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Poesia da solidão
Qual a imagem de um poeta do final do século 19? Um ser transtornado, doente, assombrado por fantasmas – do passado e do futuro –, alienando-se do presente? Ou seria a figura de olhos vidrados, sempre apegada a uma rosa, despetalando-a num eterno “bem me quer, mal me quer”?
Para os que se interessam pela obra de Rainer Maria Rilke – nascido em Praga, em 1875, quando a Boêmia, atual República Tcheca, integrava o império austro-húngaro – talvez a primeira coisa que salta aos olhos é saber que a resposta a essas perguntas pouco importa. Em Rilke, o transtorno, os fantasmas, o amor, a morte, o medo e alienação não são características de quem escreve poemas, mas sim de qualquer um que se debruce sobre a vida.
“O que torna Rilke atual é o fato de ele lidar com questões humanas, na medida em que ele fala de temas universais, ainda que do ponto de vista dele, das referências que ele tem da sua própria cultura”, argumenta Fabiano Benigno, diretor do espetáculo Terra Provisória, montagem do grupo Cirandas, em cartaz no Sesc Consolação (veja boxe Mundo de passagem). “E ele tem uma sensibilidade muito forte quando fala dessas coisas.”
É essa capacidade de articular os mais elevados e complexos sentimentos que o leva a ser considerado, por estudiosos e tradutores de sua obra, um dos mais importantes poetas de língua alemã do século 20. “Junto com Stefan George [1868-1933] e Hofmannsthal [1874-1929], dois outros grandes poetas de língua alemã, Rilke compôs uma tríade que renovou com muita força a poesia da época”, analisa o professor Tercio Redondo, especialista em literatura alemã e tradutor de O Testamento (Globo, 2009), escrito entre os anos de 1920 e 1921.
“Sobretudo, a partir da linguagem, ele e George são poetas que pegam a língua alemã e fazem um trabalho, uma espécie quase de luta com a linguagem, no sentido de torná-la o mais concisa e o mais precisa possível.” De acordo com o especialista, esse trabalho de Rilke apresenta especial relevância por se tratar de uma época em que a língua na qual o poeta escreveu grande parte de sua obra carregava uma pesada herança de rebuscamento. “Era final do século 19, período do Segundo Império Alemão, Era Guilhermina, em que há uma linguagem engessada, envelhecida, e esses poetas vão tentar desbastar essa língua, liberá-la dessa pesada tradição”, declara.
Reinvenção
Para o poeta e professor de letras Guilherme Gontijo Flores, tradutor de As Janelas, Seguidas de Poemas em Prosa Franceses (Crisálida, 2009), juntamente com Bruno Silva D’Abruzzo, a contribuição de Rilke está também na ponte que ele criou entre o expressionismo alemão e uma poesia mais concreta. “Não no sentido do concretismo [movimento vanguardista surgido em 1950], mas no que diz respeito a descrever as coisas. É uma poesia das coisas”, afirma Gontijo.
“Ele tem uma fase com grandes paisagens subjetivas, mas depois seus versos vão caminhando para essa poesia mais concretizada do objeto.” Para o professor, esse movimento – “muito importante para a poesia alemã”, ressalta – é uma síntese entre o radicalismo subjetivo do expressionismo alemão e uma busca por trabalhar com a forma de olhar para os objetos da realidade.
“Afastando-se dos modelos que até então seguira, Rilke cria, com as suas dingegedichte (poesia-coisa), um novo modo de abordar objetos e seres”, complementa a professora Rita Rios Bonfim, autora de Poemas e Pedras, Poesia em Pedra. Uma Abordagem da Correspondência entre a Escultura e a Poesia com Base em Obras de Rodin e Rilke, da editora Edusp, cujo lançamento está programado para o próximo mês.
“Suas elegias e sonetos, porém, com todo o repertório de influências que haveriam de caracterizar seu desenvolvimento como autor (o expressionismo, o simbolismo, o neorromantismo, o modernismo clássico em si), é que revelam um apuradíssimo teor da linguagem poética.” Para a professora, rimas, imagens e modelos em Rilke são utilizados de maneira “elaborada e ao mesmo tempo natural”. “É como se ele tivesse reinventado a língua alemã”, explica. “Com a qual brinca e com a ajuda da qual inventa o seu universo paralelo.”
Rodin, Cézanne e Paris
Depois de viver uma infância solitária e cheia de conflitos emocionais, Rilke estudou nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Suas primeiras obras publicadas foram poemas de amor, intitulados Vida e Canções (1894). Em 1897, o poeta conheceu Lou Andreas-Salomé, a filha de um general russo, com quem viajou, dois anos mais tarde, pela Rússia.
No final de 1902, Rilke mudou-se para Paris, onde conheceu o escultor Auguste Rodin (1840-1917) e travou contato com as artes plásticas francesas. “Desde Praga, Rilke percebe que, se quisesse fazer poesia, teria de sair de lá”, informa Tercio Redondo. “Daí, ele vai para Viena, depois vai para a Alemanha, e nunca mais volta [à sua cidade natal], e se torna de fato um cidadão do mundo.” O especialista esclarece ainda que essa “experiência cosmopolita” marcará sua literatura, não somente sua poesia, mas também seu único romance, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (L&PM, 2009), escrito em 1910. “Já um romance de cidade grande, moderna, fruto da experiência dele em Paris.”
O convívio com Rodin está na base dessa influência exercida pela capital francesa em seus escritos. De uma amizade surgiu uma monografia, concluída parte em 1903 e parte em 1907. Também originou um emprego – o poeta torna-se secretário do escultor em 1905 –, e tudo isso resultou num marco na obra de Rilke. “Ele, assumidamente, deve muito à escultura de Rodin”, pondera Gontijo.
“Mas não somente a isso, como também à pintura francesa – como a de Paul Cézanne [1839-1906], que ele também conheceu.” Segundo o tradutor, a convivência nesse círculo é que vai, ao longo da carreira do poeta, voltando o foco de sua obra, de um lado mais subjetivo, para algo mais “imagético, mais ligado aos objetos”, característica própria da criação das artes plásticas.
Já para o professor Tercio Redondo, uma das grandes lições que Rilke tomou de Rodin foi a disciplina e a dedicação à arte. “O trabalho cotidiano continuado, a pesquisa, o estudo, o se debruçar sobre a obra”, diz. “Rodin era um homem que trabalhava muito. Então esse, digamos, aspecto artesanal da arte, de gastar muito tempo, de queimar os miolos, é um legado [de Rodin para Rilke], considerado pelos biógrafos de Rilke como um momento decisivo na formação dele, que era muito jovem ainda.”
De Rilke para Kappus
Para Gontijo, essa lição é repassada por Rilke ao jovem alemão Franz Xavier Kappus, nas cartas ao aspirante a poeta que também queria ser militar. A coletânea, organizada pelo próprio Kappus, data originalmente de 1953 e se tornou a obra mais conhecida de Rilke, Cartas a um Jovem Poeta (L&PM, 2006 e Globo, 2003). “Algo no livro pensa o ser poeta como uma coisa de vida, mas não descarta completamente essa questão de um artesanato da poesia”, afirma Gontijo.
“Ou seja, por mais que haja alguma coisa que a gente possa chamar de talento, alguém que ‘nasceu’ poeta, a pessoa tem também que se fazer poeta, ela precisa se construir como tal, e não apenas confiar nesse talento.” Ainda na visão do especialista, era assim que o próprio Rilke lidava com sua condição de artista. “Ele não estava disposto a simplesmente escrever poesia confiando nesse instinto”, avalia. “Rilke praticou muito a arte da poética, escrevendo muito, e foi desenvolvendo uma técnica ao longo dos anos.”
Para Rita Rios, as cartas também desfazem uma imagem, segundo ela, equivocada de Rilke: a de uma pessoa aproveitadora e fútil. “O livro mostra que nada disso é verdade”, defende a estudiosa.“Ele dava conselhos e sentia-se responsável pelas pessoas com que tinha contato ou estava ligado por uma amizade mais longa. Ele era um bom amigo.” E pelo visto afeito a deixar seus pupilos decidirem sozinhos, sem querer influenciá-los, já que, na última carta, descobre-se que Kappus optou por abandonar a pena e seguir para as trincheiras.
Poeta só
Rilke teve seu trabalho reconhecido em vida. “Principalmente pelos grandes nomes da época, como Marina Zwetajewa”, informa Rita Rios. “Ele era muito requisitado. Numa das suas viagens, chegou a falar diante de 500 pessoas sobre a monografia Auguste Rodin.”
Cultivou amizades, como com os franceses Rodin, Cézanne e ainda o filósofo e poeta Paul Valéry (1871-1945). Casou-se – com a escultora Clara Rilke, com quem teve uma filha. E conquistou “um séquito de mulheres apaixonadas diretamente ou platonicamente por ele”, informa Tercio Redondo. Algumas muito ricas, nobres até, que lhe emprestavam castelos nos quais passava longos períodos para escrever – além dos mecenas que possibilitaram que ele vivesse de sua arte.
Porém, até sua morte em dezembro de 1926, não se pode dizer que isso tenha feito de Rainer Maria Rilke um homem afeito aos freges da vida social. A solidão sempre esteve à espreita. Fosse por uma necessidade pessoal, por demanda de sua própria arte, ou por incapacidade de lidar com o novo século que chegava – e suas novidades, descobertas, velocidade, loucura e guerras –, uma das principais características da biografia e da obra do poeta é o isolamento.
“Ele dizia claramente que sentia necessidade de se isolar”, explica o professor. “O que para ele também era algo da ordem da contradição, porque ele se afastava de uma mulher com quem estava se relacionando para escrever justamente sobre o amor, por exemplo.” Para Rita Rios, tratava-se da necessidade de um grande poeta. “Ele tinha de se isolar para poder criar”, diz. “Todos os seus poemas foram escritos sem rascunho. Era como se fossem ditados.” O ator Ivo Müller, dramaturgo e protagonista do monólogo Cartas a um Jovem Poeta – apresentada no Sesc em 2010 (veja boxe Mundo de passagem) –, define bem esse estado de espírito como uma busca por uma transcendência metafísica. “Acho que é o que fica quando falamos dessa solidão.”
Mundo de passagem
Sesc Consolação apresenta espetáculo baseado na obra de Rainer Maria Rilke
A vida e a poesia de Rainer Maria Rilke foram o ponto de partida para o Grupo Cirandas conceber o espetáculo Terra Provisória (foto), em cartaz desde o dia 16 de maio, no Espaço Beta do Sesc Consolação, dentro do projeto Primeiro Sinal. A peça, que deve ficar na unidade até 7 de junho, fala da existência num mundo de passagem e descobertas, e aborda a solidão do homem e suas reflexões sobre a vida – dois dos aspectos mais marcantes da obra do poeta nascido em Praga, em 1875.
“Na verdade, a gente ainda tem muitas perguntas sobre alguns questionamentos do Rilke”, diz Fabiano Benigno, diretor do espetáculo. “E uma dessas perguntas tem a ver com a solidão – que solidão é essa da qual fala esse autor, o que ele quer dizer quando fala que primeiro a gente precisa sentir-se só, saber-se só, para depois estar em contato com o outro?”
Nessa “terra provisória” concebida pelo grupo, dois seres se encontram para estabelecer uma relação entre suas solidões e para compartilhá-las – entre si e com o público. A viagem começa no desabrochar da infância e segue até o dia da morte. No caminho, pensamentos sobre a condição humana e a de artista. “Temas como a solidão, o amor, a vida e a morte não estão separados em Rilke”, declara Benigno. “A gente até os dividiu num primeiro momento para poder ‘organizá-los’.”
Na preparação para o espetáculo, os atores passaram por um treinamento corporal em que as palavras do poeta também eram “postas em prática junto com o corpo”, afirma o diretor. “Junto com o estudo das obras dele e das investigações de cena, uma das coisas fortes nos ensaios foi o trabalho de preparação corporal”, diz Benigno.
“A tentativa era chegar a uma potencialidade da palavra com o gesto, já que a gente estava tratando de poemas, não de um texto escrito para teatro, portanto, a gente ia ter que fazer essa transposição.” Antes da estreia no Sesc Consolação, o espetáculo participou da Mostra Experimentos do Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp), nos dias 22, 23 e 24 de abril. ::