituiu-se no fator desencadeador do estudo em pauta.
Foram selecionados seis alunos mais idosos, na condição de avós do curso noturno da Educação de Jovens e Adultos (EJA), em fase de letramento e seus correspondentes interlocutores, crianças do Ensino Fundamental I (3o ou 4o ano), com idades variando entre 8 e 10 anos.
Os alunos da EJA que frequentavam um curso específico de alfabetização de adultos conviviam, na mesma sala, com colegas que se situavam em diferentes etapas do processo educacional, com idades variando entre 18 e 72 anos. A maioria deles é oriunda de estados do Nordeste brasileiro e não teve oportunidade de estudar por inúmeros motivos.
As crianças participantes da atividade em 2008 frequentavam o ensino regular, final do ciclo II, correspondente à 4a série do Ensino Fundamental I, vespertino, sendo que algumas, além do curso regular, faziam cursos extracurriculares. Já os alunos de 2009 estavam matriculados no curso em período integral e tinham seu currículo expandido, permanecendo na escola tanto no período da manhã quanto no período da tarde, dentro da nova proposta de educação da rede Sesi. A grande maioria dos estudantes é de filhos de funcionários que trabalham nas indústrias da região.
Os alunos idosos que participaram da pesquisa receberam nomes fictícios: Clarice, Lygia, Cora, Cecília e Machado. O mesmo procedimento foi adotado para as crianças, identificadas como: Rachel, Hilda, Adélia, Zélia e Vinicius. A alteração dos nomes visa preservar o anonimato dos participantes.
A abordagem metodológica da pesquisa é qualitativa; o principal método utilizado foi a análise documental do conteúdo das cartas escritas por idosos e crianças. Este procedimento permitiu desvendar toda a riqueza do diálogo realizado entre os estudantes.
Análise dos dados
As cartas iniciais trouxeram em seus conteúdos palavras que indicavam curiosidade, interesse em querer saber um pouco mais sobre as pessoas com as quais os alunos se correspondiam. A maioria solicitava descrições físicas e comportamentais, além de manifestar um forte desejo de conhecer seu correspondente.
Os alunos da EJA, de início, desconfiaram da capacidade de crianças tão pequenas serem capazes de compreendê-los, considerando a diferença de idade. Demonstraram, também, temor sobre sua aceitação pelas crianças, como registrado nos relatos a seguir:
“Pra que vou escrever para uma criança? Elas não sabem nada da vida!”
“Professora, desde quando uma criança vai ligar para o que uma velha escreve? Criança não gosta de gente velha, não!”
Destaca-se como relevante o fato de que as crianças se envolveram muito com os assuntos incluídos na conversa por seus interlocutores idosos, chegando inclusive a emocionarem-se ao ler sobre determinados temas, o que foi relatado pelos funcionários da escola. Algumas delas se entristeceram ao descobrir que as pessoas com as quais se correspondiam eram mais velhas que seus pais ou avós e ainda não sabiam escrever, chegando a questionar a professora e os pais sobre estas constatações, o que possibilitou uma tomada de consciência sobre a sociedade em que vivem.
No início, as primeiras cartas escritas pelos alunos da EJA limitavam-se somente à redação de um texto. Contudo, assim que as primeiras respostas das crianças chegaram, eles constataram que essas cartas traziam em seus conteúdos inúmeras ilustrações – pequenos desenhos feitos pelas crianças ou ainda adesivos tanto nas cartas quanto nos envelopes –, além de abusarem das cores. Essa nova forma de comunicação os influenciou imediatamente e a alegria tomou conta do grupo de idosos, pois perceberam que foram aceitos pelas crianças e que elas não se limitavam em apenas escrever. Notaram, deste modo, a existência de uma comunicação diversificada e personalizada, rica em cores e recursos gráficos.
Com o passar do tempo, observou-se que os ganhos indiretos deste trabalho foram muito significativos, em virtude das falas e das expressões dos alunos, sobretudo dos idosos, como pode ser constatado no depoimento a seguir:
“Professora, ninguém, nunca escreveu para mim, esta é a primeira carta que recebo na vida.”
Nas cartas foram encontradas palavras de estímulo, de incentivo, de angústia, de amizade, de conforto e de aconselhamento. Para proceder à análise dos conteúdos das cartas, foram consideradas diferentes categorias: religiosidade, sonhos, mundo do trabalho, alteridade, comunicação por imagens e símbolos.
Religiosidade
Sabemos que a religiosidade no Brasil é muito forte e, portanto, o seu apelo fez-se presente na maioria das narrativas, evidenciando-se na saudação ou na despedida das cartas. Vale destacar que a grande maioria dos alunos desta unidade escolar é religiosa. Algumas frases das cartas demonstram explicitamente esta característica:
[...] se Deus quiser logo estarei escrevendo melhor [...]
[...] Deus te abençoe [...]
[...] Deus te proteja [...]
[...] Estou bem, graças a Deus [...]
É recorrente nas cartas a referência à “bênção”, a qual, para os interlocutores, tem uma grande importância; Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 129) confirmam esta prática ao afirmar que: “Abençoar quer dizer, na realidade, santificar, tornar santo pela palavra, isto é, aproximar do santo, que constitui a mais elevada forma da energia cósmica”.
Assuntos referentes à religiosidade apareceram em uma sucessão de cartas, gerando vários debates envolvendo muitos estudantes, o que possibilitou um grande aprendizado de valores, pois permitiu que os alunos refletissem sobre suas condutas diante da grande diversidade de pessoas existentes em nosso país, mostrando que o respeito à heterogeneidade social é importante pelo reconhecimento das diferenças de ordem política, econômica e social, tais como: orientação religiosa, étnica, etária e de gênero.
Um exemplo da narrativa foi observado nas cartas trocadas entre as alunas Lygia e Hilda.
[...] espero que goste do que escrevi, pois ainda são poucas palavras que aprendi [...] Tive ajuda da minha colega e da professora [...] Lygia
[...] eu sei que com fé em Deus nós duas poderemos melhorar. Eu também tenho minhas dificuldades na escrita [...] E tudo que coopera para o bem daqueles que amam a Deus!!! Finalizo esta carta com beijos e abraços! Que Deus te abençoe!!! [...] Hilda
Neste trecho, Hilda mostra para Lygia que também tem dificuldades, mas que se esforça para aprender. Ou seja, para aprender é preciso ser perseverante e acreditar que podemos atingir objetivos, não importando a idade, e que todos necessitam dedicar-se para superar obstáculos. Em suas narrativas ela explica que, além do esforço, é necessário acreditar que Deus ajudará as pessoas possuidoras de fé. Trata-se de um forte apelo à religiosidade. Lygia escreveu também:
[...] Eu sou uma pessoa de idade, minha leitura é pouca, mas espero em Deus que vou aprender mais. Eu sou baixinha, cabelos grisalhos, mas gosto de todas as pessoas, crianças e adultos. Deus gosta das pessoas assim [...] Seja sempre essa menina estudiosa. Que Deus te proteja e ilumine seu caminho [...]
Sonhos
As palavras escritas pelas crianças em algumas cartas mexeram profundamente com as emoções de vários alunos mais idosos. A ideia central foi lutar para realizar os sonhos e ser perseverante. Isso pode ser observado em um diálogo entre as alunas Cora e Adélia. Em uma carta, Adélia fez referência à importância de não desistir dos estudos:
[...] Minha amiga, falo para você não perder essa garra e força pelos estudos [...]
Após ler o trecho acima, Cora respondeu:
[...] Fiquei muito feliz com sua carta, mas, como eu não sei escrever e preciso de ajuda, estou triste. Quando sua carta chega, fico nervosa porque não consigo escrever direito [...]
Na carta seguinte, Cora recebeu de Adélia uma resposta que a fez emocionar-se, pois em sua mensagem ela chama a atenção de Cora no sentido de acreditar mais em si mesma:
[...] Você não pode ficar desanimada e triste, você tem que pensar que pode e eu sei disso [...] Não desista! Fica com Deus.
Cora emocionou-se ao ler a resposta da criança. Na carta, a menina foi otimista ao responder que ela podia se superar, mas que para isso ela não poderia desistir. Após ler a carta, Cora respondeu:
[...] Oi, tudo bem com você? Comigo está tudo bem. Fiquei feliz com sua cartinha, pela força que está me dando. As vezes eu fico triste e desanimada, mas não vou desistir. Assim como você, eu tenho esperança que vou conseguir. [...]
Nas trocas de cartas entre essas duas alunas ocorreram palavras de incentivo e uma forte interação entre elas. Contudo, Cora viveu uma contradição já que, por um lado, estimulava Adélia a correr atrás dos sonhos, mas ela mesma esqueceu-se dos seus sonhos, deixando-se levar pelo desânimo: ela escreveu para a criança ser perseverante, contudo tinha dificuldade de agir da mesma forma.
Nesse momento, Adélia teve um papel de grande influência na vida de Cora, mesmo que ela não tivesse consciência da representatividade de suas palavras. Cora afirmou que se sentia na “obrigação” de dar exemplo de vida e vitória e não de desistência, o que representaria mais uma derrota em sua vida tão sofrida, cujo maior desejo era o domínio da escrita.
A relação profunda de crianças e idosos faz com que esta interação ocorra como em um espelho, com palavras e gestos de um tocando e mexendo com o outro, provocando respeito e admiração entre ambos. Adélia deu um grande ensinamento a Cora no sentido de não desistir tão facilmente dos seus sonhos, mostrando que é preciso ser muito mais que otimista: é necessário ser persistente.
O mundo do trabalho
Nas cartas encontram-se temas referentes à aposentadoria e à dificuldade de recolocação no mercado de trabalho, decorrente da falta de qualificação profissional ou ainda pela idade avançada, assim como sobre o desafio de trabalhar durante o dia e estudar à noite e sobre o cansaço, entre outros. Desse modo, as crianças tiveram a oportunidade de, por meio de suas narrativas, depararem-se com essa nova realidade que estava de certa forma distante delas. Em suas respostas, as crianças proporcionaram aos seus interlocutores palavras de esperança, de estímulo, de apoio e de perseverança, como podemos observar nos diálogos entre a idosa Clarice e Rachel, sobre a dificuldade de conseguir recolocação no mercado de trabalho, principalmente em decorrência da idade avançada e da baixa escolaridade, como pode ser observado a seguir:
[...] Fiquei feliz com sua carta, mas hoje estou triste por que procurei trabalho e não consegui, acho que é por causa da minha idade. [...] Sou vó de 4 netos, são lindos e maravilhosos. Você tem vó? Eu às vezes cuido dos meus netos. [...]
Clarice escreveu essas palavras após ter participado ao longo do dia de alguns processos seletivos à procura de trabalho. Segundo a aluna, em um dos locais a que compareceu, a entrevistadora disse que ela era velha demais para o cargo e que não conseguiria dar conta do serviço ao qual se candidatava. Muito angustiada e incomodada com sua condição de idosa e desempregada, ela desabafou com Rachel, que, comovida com sua dor, enviou a seguinte resposta:
[...] Eu também fiquei feliz com sua carta. Não fique triste você vai achar seu trabalho. Aposto que suas netas são lindas. Eu tenho 2 avós e uma de consideração que se chama Clarice também! [...] Logo, logo você vai aprender a ler e a escrever bem [...]
Rachel, dentro das suas possibilidades, procurou elevar a autoestima de Clarice, inclusive ao revelar que ela tinha o mesmo nome de uma de suas avós, evidenciando que estava na torcida pelas suas futuras conquistas: aprender a ler e escrever, assim como se recolocar no mercado de trabalho. A esta manifestação, respondeu Clarice:
[...] Estou feliz em receber sua carta e tenho novidade para você. Eu estou trabalhando e estou muito feliz, entro as 5:00 horas da manhã e saio as 2:00 horas da tarde, mesmo cansada venho para a escola; fiquei 2 anos sem conseguir trabalhar, mas agora minha carteira está registrada. Você faz ideia da minha alegria? Eu quero mesmo aprender a ler e escrever logo. [...] Espero que você passe de ano na escola [...]
No dia em que escreveu esta carta, a aluna idosa estava realmente muito feliz e chegou a comentar em sala de aula que só conseguiu o trabalho porque Rachel orou por ela. A menina, neste caso, teve um papel muito importante, suas palavras reacenderam a esperança de Clarice, pois ela encontrava-se, nessa época, com baixa autoestima em função da sua condição de desempregada, improdutiva e dependente da família.
Clarice possibilitou que Rachel refletisse sobre o mundo do trabalho e sobre a necessidade humana de sermos produtivos, independentes e úteis à sociedade. Durante o período em que frequentou a escola e que pôde corresponder-se por meio de cartas, Clarice superou enormes dificuldades, mudou seu comportamento, ampliou sua visão de mundo e foi um grande exemplo de luta e dedicação. Tanto ao ler quanto ao escrever as cartas, ficava muito feliz a cada correspondência recebida.
Clarice chegou a comentar em sala de aula que mudou totalmente a forma de relacionar-se com as crianças. Antes achava que criança não sabia nada da vida, mas com sua participação no projeto “Cartas”, e a cada correspondência recebida, descobriu que estava enganada. Ao contrário do que imaginava, aprendeu muito na interação com a menina com quem se correspondia. Segundo ela mesma, seu aprendizado foi muito além das palavras escritas por Rachel.
Alteridade
A questão da alteridade apareceu na maioria das cartas, das quais destacamos o diálogo entre a aluna idosa Cecília e sua correspondente Zélia, pois suas narrativas permitiram o debate entre os colegas de sala a respeito de alguns estereótipos e generalizações sociais sobre relacionamentos humanos.
A garota revelou outro lado do mundo infantil, desconhecido por Cecília, após mencionar que faltava com certa frequência à escola para tratamento médico. Isso de certa forma surpreendeu não só a aluna da EJA, mas toda a sala. Quando sua carta foi socializada com os colegas, ela comentou que, em seu imaginário, sempre que olhava para uma criança, enxergava um ser jovem, saudável e feliz, portanto sem problemas, mas ao ler a carta percebeu que a menina também tinha dificuldades e necessitava de cuidados com a saúde. Cecília sensibilizou-se também com a resposta de Zélia, o que mudou sua forma de relacionar-se com outras crianças – agora procura entendê-las melhor. Esta vivência se expressa no trecho abaixo, escrito por Zélia:
[...] Olha, eu não tenho muito tempo para estudar porque estou sempre faltando para ir ao médico porque tenho artrite [...] eu estudo no SESI desde os 4 anos de idade. [...] eu sou bem quieta e tímida [...] Muitos beijos de sua amiga [...]
Esse tema foi muito debatido entre os estudantes. Este não é um pensamento isolado, pois, em geral, a grande maioria das pessoas associa doença à velhice e saúde à juventude. Portanto, pode-se dizer que o debate proporcionado por estas correspondências permitiu uma aprendizagem significativa não só a ambas, mas também aos seus colegas de classe e familiares.
Numa outra carta Zélia emocionou não só a Cecília, mas toda a sala de aula, pois a menina reconheceu o esforço de todos os alunos da EJA pela tentativa de alfabetizarem-se depois de tantos anos vividos, mencionando, em suas palavras, as grandes oportunidades que em geral as crianças têm nos dias atuais e das quais os estudantes da EJA foram excluídos quando tinham as mesmas idades das crianças, suas correspondentes.
[...] gostei muito de ler a sua carta e saber que você está se esforçando para se alfabetizar. [...] espero que você consiga seu objetivo de mostrar a todos o valor do estudo para nós crianças que hoje em dia temos tantas oportunidades. Eu contei para minha família e todos estamos torcendo por você! Um beijo minha amiga! [...]
Comunicação por imagens e símbolos
A marca da comunicação que esteve presente em praticamente todas as correspondências trocadas entre as crianças e os idosos participantes do projeto “Cartas”, e que merece destaque, envolveu as inúmeras ilustrações existentes nas cartas. Esta é uma maneira diferenciada de comunicação, tão válida quanto a escrita. Pode-se dizer que as crianças preferiram utilizar uma marca sobre a qual possuem maior domínio, pois os registros pictográficos, os desenhos e os símbolos são muito frequentes no mundo infantil.
Embora as crianças já possuam boa noção da escrita alfabética, e tenham se correspondido por meio das palavras, observa-se na temática da comunicação por desenhos e símbolos uma transformação que elas provocaram na grande maioria dos alunos idosos.
Com o objetivo de resolver as inúmeras dificuldades no momento de retribuir as ilustrações das cartas recebidas, os alunos da EJA utilizaram-se de alguns recursos. Em alguns casos compraram adesivos infantis nas papelarias próximas da escola, outros recortaram figuras de diferentes revistas em sala de aula ou ainda solicitaram aos colegas para fazerem desenhos em suas cartas. Dessa forma, presenciamos em sala um verdadeiro intercâmbio entre todos os alunos de diferentes idades e gêneros.
Machado, um senhor de 66 anos, no início bastante tímido, muito discretamente fez o seguinte comentário: “Professora, eu não sei desenhar, mas eu queria muito colocar uma gravura para o meu menino, eu sei que ele vai gostar, posso pôr?” Assim que obteve uma resposta afirmativa, outros colegas solicitaram a este senhor que cedesse os adesivos que não utilizaria, pois também desejavam colar figuras em suas correspondências; só não o fizeram antes talvez por acanhamento ou timidez.
Um rapaz, estudante da EJA de apenas 20 anos de idade, chegou a fazer algumas brincadeiras com os colegas mais velhos de turma dizendo que desenho era coisa para mulher e que homem tinha de fazer carta de homem. Porém, este aluno, embora não tivesse colocado em suas cartas nenhuma ilustração, não conseguiu desestimular os demais colegas com seu comentário estereotipado. Ele foi um dos poucos que preferiram não ilustrar suas correspondências. Esta situação demonstra que “processos de coeducação entre gêneros ou etnias são exemplos de tentativas de aproximação dos diferentes” (FERRIGNO, 2009, p. 281).
Nas cartas, várias crianças comunicaram seus pensamentos por meio dos seus desenhos, sendo esta uma forma de comunicação social propiciadora do desenvolvimento da consciência humana. Podemos observar nas ilustrações o quanto a linguagem está ligada à capacidade de imaginação e que o desenvolvimento da linguagem escrita da criança pode ocorrer no deslocamento do desenho de coisas para o desenho de palavras. Neste processo de transição é que, muitas vezes, pode ocorrer o desenvolvimento do simbolismo no desenho.
Considerações finais
O tipo de experiência relatado pode proporcionar mudanças de comportamento e incentivar uma maior compreensão mútua entre alunos de diferentes idades no seu convívio social. Neste caso, a proposta iniciou-se na escola, mas estimulou desdobramentos diferenciados no âmbito da família e em outros segmentos sociais. O estímulo para a construção de uma convivência respeitosa e pautada em valores éticos e morais entre cidadãos de diferentes idades foi um dos pontos mais importantes das relações intergeracionais focalizadas neste estudo.
Neste sentido, essa experiência possibilitou uma aproximação entre todos os envolvidos direta ou indiretamente com o projeto. Foram vários os depoimentos dados por diversos membros da comunidade escolar, como pais, professores, funcionários e dirigentes da escola, sobre os efeitos decorrentes deste trabalho, reafirmando a importância dessa iniciativa de cunho interdisciplinar e intergeracional nos espaços escolares. A troca de cartas entre os alunos foi muito significativa para todos os envolvidos, como é revelado pelo relato da mãe de uma das crianças:
“Professora, eu me emocionei junto com meu filho neste projeto, ao ler as cartas recebidas por ele e as palavras escritas pelos estudantes idosos; suas histórias e experiências de vida certamente foram muito estimuladoras não só para meu filho como para mim. Nós dois aprendemos muito.”
O depoimento a seguir, dado por uma aluna da EJA no momento de escrever a carta de despedida, revela o envolvimento emocional estabelecido entre ela e sua interlocutora: “Hoje eu estou triste, porque esta é a ultima carta que escrevo para esta menina. Quando escrevo a ela esqueço todos os meus problemas.”
Outro desdobramento positivo deste trabalho foi a intensa adesão dos alunos ao projeto, o enfrentamento do abandono dos estudos e da consequente evasão escolar, por parte dos estudantes da EJA, que sempre foi uma grande preocupação tanto de professores quanto de dirigentes escolares. Tivemos relatos de alguns alunos afirmando que, embora estivessem muito cansados em razão do trabalho e pensando em abandonar a escola, não o fizeram porque queriam continuar a se comunicar com as crianças. Esta é uma clara demonstração não só da força das narrativas das crianças, mas também do envolvimento emocional desencadeado por todo o processo de produção e troca das cartas.
O recebimento da carta, a leitura, a elaboração da resposta e o envio da correspondência atenderam a expectativa de serem aceitos e despertaram o valor das palavras, até porque, em geral, as crianças estimulavam seus interlocutores a continuar e a não desistir dos estudos, dando assim apoio a estes alunos tão carentes e sofridos ao longo de suas vidas. O relato de estudantes da EJA que afirmaram nunca ter recebido uma única carta em suas vidas evidencia a importância dessa experiência.
A possibilidade de trocar cartas entre os estudantes da EJA, sobretudo aqueles com idades bem avançadas, e as crianças pode, desse modo, promover um resgate do elo geracional perdido entre ambos, visto que nas sociedades modernas, em razão da fragmentação de muitas famílias, nota-se que a impossibilidade de convívio entre avós e netos vem aumentando. As cartas poderão resgatar valores adormecidos por uns e desconhecidos por outros. O processo vivenciado pelos alunos possibilitou uma tomada de consciência em relação ao mundo em que vivem, promovendo o respeito pela diversidade e a educação para o envelhecimento.
Referências bibliográficas
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário dos símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
FERRIGNO, J. C. Educação para os velhos, educação pelos velhos e a coeducação entre as gerações: processos de educação não formal e informal. In: PARK, M. B.; GROPPO, L.A. (Org.). Educação e velhice. Holambra-SP: Setembro, 2009.
GOLDFARB, D. C.; LOPES, R. G. C. Avosidade: a família e a transmissão psíquica entre gerações. In: FREITAS, E. V.; PY, L. et al. Tratado de geriatria e gerontologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006. p. 1.374-1.382.
SANTOS, Divina F. Relações intergeracionais: palavras que estimulam. 2010. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.