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Gênio angustiado

Ao contrário do que se pode dizer de outros grandes nomes da história da literatura e da poesia, Charles Baudelaire não sofreu indeléveis golpes do destino. Apesar de perder o pai, o músico amador Joseph-François Baudelaire, ainda aos seis anos, sua família era abastada e condições mais do que suficientes para uma vida confortável nunca lhe faltaram. Até, claro, o momento em que o poeta se viu na miséria após torrar cada tostão de sua herança com seus hábitos pouco ortodoxos – que incluíam a constante companhia de prostitutas e o vício do ópio.

O poeta, crítico de artes, ensaísta e tradutor vivia intensamente. Mau negócio para ele, que morreu aos 46 anos, em 1867. Mas, para constatar mais uma vez a ironia da vida, quem ganhou foi a posteridade, já que o caminho do excesso se mostrou o cenário perfeito para Baudelaire produzir um retrato nu e cru de sua época por meio de uma obra unânime entre críticos e especialistas do mundo todo. “O grande objetivo dele era realmente fazer uma obra que marcasse”, analisa o professor de literatura do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Paixão. “E é muito difícil você conseguir isso e ao mesmo tempo ser um burguesinho, um bom filho, um bom pai, um bom funcionário público. Para certas personalidades isso é incompatível.”

Natureza rebelde

Nascido em Paris, em 1821, Baudelaire mostrou bem cedo sua personalidade controvertida ao ser expulso do Colégio Louis-
-Le-Grand por se recusar a mostrar um bilhete que lhe havia sido passado por um colega de classe. Em 1841, na tentativa de afastar o rapaz, com então 20 anos, da vida desregrada que já se delineava, o padrasto, Jacques Aupick, manda-o em uma viagem à Índia. No entanto, mais uma vez o futuro poeta não aceita o que lhe tentam incutir. Numa parada a meio caminho, o rapaz desembarca e retorna a Paris. Ao atingir a maioridade, em posse legal da herança do pai, vê-se com visto permanente para o ópio, o álcool e as desinibidas damas do meretrício – “a grande amante dele era uma prostituta”, informa o professor do IEB.

Em 1844, a mãe acusa-o de pródigo na justiça, e sua fortuna passa a ser controlada por um notário, o que não o impede de dilapidar todo o dinheiro. “A inquietação intelectual dele fazia com que não aceitasse determinados padrões sociais, ele não se ajustava”, analisa Paixão. Um ano depois, é publicada sua primeira obra, Le Salon de 1845. A partir daí, a história da poesia e da literatura mundial ganharia mais um nome essencial. “A inquietação social de Baudelaire – porque ele era um desajustado, provavelmente muito angustiado – também fazia com que ele fosse muito mais radical na sua estética literária”, diz o especialista.

O poeta das flores do mal

A despeito da biografia atribulada, Baudelaire mostrou o que Paixão define como “uma rotina e disciplina literária muito grande”. Caso contrário, segundo afirma, o poeta não teria construído a obra que o imortalizou. “Uma produção extensa se somarmos tudo [poesias, críticas, ensaios]”, informa o especialista. “E afinal de contas ele não viveu tanto.”

Segundo aponta o estudioso, no que diz respeito à poesia, Baudelaire seguiu tanto a vertente simbolista – de caráter mais subjetivo – quanto a modernista, quando exercia o verso livre e a poesia em prosa. “Ele é considerado um poeta que inaugura
uma lírica com uma experimentação formal”, explica Paixão. “E nesse aspecto ele é moderno.” Como exemplo, é possível citar o livro Pequenos Poemas em Prosa, publicado postumamente, em 1869.

Por outro lado, é forte também a aspiração simbolista em Baudelaire. “É o que dá gravidade e alta fecundidade à sua poesia”, afirma o professor. “Um simbolismo muito particular. O eixo dessa faceta em Baudelaire está no soneto Correspondências [presente em As Flores do Mal, de 1857 – veja excerto do poema nesta matéria], no qual ele captura a interrelação do homem e a natureza; enfim, é uma concepção, digamos, holística da natureza, e que dá matriz ao seu simbolismo.” Para Paixão, essa dualidade é um dos aspectos “ricos e curiosos” do poeta. “Ele sustenta uma poética ao mesmo tempo moderna, afinada com o seu tempo, mas com a aspiração de uma dimensão maior – que é o que cabe, afinal de contas, na grande poesia.”

Como uma suma desse trabalho, aparece o célebre As Flores do Mal, que, embora tenha causado grande polêmica quando foi lançado – ou talvez por isso –, acabou se tornando a grande referência que a maioria tem de Baudelaire. O que não é pouco, segundo Fernando Paixão. “O livro acabou ficando efetivamente como marco”, comenta. “Seu grande brilho é a variedade formal que ele apresenta. É o primeiro livro moderno também por essa característica de apontar para uma dialética de formas e de temas.”

Segundo o estudioso, foi mesmo a obra de uma vida. “Ou pelo menos uma boa parcela de uma vida”, ressalva. “Baudelaire tinha a visão de que a poesia tem um papel crítico na sociedade, então ele quis fazer isso da maneira mais plena.”

O crítico

No entanto, a poesia não era o único interesse de Baudelaire. O poeta, dramaturgo e crítico literário norte-americano T. S. Eliot (1888-1965) chegou a escrever sobre a árdua tarefa de falar de Baudelaire e sua obra – de “distinguir o homem da sua influência”, como definiu –, justamente pela amplitude de uma produção que contemplou também a crítica de artes plásticas, os ensaios e as traduções. A citação de Eliot aparece no livro Aclimatando Baudelaire (Annablume, 1996), de Gloria Carneiro do Amaral – professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e estudiosa de literatura brasileira e francesa. Ela própria reforça no livro as múltiplas contribuições do autor de As Flores do Mal. “A obra de Baudelaire exerce um compreensível efeito magnético. Além do crítico americano, outros nomes ilustres da poesia e da literatura (...) não conseguem passar-lhe ao largo e nem deixar de registrar o seu Baudelaire”, escreve.

Entre os ilustres citados pela professora, encontram-se os também franceses Victor Hugo (1802-1885), Théophile Gautier, (1811-1872), Marcel Proust (1871-1922), Paul Valéry (1871-1945) e Jean-Paul Sartre (1905-1980). Segundo a autora, as artes plásticas e a música foram alvos do interesse de Baudelaire muito mais do que podem imaginar os que o conhecem apenas por sua poesia. “Talvez Baudelaire tenha escrito mais linhas sobre pintura do que sobre literatura”, revela. Sobre música, a autora cita o texto Richard Wagner e Tannhäuser à Paris, sobre a ópera Tannhäuser und der Sängerkrieg aus Wartburg (Tannhäuser e o torneio de trovadores de Wartburg, em tradução literal do alemão), composta em 1845 por Wagner (1813-1883). “(...) o compositor agradeceu comovido por ter despertado tais impressões num espírito superior como o de Baudelaire”, registra Gloria.

Filiação

Além de grandes nomes da pintura, como Eugène Delacroix (1798-1863), cuja obra foi alvo das críticas de Baudelaire, e da música, como o já citado Wagner, outros escritores e poetas – contemporâneos ou antecessores – mereceram a atenção do poeta, ou até foram creditados como fontes de inspiração. Um dos mais citados é o norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), cujas obras foram objeto de ensaios produzidos por Baudelaire, além de também terem sido traduzidas por ele. “O próprio Baudelaire deixou inúmeras pistas que comprovam essa filiação”, informa Fernando Paixão.

Em comum na obra de ambos é possível citar “uma matriz misteriosa e soturna”, conforme explica o especialista, apontando, no entanto, que é mais curioso ainda analisar a forma diferente como cada um lançava mão desse elemento. “Enquanto o soturno em Baudelaire é muito mais concreto, muito mais da vida cotidiana mesmo, das sensações frente às percepções que ele tinha, em Poe ele é construído, tem uma categoria muito imagética.”

O professor aponta ainda a filiação ao poeta francês Aloysius Bertrand (1807-1841). “No caso do Poema em Prosa, Baudelaire credita a seu antecessor Bertrand e seu Gaspard de la Nuit a real criação desse gênero que foi o poema em prosa”, relata Paixão. Além de Bertrand, o especialista chama a atenção para a relação com Théophile Gautier – “a quem ele dedica parte de sua obra” – e com o inglês Thomas De Quincey, autor de Confissões de um Comedor de Ópio. “Tanto é que ele próprio veio a escrever toda uma série de artigos e textos sobre o ópio.”

Literatura na tela

SescTV exibe encontro de tradutor de Baudelaire com o público do projeto Tertúlias

Realizado em 2009, no Sesc Pompeia e Pinheiros, o projeto Tertúlias, dividido em duas séries, Autores e Tradutores, abordou, por meio de encontros com convidados, o universo da criação literária e também da tradução para a língua portuguesa de grandes nomes da literatura mundial, como, entre outros, Virginia Woolf, traduzida por Leonardo Fróes; Franz Kafka, por Modesto Carone; e Fiodor Dostoiévski, por Paulo Bezerra.

As palestras eram transmitidas ao vivo pelo SescTV e, no dia 14 de janeiro, o canal reprisou o encontro com Ivan Junqueira, tradutor de As Flores do Mal, de Charles Baudelaire. Na ocasião, Junqueira abordou não somente a contribuição literária do poeta, tradutor e ensaísta francês, mas também os aspectos comportamentais e psicológicos que ajudaram a construir a personalidade controvertida do autor. “Se tivesse nascido em fins do século 19, Baudelaire teria sido um dos mais paradigmáticos pacientes de Freud”, disse, referindo-se a Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise. “Atestam-no as cartas endereçadas à mãe, a quem Baudelaire permanecerá para sempre ligado e nos braços de quem haverá de expirar.”

Já sobre o processo de tradução da obra do francês, Junqueira contou aos presentes que certas frases se tornam um desafio por simplesmente não encontrarem seus equivalentes em outro idioma, o que faz do trabalho do tradutor também uma empreitada criativa. Junqueira confessou que traduzir As Flores do Mal foi um trabalho de cinco anos que quase o levou à loucura.

POEMAS

Correspondências

A natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.
(...)

A Uma Passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
(...)
Dom Juan dos Infernos

Quando dom Juan desceu ao subterrâneo rio
E logo que a Caronte o óbolo pagou,
Como Antístenes, um mendigo de olhar frio
Com braço vingativo os remos agarrou.

Os seios flácidos e as vestes entreabertas,
Mulheres se torciam sob um céu nevoento,
E, qual rebanho vil de vítimas ofertas,
Atrás dele rosnava em atroz lamento.
(...)

O Vampiro

Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,

De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
– Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,

Como ao baralho o jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
– Maldita sejas tu, maldita!
(...)

Excerto de poemas: As Flores do Mal (Tradução Ivan Junqueira, Editora Nova Fronteira, 1988)