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A Experiência do Espaço

O exercício cenográfico permite a reorganização do espaço cênico e sobrepõe sentidos ao próprio teatro. Dialoga com o vazio, recria linguagens e é responsável, em parte, pela acolhida do público ao tornar o espetáculo mais receptivo aos estímulos visuais e sonoros que a ação dos personagens imprime ao texto dramático.

Dentro dessa perspectiva, J. C. Serroni e André Cortez, dois dos principais profissionais da área, refletem, em artigos inéditos, sobre o papel da cenografia nas montagens contemporâneas.


Reflexões sobre a atual cenografia
por J. C. Serroni

“Vivemos num mundo em que a velocidade acelera vertiginosamente os nossos dias e onde as fronteiras que definem lugares e ideias entre pessoas se tornam cada vez mais indefinidas. Os múltiplos e acelerados cruzamentos de gente e informação à escala global estão transformando as identidades culturais. De que forma a cenografia como arte de inventar espaços para a representação da vida reflete as perspectivas dessa nova realidade? De que forma a cenografia se afirma sem perder a sua essência? Quais são os novos limites para a criação cenográfica?”

A citação acima é o tema de discussão do colóquio sobre cenografia SCENA 2011 – Cenografia no mundo sem fronteiras, que aconteceu durante a primeira quinzena de maio na cidade de Lisboa, onde cenógrafos de renome internacional, como Yannis Kokkos, Richard Hudson, Sinesterra, Pâmela Howard e José Castanheira, interagiram também, via internet, com outra dezena de cenógrafos do mundo todo, entre os quais me incluo, discutindo os rumos da cenografia e do espaço teatral de hoje.

Aproveitando essa reflexão, trago para o artigo que agora redijo alguns pontos importantes para a cenografia que já começamos a discutir. Um primeiro aspecto é tentarmos entender qual o significado da cenografia hoje. Poderíamos nos contentar em nossos dias com a ideia de que cenografia é apenas a grafia da cena?

Ou seria a cenografia definida como no dicionário Aurélio – que se contenta em concluir que cenografia é a arte e técnica de projetar e dirigir a execução de cenários para espetáculos teatrais? Seria cenografia hoje apenas um desenho da cena? Ou estaria ela voltada para o teatro ou seria ainda responsável só por uma execução técnica? Posso afirmar com muita certeza que não.

A cenografia evoluiu muito de algumas décadas para cá. Saiu de seu mundo mais restrito do teatro, da dança e da ópera para um universo de possibilidades muito mais abrangentes. Saiu de dentro da “caixa cênica” do palco italiano para fora. Buscou novas alternativas, novos espaços, apropriou-se de outros cenários e hoje caminha para possíveis e novas formas relacionadas com a computação.

A globalização, a rapidez com que tudo acontece, possibilita uma aproximação mais rápida da cenografia com as linguagens diversas buscadas por todo o universo teatral. As novas tecnologias, já absorvidas pela iluminação há algumas décadas, chega hoje à cenografia e uma nova mecânica teatral vem se instalando e transformando os rumos de nossas espacialidades cenográficas.

Claro, devemos estar alertas para que a engenharia da computação não nos engula. Não transformem o teatro numa coisa apenas racional, matemática, em que os botões nivelam a tudo e a todos. O teatro deve preservar sempre a sua humanidade. Deve, imagino, preservar também o seu lado artesanal, resgatar sempre aquela tecnologia palpável, mágica, trabalhada por Leonardo da Vinci, por exemplo, ou absorvida da engenharia náutica e do circo.

Precisamos, sim, nós todos, cenógrafos de hoje, estarmos atentos a tudo isso: às tecnologias, aos novos espaços, aos novos anseios de grupos e diretores, à computação, aos novos materiais, mas sempre mantendo a criatividade, a invenção e o humano naquilo que criamos em nossos espaços teatrais.

Vivemos a grande incógnita: o que é o teatro hoje e o que é o espaço que o acolhe? Já foram muitos os simpósios, seminários e fóruns de discussão que se aventuraram a essa reflexão, tentando entender o espaço ideal para o teatro no início desse terceiro milênio. O teatro começa a se fundir com outras linguagens. Novas mídias são inseridas, as artes plásticas se aproximam de forma determinante à cena teatral, as performances e as instalações de arte se fundem ao teatro.

É necessário um novo olhar, um novo local que abrigue essas manifestações. O teatro volta com força à rua, dessa vez não a usando como fundo, mas, sim, se apropriando dela e dando-lhe um sentido fortemente dramático.

Pensamos nós, arquitetos de teatro e cenógrafos: ainda faz sentido a caixa cênica? Precisamos dos grandes teatros? A grande cenografia é necessária? A cenografia está buscando novos rumos e, me parece, deixando a construção de lado e priorizando o conceitual. Dentro de alguns anos não se fará mais nada sem computação gráfica. E de que forma os cenógrafos e os arquitetos teatrais enfrentarão isso? A iluminação teatral já passou por essa transição nos últimos 20 anos e hoje é predominantemente digital em qualquer design de luz.

Tenho realizado minhas cenografias, atualmente, baseado em dois fatores: a incorporação do design gráfico e o uso de projeções. O desenho do painel, na maioria das vezes de fundo e que às vezes entra e sai da cena, tem agora o recurso de ser trabalhado e elaborado no computador, o que dá maior possibilidade de experimentos antes da sua impressão. Pinta-se, cola-se, mede-se, ilumina-se tudo com muita rapidez, e o resultado é sempre uma imagem mais elaborada.

A cenografia atual vive um momento muito vigoroso. Teremos em junho próximo a Quadrienal de Cenografia de Praga, onde poderemos conferir tudo o que se está fazendo pelo mundo, com o Brasil novamente presente. Tudo isso nos dá, com certeza, e com alento, ânimo para continuar lutando pelo engrandecimento da cenografia brasileira.

“[A cenografia] Saiu de dentro da ‘caixa cênica’ do palco italiano para fora. Buscou novas alternativas, novos espaços, se apropriou de outros cenários e hoje caminha para possíveis e novas formas relacionadas com a computação”

J. C. Serroni é cenógrafo e figurinista há mais de 20 anos. Formou-se em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Recebeu diversos prêmios pelo conjunto de seu trabalho, a exemplo do Molière, APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) e Association of Hispanic Critics of New York

 


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Coexistência das formas
por André Cortez


Se não estivesse sentado diante do computador, já teria uma pilha de papéis ao meu lado. No dia a dia, uso papel para rabiscar croquis, e também faço algumas pilhas. Só que não jogo fora por um bom tempo, para que eu possa rever, repensar e decidir outra vez.

Todos amassados, com várias formas de escrever, caminhos diferentes para descrever uma ideia ou mais. Às vezes desisto e deixo de lado, mas posso abrir novamente, recuperar, copiar e colar dos próprios rabiscos. Assim, o convite para escrever sobre o trabalho que exerço diariamente foi muito tentador e me levou a apontar as diferenças entre os atos de escrever e desenhar.

Entendo que para um cenógrafo – e talvez para outros que lidam com a “linguagem plástica” – adotar um editor de textos eletrônico e exercitar a linguagem da escrita (literária) é como esquentar outras regiões cerebrais. É excitar e exercitar aquelas regiões que diversos cientistas já mapearam e denominaram como específicas para o exercício abstrato da escrita.

Por analogia, arrisco dizer que o trabalho do cenógrafo está em estabelecer pontes entre essas regiões. Podemos entender que um texto teatral nasce numa dessas regiões e a cenografia busca promover sua interação com outras. Assim, os cenógrafos pretendem operar a integração entre as formas literárias e as formas plásticas.

Continuando com a analogia da ponte, penso que a cenografia precisa estabelecer uma ligação com outras áreas do conhecimento, como a arquitetura, as artes visuais (pintura, escultura, desenho), o desenho de produtos, a moda, a engenharia, entre outros. Enfim, é uma área de atuação um tanto quanto difusa, necessariamente multidisciplinar.

A arquitetura, que é a graduação mais comum entre os cenógrafos, traz em si essa multidisciplinaridade, principalmente como um modo de pensar que cria condições para abranger essas várias linguagens. Quando a equipe criadora dos espetáculos ou exposições se junta, essa abrangência de conhecimentos aumenta e se aprofunda. Conhecimentos dos atores, iluminadores e sonoplastas, preparadores físicos, vocais... Tudo isso regido pelo diretor, que às vezes se desdobra em alguma dessas outras funções.

Diante de tantas áreas interagindo, a forma mais profícua de confecção do espetáculo é quando todos esses criadores (criativos, ativos e operantes) se sentem bem em criar de forma coletiva, num grande somatório de forças. Fica clara aqui a importância de uma boa relação do cenógrafo com o diretor.

Trata-se de uma parceria. Creio até num encontro de gerações, mas geração no sentido que Zuenir Ventura descreve no seu livro 1968 – O Ano que não Terminou (Planeta do Brasil, 2008), uma geração de afinidades e não de idades. Todos esses conhecimentos ficam então voltados para o assunto maior com que devemos lidar: o humanismo – palavra agora pouco entendida ou praticada e em constante redefinição.

Dentro desse tema amplo, formado por várias correntes filosóficas, pode-se perceber que tentamos nos apoiar em diversas abordagens, mesmo sem saber quais as que mais se aproximam da “verdade” ou estão corretas. Entendendo que não nos cabe esse julgamento de valor, mas que buscamos ampliar nossa visão com referências que consideramos mais excitantes e/ou mais inspiradoras.

Pensando na produção contemporânea do teatro, tendo a enxergar uma não separação entre as artes. Dentro desse exercício multidisciplinar, dessa visão, digamos radial, vejo que contemporâneo é estar no meio desse fluxo incessante de informação, formação, formatação e, claro, de criação, de formação de valores, atos e pensamentos. Confuso? Pois então é essa confluência, essa confusão de tudo, que está no nosso dia a dia. Um maneirismo, talvez, diriam alguns teóricos.

Dentro desses excessos e acessos é que nós tentamos nos comunicar. Podemos ser direcionados a contrastar, a ficar completamente limpos e lisos, a sermos silenciosos e corrermos o risco de causar sono nas pessoas, ou de gritar bastante, mais alto que o meio, correndo o risco de carnavalizar fora do sambódromo (digo isso porque lá dentro é a coisa mais correta a fazer).

Talvez não pareça ter nada a ver com cenografia, mas tem na medida em que no teatro (no mundo do palco) a cenografia também tem que se equilibrar com todos os outros componentes do espetáculo, também correndo os mesmos riscos.

Hoje, frente ao desenvolvimento frenético da tecnologia, parece existir a sensação de um descompasso entre a produção desta e sua absorção estética. É sabido que a história da arte é intrinsecamente ligada ao desenvolvimento da tecnologia, de variadas formas: inversas, diretas ou transversas.

Imagine a evolução da gravação por atrito de pedras, a descoberta das tintas, da perspectiva até os atuais e preciosos pixels. Tudo isso gera em cada momento um coletivo de desejos (Junguianos mesmo!), um tipo de acesso às nuvens de ideias que podem indicar um caminho a seguir.

Então, para saciarmos nossa vontade de estar no presente, de afirmar que somos homens “de hoje”, ansiamos pelo que parece ser novo, revigorante e partimos para absorção de novas formas, novos conceitos, novas cores, que invariavelmente a tecnologia, a ciência podem e pretendem nos fornecer.

Com nossas mentes urbanas agitadas, precisamos de muito mais efeitos, mais gritos, para termos nossa atenção tomada. Precisamos aumentar o volume, acender mais luzes, e aumentar a quantidade e a intensidade de cores.

No recente show/tour da Banda U2, exibiu-se o grau máximo da interpelação música, espetáculo, arquitetura, técnica e tecnologia. Uma megaestrutura metálica transformada por painéis de vídeo em um enorme espelho mágico do público, e também uma megalente mágica.

Portanto, um lugar/nave/objeto onde o público via e se via, e também via a banda a muitos a muitos metros de distância. A arquitetura da democratização do espaço, da máxima ampliação, da “presentificação” – como quando se dá a confecção de um clip ao vivo, com imagens do público justapostas com as imagens da banda – além de muitas outras sensações trazidas pela luz.

Às vezes, podíamos crer que estávamos diante de uma catedral. A liturgia estava ali sendo cantada, como um soul. Mas que também atende a nossa urgência de contato e de consumo. Por outra via, podemos negar tudo isso. Partirmos para um aprofundamento dos nossos questionamentos, tentando sair um pouco desse plano da diversão e irmos para a imersão do silêncio. É quase uma abordagem terapêutica, mas a arte cênica e a visual têm essa capacidade também. Lugares mais vazios, mais “ventilados” e com menos informações nos levam a essa reflexão.

David Lynch, nos últimos anos, tem defendido essa causa. Ele defende veementemente a necessidade da meditação para a criação. Veja seu livro Em Águas Profundas (Gryphus, 2008). Mas, quando experimentamos o vazio, as pessoas podem não aguentar. O vazio pode ser também outro espelho de reflexão de traços íntimos que podem ser insuportáveis. Mas uma coisa é mais clara e vale a lembrança, não existe espetáculo sem cenografia. O palco vazio, quando bem preenchido, talvez seja o mais sutil dos cenários. Como o silêncio pode ser a sonoplastia ideal para determinados espetáculos.

Quero dizer que palavras e ações também geram mil espaços dentro do único espaço teatral. Tudo dependerá da potência desse evento. De outro modo, não existe homem sem lugar. Enfim, diante disso, o grande barato é tentar saber o que se quer e buscar o equilíbrio através da construção do diálogo dos artistas envolvidos e do embate de suas criações para a obra total. Assim, talvez aconteça a tão desejada UNIDADE! 

Esse termo existe para designar quando uma obra traz aquela sensação de completude. Quando nada parece fazer falta ou mesmo precisa ser cortado. Quando não se percebe esse conjunto de mãos realizadoras, que mesmo podendo ter muitos traços fortes, eles se juntam em UM traço maior. De outro modo, é quando não se sabe quem promoveu o seu prazer estético ou a sua descoberta do motivo de estar ali. Isso parece pequeno, mas é o maior sucesso que um trabalho pode alcançar. A sensação de coexistência com a obra ocorre quando existe a junção do TEMPO e ESPAÇO. Todos unidos num determinado tempo e em um ou vários espaços. Convencionados pela obra, mas apreendidos por TODOS.

“... palavras e ações também geram mil espaços dentro do único espaço teatral. Tudo dependerá da potência desse evento. De outro modo, não existe homem sem lugar”

André Cortez é cenógrafo desde 1998. Formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Vencedor do Prêmio Shell e APCA 2000 por melhor cenário em Pai e A Serpente (Shell 2005)