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Lentes de contestação

Quando o diretor João Batista de Andrade decidiu fazer cinema, ele ainda era um estudante de engenharia da Escola Politécnica da USP. Sozinho na cidade de São Paulo, conforme ele próprio disse, passou a conviver com a efervescência cultural e política que agitavam o final de 1950. E mais tarde se entrosou com a militância estudantil. “Porém, com o golpe em 1964, eu fiquei completamente perdido e não sabia para onde ir, nem o que fazer da vida”, afirmou o cineasta e escritor à Revista E.
Sem abandonar as convicções, João Batista rodou seu primeiro filme ainda no terreno estudantil. E, atualmente, já se somam vários documentários como Liberdade de Imprensa (1967), Migrantes (1973), Greve! (1979), e onze longas-metragens, entre os quais Doramundo (1978), O Homem que Virou Suco (1980), O País dos Tenentes (1987). Também escritor dos livros Um Olé em Deus (Scipione, 1997) e Portal dos Sonhos (Edufscar Editora, 2001), o cineasta conta a trajetória e os componentes criativos flagrados em sua filmografia. A seguir, trechos.

A descoberta

No final dos anos de 1950, tive de escolher uma carreira. Escolhi engenharia, que nada tinha a ver comigo. Mas acabei descobrindo o cinema. E, claro, em minha família ninguém imaginava que isso pudesse ser uma profissão. Eu era sozinho em São Paulo, ninguém me conhecia, como ia abrir caminho? Logo nos primeiros anos do curso de engenharia na Escola Politécnica da USP, em 1960, tomei contato com a boa agitação cultural e a politização. Conheci o Francisco Ramalho Jr., que havia feito um filmezinho mudo, em super-8 e acabamos criando um grupo de cinema, o Grupo Kuatro, influenciado por nossos ícones, como o cineasta Andrej Wajda, que tinha uma produtora na Polônia, com o nome de KADR.

O Grupo Kuatro era muito ativo, fazíamos exibições com debates em toda a universidade, publicávamos uma revista [Cadernos da Poli] e ainda filmávamos, agora com uma câmera Paillard, de corda, 16 mm. Quando se deu o golpe de 1964, tudo acabou: dois filmes ficaram inacabados e tive de sair da escola no quinto ano de engenharia, fiquei escondido num pequeno apartamento de um amigo de infância. Aliás, com relação à formação, dei aula na ECA-USP como ‘público e notório saber’ em cinema. Mas só em 1999, defendi minha tese de doutorado, o “Povo Fala”, pela instituição.

Vida estudantil

Logo nos primeiros anos de Poli me entrosei com o pessoal mais de esquerda. Gostava tanto do cinema quanto da política, cheguei a ser diretor da UEE [União Estadual dos Estudantes]. Quando houve o golpe, fiquei completamente perdido e não sabia para onde ir, nem o que fazer da vida. Acabei aceitando um convite do Rudá Andrade [filho de Pagú e de Oswald de Andrade], meu querido amigo, e fui trabalhar na Cinemateca Brasileira e ser programador da SAC [Sociedade Amigos da Cinemateca], um dos mais importantes cineclubes brasileiros da época, em 1965.

Desisti da faculdade e comecei a trabalhar minha carreira. Consegui, pelos meus conhecimentos na política estudantil, o patrocínio para meu primeiro filme, o Liberdade de Imprensa. O movimento universitário, todo em oposição à ditadura militar, planejava criar um jornal independente, o Amanhã, justamente quando os militares promulgaram a Lei de Imprensa, em 1967. Eu propus ao presidente do Grêmio da Faculdade de Filosofia na Maria Antônia, em São Paulo, fazer, além do jornal, um filme com o tema da liberdade de imprensa. Ele acertou isso no movimento e o grêmio financiou meu primeiro filme. Liberdade de Imprensa teve uma projeção no Rio e outra em São Paulo, mas acabou apreendido pelo exército em Ibiúna, em maio de 1968, no Congresso da UNE [União Nacional dos Estudantes], quando se preparava sua distribuição nacional.

Dentro da boca

Minha primeira incursão no cinema para mercado se deu na Boca do Lixo, com uma produtora criada por mim e Francisco Ramalho, João Silvério Trevisan e Sidney Paiva Lopes. Era a TECLA. Depois do golpe de 1964, nosso destino estava traçado: a profissionalização. Em 1968 produzimos o primeiro longa-metragem, Anuska, adaptação de conto do Inácio de Loyola, dirigido pelo Ramalho e produzido por mim. Minha relação com a chamada Boca foi um tanto complicada. Sob o ponto de vista da política cinematográfica eu defendia, mas não me sentia parte. Por isso tenho reservas com relação aos meus filmes que hoje são considerados da Boca: Gamal e Em Cada Coração um Punhal, ambos de 1969. Ganhei até o Prêmio Air France com o Gamal, mas foram frutos de um destempero pessoal, o desespero da era 1968, sob o peso da repressão, da morte de amigos, do AI-5 [Ato Institucional nº 5, que restringiu de vez as liberdades no país]. Esse desespero se agravou com a incapacidade da TECLA de continuar a produzir. Quanto às influências, acho que de tudo ficou um pouco para as novas gerações: do cinema novo, de minha geração, do cinema da Boca.

Memória e documento

Liberdade de Imprensa andou esquecido por razões óbvias: apreendido, ficou clandestino. Ainda bem que pessoas fundamentais da historiografia do cinema brasileiro o viram, caso de José Carlos Avellar e Jean-Claude Bernardet. E o filme passou a ser muito falado e valorizado como obra que apontava novos caminhos. Quarenta anos depois, em 2008, nas comemorações dos 40 anos da revolução jovem de 1968, o filme foi restaurado e exibido pelo Programa de Restauro Cinemateca Brasileira – Petrobras, com o lançamento do livro publicado pela Imprensa Oficial: O Cinema de Intervenção.

O Jean-Claude Bernardet escreveu muito sobre o filme e sobre meu projeto de documentário que ganhou esse nome: cinema de intervenção. Era padrão, na época, achar que o documentarista deveria filmar procurando não interferir na realidade. E eu achava o contrário, dizia que a presença do documentarista mudava a realidade e que, então, precisava aprender a usar isso em benefício do filme, da revelação de conflitos e visões contraditórias a respeito da realidade. Para mim, ver assim a realidade como algo intocável era puro fetiche. O filme foi pioneiro, pois esse tipo de abordagem só foi assumido publicamente depois dos filmes do Michael Moore, pelo menos trinta anos depois do Liberdade de Imprensa.
 
Mirar o futuro

Guardo distanciamento com relação ao passado, aos filmes já feitos. Acho que eles já não são problemas meus, e sim da sociedade, dos cinéfilos, das instituições públicas, dos historiadores, pesquisadores. Por isso de vez em quando procuro na internet o que estão falando desses filmes. E sempre me surpreendo, como recentemente, encontrando teses universitárias, doutoramento etc., tanto sobre mim quanto sobre meus filmes e minhas propostas no cinema documentário. E também sobre o significado político de minha trajetória. Penso em meus novos projetos. O passado não me basta, apenas me torna real. Preciso de novos projetos e escolho trabalhar pelo futuro... Quero morrer filmando.

Nesse momento trabalho em dois projetos. Um longa-metragem de ficção, adaptação do romance Vila dos Confins [José Olympio, 2003], do Mário Palmério. O outro projeto é documental: uma série intitulada Na Sombra da História, cuja ideia é a história brasileira contada por pessoas comuns, populares, num processo em que eles ora falam espontaneamente, ora leem textos e comentam. Já fiz o primeiro capítulo, que vai até a “intentona comunista”, em 1935. Daí se seguirão outros quatro capítulos de 1935 até nossos dias.