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Hoje tem palhaçada?

O palhaço mudou. Está mais mímico e menos falante para dar o seu recado ao respeitável público em picadeiros e palcos maiores. À medida que os esquetes circenses dão lugar a um espetáculo mais cênico, a improvisação também diminui.

Atualmente, qualquer um pode ser palhaço, já que, com o surgimento das escolas de circo, as técnicas de representação não são mais exclusivas das famílias circenses tradicionais. A geração de atores-palhaços que se formaram nas escolas assume múltiplos papéis; além de palhaços, interpretam dramas no teatro, são diretores e dramaturgos. Essa geração foi a responsável pela criação de importantes companhias de circo contemporâneo, como Circo Roda, Solas de Vento, Intrépida Trupe, Linhas Aéreas e Circo Zanni, e também por companhias de teatro que utilizam essa linguagem em seus espetáculos, como é o caso dos Parlapatões, La Mínima, Nau de Ícaros, Pia Fraus, Ornitorrinco, Teatro do Anônimo, Barracão Teatro, entre outros.

Palco dessas transformações, o chamado circo contemporâneo é caracterizado por companhias que realizam grandes espetáculos, com música marcante e um tema que serve como fio condutor aos vários números acrobáticos, de malabarismo, apresentação de palhaço, entre outros, cujo grande expoente mundial é a companhia canadense Cirque du Soleil, afirma o pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Censura da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), autor de Mixórdia no Picadeiro: Circo-teatro em São Paulo (Fapesp, 2011), Walter de Souza Junior.

A definição não está totalmente esclarecida para alguns pesquisadores, mas a maioria concorda que há “uma tendência de uma poética não fundamentada no critério da montagem de atrações que de certa forma pautou o circo pelo menos durante o século 20”, diz o professor do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) Mario Bolognesi, autor de Palhaços (Unesp, 2003).

Para ele, conduzir o espetáculo circense por um enredo dramático não é nenhuma novidade histórica, já que o século 19 está recheado de experiências com essa característica. O circo contemporâneo, que ganha força de 1975 em diante, estaria então retomando a busca por uma linguagem poética metafórica abolida no século 20, época em que o circo, assim como as outras artes modernas, foi atrás de sua especificidade.

Tradicionalmente, pelo fato de os circos serem menores, o palhaço estava fisicamente próximo do público, por isso boa parte de sua comicidade era calcada na oralidade, além do suporte da parte física e da mímica. A piada nascia do diálogo entre dois palhaços. Como os circos foram ficando cada vez maiores (na década de 1970, surgiram circos americanos com até três picadeiros), o humor oral acabou diminuindo e o palhaço tornou-se mais mímico, pois era difícil ser ouvido pelo público do meio do picadeiro, explica Souza.

“Circos que aparecem na década de 1970, no Brasil, como o Garcia e o Orlando Orfei, já trazem essa figura que constrói todo o esquete cômico com a mímica, que vai ser a tônica dos palhaços atuais, muito baseados na experiência do Cirque du Soleil.” Nessa companhia, a tendência é ainda mais forte, pois o que prevalece é a música. “O palhaço e todos os artistas abandonam a oralidade para interagir com a música, que é o tema do espetáculo”, afirma.

O antigo e o novo

O palhaço perdeu espaço no circo contemporâneo, segundo Bolognesi. Do ponto de vista estrutural do espetáculo, a ênfase está nos palhaços de entrada, aqueles que apresentam um número fixo todos os dias, em detrimento do tipo Toni da Camerino (palhaço de camarim), que tem como matriz a improvisação e versatilidade, e mostra repertório variado em toda apresentação.

“O circo tem palhaços de entrada, mas o forte do palhaço no circo é o Toni, que ainda existe e está presente em vários circos, mas no circo contemporâneo esta figura está desaparecendo”, diz. Outra tendência que se observa nesses novos espetáculos, de acordo com ele, é uma espécie de indistinção das categorias de palhaço, comediante e humorista. “O que se nota é uma mescla de todas elas”, afirma.

Já o ator, diretor e dramaturgo Hugo Possolo, dos Parlapatões, acredita que, na tentativa de adequar o palhaço, que tem como origem expressiva o instinto humano de sobrevivência, aos tempos de conservadorismo atuais, passa-se um verniz intelectual nele. O uso do termo clown, em inglês, em vez de palhaço, é um dos exemplos que ele cita dessa tendência, assim como o apagamento de alguns de seus potenciais expressivos, como o humor baseado na sexualidade e escatologia.

“Esse conteúdo é maquiado por um discurso politicamente correto, e externamente muitos palhaços de hoje se adequaram ao visual contemporâneo, mas isso não significa que o visual dialogue com o conteúdo”, afirma Possolo. Fora dessa linha estão o palhaço russo Slava Polunin, criador dos espetáculos Snowshowe Diabolo, o bufão italiano radicado na Espanha Leo Bassi e os atores brasileiros Esio Magalhães, um dos fundadores do Barracão Teatro, e Claudio Carneiro, que integrou o espetáculo Varekai do Cirque du Soleil.

“O Slava é um símbolo muito forte, porque ele atua nos ícones clássicos e busca recursos de diálogo mais contemporâneos, mesmo tendo trabalhado no Cirque du Soleil, nunca foi um palhaço moralista”, diz Possolo. “Já fora do mainstream, um nome importante é o Leo Bassi, que é de família circense e, no entanto, fez uma opção ligada a bufonaria. Ele tem um discurso absolutamente radical e provocativo.”

Os diversos palhaços que Possolo interpreta nos espetáculos dos Parlapatões e do Circo Roda, companhias que ajudou a criar, são baseados no tipo clássico. A raiz do arquétipo está na alegria, e na bufonaria, que tem a dor como propulsão do riso. “A arte do palhaço é zombar da capacidade humana de acertar e sempre por meio da alegria”, diz. Do ponto de vista visual, ele dispensa a maquiagem e varia o figurino entre o clássico – roupa, chapéu e acessórios com tamanho exagerado – e uma indumentária mais contemporânea. 

O surgimento das escolas de circo foi fundamental nesse contexto e também para a criação, a partir da década de 1980, de companhias teatrais que usam a linguagem circense em seus espetáculos. No Brasil, a primeira delas, a Academia Piolin de Artes Circenses, foi fundada em 1978. A partir de então, várias outras são lançadas. Para Souza, pela primeira vez, era formada uma geração de artistas circenses que não tinham origem em famílias tradicionais e o saber circense não era mais exclusivo de algumas pessoas, mas passou a ser acessado por quem se interessasse.

“Temos um profissional com outro perfil, esses artistas trabalham em alguns contextos como palhaço, mas também interpretam outros papéis no teatro, nos espetáculos de dança, atuam como acrobatas”, explica Bolognesi. “Encarar os profissionais contemporâneos como atores que interpretam palhaços é uma maneira de se referir a essa geração formada pelas escolas, que mistura técnicas circenses com ansiedades interiores próprias do ato de atuar”, afirma o ator, diretor, ex-integrante da Intrépida Trupe e intérprete do palhaço Xuxu, Luiz Carlos Vasconcelos.

O palhaço Xuxu acompanha Vasconcelos há 34 anos. O personagem é fruto de um projeto pessoal do ator de criar um vínculo com a comunidade do bairro Roger, em João Pessoa, na Paraíba, onde está localizada a Escola Piolin, criada por Vasconcelos em 1977. Todo sábado, às 15h, ele apresenta nas ruas do bairro Silêncio Total! Vem Chegando um Palhaço, espetáculo que também exibe em palcos pelo Brasil.

“Meu palhaço é a junção de elementos da tradição popular e desse palhaço contemporâneo, digamos assim, ligado à verdade do ser. Aquilo que está exposto no Xuxu, a vaidade dele, é a minha essência, e a forma externa dele, barrigudo, calça curta, todo pintado, esse excesso é da tradição popular, da rua e do circo brasileiro”, comenta. “Eu pinto a orelha, o pescoço, uso luvas, tento ocultar totalmente o Luiz Carlos para que meu ridículo aflore plenamente.”

Teatro vai ao circo

O movimento do circo contemporâneo é concomitante à criação de companhias teatrais que se apropriam da linguagem circense para renovar a dramaturgia. “Eles iniciam um processo de resgate, de ouvir os velhos palhaços, de entender como era a dramaturgia antiga e fazem uma nova leitura teatral desse tipo de dramaturgia circense”, diz Souza.

De acordo com Bolognesi, como o teatro realista foi muito forte no Brasil, essa aproximação foi contida por algumas décadas. “Imediatamente após o movimento naturalista do teatro russo, que foi fortíssimo, com Stanislavski [ator e diretor que inovou o método de interpretação cênica], tem a reação a ele, o chamado teatralismo, que vai buscar no circo um arsenal técnico e de linguagem para renovar a linguagem teatral”, afirma. “O Peter Brook [diretor de teatro e cinema britânico] diz que quando o teatro erudito, oficial, está em crise, ele vai buscar a saída na cultura popular. E isso é cíclico.”

Vasconcelos acredita que a aproximação do teatro ao circo e o circo “dramatizado” fazem parte de um movimento mais amplo, que ele chama de revolução das artes cênicas, na qual o circo, o teatro, a dança e até a ópera estão se imbricando. “Daqui a pouco vai ser muito difícil você olhar um espetáculo e dizer: isso é teatro, dança ou circo. No contexto histórico que estamos vivendo, essas fronteiras tendem a se diluir”, detalha.

“Acho que a arte cênica está se autocontaminando com as várias vertentes da cena para criar uma nova cena que não é exatamente só dança, nem só teatro ou circo, na qual esse ator, que se habilitou na dança, no circo e no teatro, produz uma nova expressão diante deste também novo espectador.”


Espetáculo  multifacetado

Programação variada agrada diversos  tipos de público

A linguagem circense em suas várias manifestações permeia a programação do Sesc há anos. Espetáculos de circo contemporâneo são realizados em teatros e centros de convivência e os tradicionais, em lonas montadas nos espaços abertos das unidades. Oficinas de técnicas circenses e encontros temáticos também são oferecidos ao público. “Por ser uma arte popular, temos uma procura muito grande tanto pelas oficinas, quanto pelos espetáculos de circo”, afirma a assistente da Gerência de Ação Cultural para a Linguagem do Circo do Sesc Carolina Garcez.

Segundo Carolina, além das grandes companhias, como Zanni, Vox e Acrobático Fratelli, o Sesc recebe grupos menores, duplas ou trios, em que o forte é a palhaçaria. Há também espetáculos contemporâneos em que artistas de circos tradicionais aposentados apresentam números que costumavam realizar.

Entre os destaques da programação de novembro estão o Especial Circo Híbrido, de Porto Alegre, no Sesc Pinheiros, o projeto CircoLação – composto por um espetáculo e uma oficina de palhaço com a atriz e diretora argentina Julieta Zarza – na unidade Presidente Prudente, apresentações do Circo Vox e do circo espanhol Circ-Cric, com a presença do palhaço Tortell Poltrona, em Osasco.

Em homenagem ao palhaço, o Sesc Belenzinho promove o evento Tanto Riso, Ó Quanta Bobagem!, composto por oficinas, bate-papo e 12 espetáculos com a presença de Esio Magalhães, Parlapatões, Cia. Do Quintal, entre outros. O Sesc Ribeirão Preto recebe o 3º Encontro Palhaços em Todo Lugar, que propõe a difusão da linguagem do palhaço e suas possibilidades de atuação. Ainda este mês, o roteiro do filme O Palhaço, de Selton Mello, será lançado pela Edições Sesc em parceria com a editora Ouro Sobre Azul. Confira a programação no Em Cartaz.


Palhaços híbridos

O circo serviu como fonte  de artistas para o cinema, o rádio e a televisão 

Além de no teatro, o palhaço e a linguagem circense estão presentes no cinema, na televisão e no rádio. Muitos dos diretores e atores do chamado primeiro cinema, tanto nos Estados Unidos quanto na França, vieram do circo. O mágico Georges Méliès trouxe o ilusionismo e artistas do circo para os filmes franceses. Já o cinema americano usa referências do vaudeville francês, espetáculo popular de variedades de origem circense apresentado até as primeiras décadas do século 20, de onde surgiu Charlie Chaplin.

Segundo o pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Censura da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), autor de Mixórdia no Picadeiro: Circo-teatro em São Paulo (Fapesp, 2011), Walter de Souza Junior, Chaplin se apropria também do melodrama, que, depois da comédia, é o gênero circense por excelência. Ícones do cinema nacional, como Mazzaropi, Oscarito, Ankito e Grande Otelo, tiveram experiências no circo.

“Quando esses grandes cômicos aparecem, têm a grande sacada de não levar a máscara do palhaço para o cinema, porque a pintura no circo tem a função de reconhecimento, se você está sentado na arquibancada e entra um palhaço, você vai percebê-lo imediatamente”, afirma Souza. “Na TV e no cinema com o close, a pintura não é necessária, você reconhece a comicidade do Oscarito no momento em que ele fala, nos trejeitos.”

Entre os humoristas da televisão que seguem a linha cômica do palhaço, além dos próprios Arrelia, Torresmo e Carequinha, que tiveram longa carreira nesse meio, estão Os Trapalhões e o Ronald Golias. “Os Trapalhões, que começaram no rádio e depois foram para a TV, são mais assumidamente ligados ao circo, um mestre ligado à família do Dedé Santana deu dicas para eles, soluções cênicas”, explica o ator, diretor e dramaturgo Hugo Possolo, do grupo Parlapatões.

A influência entre o circo e a televisão extrapola a migração de profissionais. “O formato dos programas de auditório, tanto do rádio como da televisão, é o espetáculo circense, com o mestre de cerimônias apresentando atrações, fazendo entrevistas e trazendo artistas conhecidos”, diz o professor do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) Mario Bolognesi, autor de Palhaços (Unesp, 2003).

“A estrutura do programa do Chacrinha é idêntica à do Pastoril Profano [folguedo popular dramático praticado no Nordeste]: as pastorinhas são as chacretes e o Chacrinha é o palhaço que usa todas elas e o público para fazer sua apresentação.”

Outro exemplo marcante de como o circo serviu como molde para os programas de televisão é a história do Circo do Carequinha, programa exibido na década de 1950 e 1960, retomado pela TV Manchete, em sua inauguração, nos anos de 1980. Depois de um ano e meio no ar, o palhaço Carequinha se desligou do projeto e a produtora, Marlene Matos, resolveu manter a mesma estrutura e colocar uma moça apresentando.

“E a pessoa chamada foi a Maria da Graça Meneghel. Ou seja, todo o histórico do programa da Xuxa desde essa época nada mais é do que um decalque do programa do Carequinha”, diz Souza. No livro Circo Eletrônico, Daniel Filho, um dos responsáveis por estruturar a teledramaturgia na TV brasileira, diz que fazer TV nada mais é do que fazer circo. “Aquela cultura do improviso e de que o espetáculo tem que acontecer é igualzinho”, completa Souza.

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