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Os Conspiradores

por Inácio Araújo

Havia um homem a quem acusavam de delator. Havia, também, a urgente necessidade que um delator existisse para unir o grupo. Como desse homem cada gesto parecia suspeito, todos o mantinham a distância para que não obtivesse qualquer informação capaz de comprometer o grupo ou beneficiar as autoridades.

Quem duvidasse de sua condição de delator de alguém que, tendo sido isolado pelos demais, não dispõe de nenhuma informação relevante a fornecer, logo se tornava objeto de troça e descrédito, pois era justamente o zelo que o tornava desinformado e, portanto, inútil aos objetivos dos inimigos – mas nem por isso ele deixava de ser um delator.

O homem era alto, corpulento e triste. Movia o corpo com esforço, como se aquelas acusações lhe pesassem fisicamente. Nunca ninguém soube dizer se a tristeza provinha do estigma que lhe atormentava ou se fora sempre assim. Tinha, naturalmente, poucos amigos, e nem sabe até que ponto seria o caso de chamá-los amigos. Eram apenas pessoas que consideravam a acusação inconvincente.

Constituíam uma minoria na comunidade e, como ignoravam os avisos insistentes dos demais, tornavam-se também objeto de desconfiança. Não que os considerassem também delatores, antes julgavam-nos pessoas meio exóticas, irresponsáveis (que melhor seria manter longe dos segredos que o grupo partilhava), mas inofensivos, pois sem ligações com as autoridades, ao contrário do delator.

Os demais, quando era necessário dirigir-lhe a palavra, falavam por códigos incompreensíveis a quem não fizesse parte do círculo de exilados. Verdade seja dita, os relatos que levaram à execração do homem eram bastante imprecisos. Alguém dizia tê-lo visto entrar na embaixada. Mas entrar na embaixada não era em si um ato capaz de levar à execração. Só que ele havia entrado de maneira furtiva, diziam.

Uma análise mais racional não veria nada de conclusivo nesse tipo de intriga, aliás não veria nada mais que uma intriga, porém o uso da razão parecia estar fora de questão nesse caso. Todos sabiam que qualquer pessoa era obrigada a passar de tempos em tempos na embaixada para assinar uns tantos papéis. Como, no entanto, o homem era o homem, a afirmação feita em tom de mistério sugeria conexões tenebrosas e ganhava o benefício de uma dúvida que logo se transformava em certeza e, a seguir, em estigma.

O homem vivia modestamente, mas esse argumento estava longe de inocentá-lo, até porque essa modéstia podia ser entendida como uma maneira de se mostrar mais convincente aos olhos dos demais, pois um homem rico instalado ali seria, necessariamente, alguém custeado pelas autoridades.

Uma narrativa que durante algum tempo gozou de grande prestígio difundia que ele, tendo tido a irmã selvagemente torturada, se apresentara às autoridades, a quem prometera fornecer informações sobre os movimentos rebeldes em troca de sua libertação. A irmã, tendo sido libertada, por coincidência ou não, ficara sabendo do arranjo vergonhoso; por causa disso retirou-se para uma cidade onde ninguém pudesse conhecê-la e nunca mais teve contato com o irmão, nem com os antigos companheiros.

Essa teoria foi gradualmente substituída por outra mais rocambolesca, segundo a qual as autoridades, sabendo de atividades subversivas desenvolvidas pelo homem, ameaçaram deportá-lo, pois era nascido no estrangeiro, e a toda sua família, o que causaria grande desgosto e talvez até a morte de sua mãe. É evidente que essa última versão estava em choque com a anterior (a da irmã torturada), mas como as duas não vigoraram ao mesmo tempo ninguém se preocupou com a coerência dos fatos.

Todas as narrativas eram, no mais, substituídas de tempos em tempos por outras que ora falavam de um potente radiotransmissor, ora de um também potente radiorreceptor (uma versão corrigia a outra, naturalmente), fatos que alguém jurava ter presenciado, ainda que de maneira muito rápida e a distância, ou que alguém – uma faxineira, por exemplo – relatara a alguém, que ouviu a informação de alguém.

Em tempos normais essas coisas não teriam importância. Talvez o homem apenas passasse despercebido, talvez se tornasse amigo de outras pessoas. Mas o país estava na iminência de uma guerra civil e todos, de todos os lados, de todas as crenças, deviam estar preparados para o que poderia vir.

Daí o zelo com que se cuidava das informações, da existência de agentes infiltrados, da necessidade de evitar que inconfidências colocassem a perder planos que, na verdade, nem sequer existiam na realidade, pois os que existiam eram destinados a confundir os inimigos e os possíveis agentes, levando-os a fornecer informações falsas às autoridades.

Muitos acreditavam mesmo que, graças a esse artifício, todo o esquema de espionagem das autoridades havia se tornado inútil. Havia quem considerasse, ainda, que a tristeza do delator decorria desse engenhoso estratagema que pusera a perder toda sua atividade e reduzira a nada seus esforços.

Como contrapartida, é fato que os rebeldes passaram aos poucos a representar com tal desenvoltura o papel de aliados das autoridades, que após algum tempo essas passaram a tê-los na conta de amigos sinceros. Eles dissimularam tanto, adquiriram tal familiaridade com o disfarce, que já não necessitavam de nenhum esforço ou mesmo de ensaio para representar esses personagens que com o tempo haviam se tornado para os rebeldes uma segunda pele.

Ofendiam-se quando alguém se manifestava contrário à política das autoridades e corriam à embaixada para delatar o manifestante, caso julgassem suas palavras demasiado ofensivas. No princípio, chamavam esses extremados de agentes provocadores e não se preocupavam em delatá-los, na suposição de que as vítimas eram, de todo modo, funcionários das autoridades.

Quando, no entanto, um desses rebeldes cruzava com o homem, continuava a não lhe dirigir a palavra, pois tinha como certo que suas ações eram de natureza muito diversa, para não dizer oposta. Ele era um delator profissional, digno de anátema, enquanto os rebeldes só faziam o que faziam devido ao objetivo maior de desmoralizar o sistema de informação montado pelas autoridades e com isso antecipar a sublevação prevista.

O estratagema parece ter dado resultado, pois o homem começou a desaparecer por essa época. Seu corpo, seus pecados, seu pesado casaco eram vistos cada vez mais raramente, como se já não tivesse utilidade para ninguém, até sumir de todo. O mais estranho é que, desde então, todos passaram a sentir sua ausência, como se a presença do delator fosse absolutamente necessária para manter o grupo e seus propósitos. Sem ele por perto, começaram as dissensões, os desentendimentos e rancores a predominar.

O pensamento de todos parecia disperso, cindido e sem finalidade. Isso chegou a um ponto que os próprios líderes começaram a difundir diversas fábulas, com o objetivo de pelo menos trazer o homem de novo às conversas. Alguns diziam que havia voltado ao país de sua mãe. Outros que fora encontrado agonizante, após uma briga num bar que terminara com garrafas sendo quebradas na cabeça dos contendores.

Alguns, por fim, sustentavam que o homem tornara-se escritor e publicara agora um livro que tinha como personagem principal um vampiro enormemente solitário, obrigado a matar outros solitários, a fim de se alimentar. O livro fora escrito sob pseudônimo, sendo, portanto, impossível comprovar a veracidade da informação.

Nada disso, porém, alterou o estado de ânimo das pessoas, que, sem a presença do informante para lhes indicar o rumo, estavam cada vez mais propensas a um acordo com as autoridades. Como estas, no entanto, compraram uma certa quantidade de livros para distribuição nas escolas, as pessoas da comunidade aceitaram finalmente a ideia de que havia sido mesmo escrito pelo infame.

Como, também, já havia se passado algum tempo e ninguém mais lembrava exatamente contra o que se rebelavam, decidiram revoltar-se, então, contra o caráter traiçoeiro do delator. Alegremente, puseram-se outra vez a conspirar.


Inácio Araújo é crítico de cinema da Folha de S. Paulo, ?autor de Cinema, O Mundo em Movimento (Scipione, 1995) e Casa de Meninas (Imesp, 2004).