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Ulpiano Bezerra

Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses conhece com intimidade o tema museologia. Ele já esteve à frente do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP) entre 1989 e 1994, como também organizou entre 1963 e 1968 o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da universidade e o dirigiu também de 1968 a 1978.

“Prefiro considerar que o museu, em vez de espaço de produção, preservação e reforço de uma memória, transforme-se num espaço de confronto, visão crítica e entendimento das memórias”, comenta Ulpiano, em entrevista à Revista E. Professor emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e docente do programa de Pós-Graduação em História Social, ambos da USP, Bezerra discorre sobre a função social e econômica dos museus ante a indústria cultural contemporânea.

“Como o museu é inventado, sempre acreditei que sua primeira obrigação educacional seria dar a conhecer o que é um museu e como funciona”, diz o especialista, doutor em Arqueologia Clássica pela Sorbonne, na França, e ex-membro do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) – vinculado à Secretaria da Cultura de São Paulo – nos períodos de 1971 a 1987, 1996 a 2004, e 2006 a 2007.


Qual seria a função de um museu nos tempos de hoje?

O mais importante que posso dizer é que não convém reduzir as funções do museu a um modelo único. É uma tendência forte entre nós e convém combatê-la. Os museus, ontem como hoje, têm potencial de exercer várias funções: fruição estética, conhecimento crítico, informação, educação, desenvolvimento de vínculos de subjetividade, sonho, devaneio etc. No meu entendimento, o grande privilégio do museu é poder articular – de preferência solidariamente – essa multiplicidade de funções, científico-documentais, culturais e educacionais. Tal privilégio continua em nossos dias.

No entanto, acrescentaria algo mais marcado pelos tempos em que vivemos e que tem na desmaterialização da sociedade um explosivo fator de controle social, desmaterialização a que o museu pode resistir. De fato, até que o projeto pós-humano se realize, a condição humana se define ainda como corporal. É o nosso modo de ser no mundo: como dizem os especialistas nos estudos da cultura material, não apenas temos um corpo, mas somos um corpo. As mediações materiais, portanto, são condição de vida biológica, psíquica e social.

Assim, ainda se justifica haver em nossa sociedade uma plataforma especificamente dedicada a suscitar ou aprofundar a consciência do universo material em que estamos mergulhados e de que fazemos parte, mas que, por sua indispensável onipresença, passa em branco quase sempre. Ora, creio que uma das principais funções do museu é desnaturalizar essa dimensão material do mundo, isto é, mostrá-lo como produto da ação humana, dos interesses humanos, dos conflitos, valores e aspirações humanas – aí se incluindo a natureza culturalizada.

A desmaterialização, porém, convém à nova ordem sócioeconômicocultural do capitalismo avançado e vem provocando transformações radicais, quer na cidade como espaço desterritorializado, quer no diagnóstico médico que desconhece o doente, quer na terceirização dos nossos cinco sentidos, eliminando-os da experiência social, quer, enfim, culminando no sistema financeiro, que inventou a propriedade privada mais radical e sublimadamente incorpórea. É preciso se convencer de que a desmaterialização é uma porta que se abre à dominação.

Os museus se modificaram bastante nos últimos anos. E se tornaram grandes vedetes de público nas metrópoles. Mudaram os museus ou o público se tornou mais próximo aos temas trazidos nas mostras? 

Não é possível dar uma única resposta a tal questão. Limito-me, assim, a mencionar a função de alavanca que se tem atribuído principalmente à arquitetura e recursos de alta tecnologia dos denominados new museums, na revitalização de áreas urbanas, dentro da tendência de exploração do capital cultural nos processos de venda da imagem de cidades, as selling cities.

Em outras palavras: é plenamente aceitável fazer de museus cunhas para recuperação de áreas problemáticas e inserção da cidade em circuitos de renda internacional. Os casos mais exemplares, porém, mostram que o maior beneficiário tem sido sempre o mercado. Estudos acadêmicos recentes, por exemplo, demonstraram que a cidade de Bilbao efetivamente ganhou com a instalação do Museu Guggenheim.

Contudo, o grande beneficiário foi a holding Guggenheim, e o papel cultural junto à população local tem sido mínimo em relação às vagas internacionais de turismo; além disso, o benefício para a arte basca ou espanhola ainda não se tornou presente. Quanto à circulação das grandes mostras, por certo isso nos abriu horizontes, mas nem sempre foram evitados os riscos de sua instrumentação pelo mercado cultural.


Em sua opinião, qual a importância do curador de exposições? Muitos professores utilizam a curadoria como extensão de suas aulas.

O conceito de curadoria, que implica o cuidado – cura em latim – com a formação, manutenção, estudo e uso de coleções, foi fundamental desde o século 19 para profissionalizar o trabalho em museus. Hoje, fala-se em curadoria para caracterizar a organização de uma exposição como trabalho autoral, o que em si é legítimo.

Naturalmente, fica relativizado o papel das intenções do produtor e mesmo dos receptores daquilo que se expõe. Já em situações concretas, podem surgir vários aspectos negativos, como a rigidez do partido escolhido pelo curador ou a mediocridade ou insuficiência de suas posições. Há uma ambiguidade dessa autoridade concedida ao curador, em face das múltiplas concepções contemporâneas do que seja autoria.

Penso, porém, que o risco mais perverso seja a terceirização da curadoria como padrão, pois desmobiliza os próprios museus, que acabam se reduzindo a meros espaços de exposições prêt-à-porter. Nada contra a circulação de grandes exposições, repito, mas, quando as curadorias externas substituem ou reduzem drasticamente as responsabilidades das curadorias internas e permanentes, cria-se uma vala comum nos museus, que assim se dispensam de organizar suas próprias exposições.

E perdem condições de desenvolver solidariamente suas diversificadas funções. Ao mesmo tempo, reforça-se a mercantilização do campo museal, como vem acontecendo com a voga das exposições “arrasa-quarteirão”, os blockbuster exhibits, que precisam do retorno de investimentos consideráveis.
 
O fato de surgirem museus em torno de temas relacionados à memória da guerra é importante como instrumento de cidadania, assim como o Museu do Holocausto em Berlim e o Museu da Tortura na Itália?

As modalidades, práticas e funções da memória são históricas, transformam-se ao longo do tempo. No Ocidente, sobretudo no pós-guerra de 1939-1945, há uma nítida inflexão da memória, que assume um caráter marcadamente ético e político, tendendo à subjetivação e à privatização, desvinculando-se de interesses do estado, fragmentando-se conforme as divisões da sociedade.

Mais que nos museus, esse fenômeno se observa nos monumentos e nos chamados antimonumentos, em que o monumento que se realiza na sua própria anulação, os quais colocam o problema da impossibilidade de representar grandes traumas como o holocausto e outros genocídios, guerras étnicas, terrorismo, tortura – inclusive a de estado – e até mesmo grandes acidentes naturais. Nos museus esse problema da figurabilidade foi de certa forma domesticado, em busca de uma adesão afetiva.

Os próprios memoriais de guerra, patrocinados pelo poder público, tornaram-se menos oficiais e laudatórios e mais críticos. Por fim, é preciso lembrar o surgimento, nessas últimas décadas, do chamado dark tourism, aquele turismo que se volta para a visita a lugares marcados por catástrofes, tragédias, crimes célebres, sofrimento, como campos de concentração, prisões, territórios de batalhas etc. Trata-se de responder a necessidades de purgação e catarse, ou, ainda, no limite, a comportamentos psiquicamente problemáticos.

Qual seria o papel do museu contemporâneo na preservação da memória?

Numa sociedade em que a memória social se compõe não apenas de memórias diversificadas, mas conflitantes, atribuir ao museu o papel de preservação da memória é levá-lo a uma escolha entre muitas e legitimar uma função ideológica. Prefiro considerar que o museu – principalmente histórico, em vez de espaço de produção, preservação e reforço de uma memória – transforme-se num espaço de confronto, visão crítica e entendimento das memórias. Naturalmente, não estou ignorando aqui as práticas sociais relativas à memória que segmentos da sociedade fazem do museu nem seu direito a construir suas próprias memórias.

Estou apenas privilegiando a necessidade inelutável de espaços de contraponto, para que a sociedade não seja apenas um punhado de identidades blindadas e autocentradas, apenas justapostas.  O museu desfruta de condições excepcionais para funcionar como uma ‘esfera pública’ – no sentido formulado por filósofos políticos, como Habermas [filósofo e sociólogo alemão, nascido em 1929], como espaços do agir comunicativo.

Como você vê a criação de museus virtuais? É possível substituir a informação física apenas pela virtual no caso dos museus?

Sou totalmente a favor do uso da informática nos museus. Sou da mesma maneira totalmente contra a redução do museu a um único modelo ideal, como camisa de força, o museu virtual. Quando se fala de museu virtual, a referência é, sobretudo, à exposição no espaço físico: a organização interna, assim como a circulação na web são questões de outra natureza. A referência é também à desmaterialização da percepção.

Depois, os modelos virtuais – inclusive os de maior sucesso de público – funcionam muito aquém do extraordinário potencial que a informática poderia trazer para o tal museu tradicional. Poderia até afirmar que sou contra o museu virtual porque o que há nele de virtual é muito pobre, ainda. O que tenho visto é um uso padrão, bem comportado, limitado, apesar do encantamento que pode produzir.

Isso revela que o museu é que está servindo à tecnologia – numa de suas vertentes mais tradicionais, a dos jogos interativos e dos recursos de imersão – e não se servindo da tecnologia para atender ao enorme leque de funções cognitivo-documentais, culturais e educacionais que ele pode desenvolver. Mas, há outros fatores de risco no museu virtual – não forçosamente na exposição virtual.

Quais seriam esses fatores de risco?

A primeira e essencial questão trazida por esse modelo é a da desnecessidade onerosa do museu com acervo: a informação, não as coisas, é que caracterizaria os novos compromissos. De minha parte, continuo acreditando que o compromisso legitimador do museu é com a inteligibilidade do mundo e, como dizia a antropóloga inglesa Mary Douglas, procurar sentido no mundo envolve interpretá-lo como sensível.

Uma segunda questão refere-se ao desinteresse por objetivos cognitivos nas exposições – se é que se continua a admitir que o museu tem responsabilidades com o conhecimento e a formação crítica. Não se trata de uma tendência ou limitação natural da tecnologia digital, pelo contrário! Mas da reprodução ‘acrítica’ e descontextualizada dessa ?tecnologia, além de mais centrada na informação que no conhecimento.

Como fica patente na internet, por exemplo, privilegia-se a simultaneidade, o sincrônico, o que impede ou dificulta compreender as implicações da duração ou da sequência. A reflexão não se dá bem com o instantâneo. Como na estética do videoclipe, valoriza-se exclusivamente a imersão.

E a imersão redutora, sem posterior emersão, pode conduzir ao afogamento. No campo do conhecimento e da formação crítica, que exigem distância e tempo, é o que tem acontecido. A percepção se dilui na sensação, o que é sem dúvida ?prazeroso e positivo, mas compromete a consciência da mediação sensorial da vida – raiz de inteligibilidade.

Além do mais, quando a bateria de sensações é excludente de alternativas, até a interatividade pode ser enganosa e corre o risco de mascarar passividade intelectual sob a aparência de hiperatividade gestual. Mais uma vez, parece-me que os desajustes não são da tecnologia, mas de quem os opera.

Haveria ainda outro fator que interfira no papel do museu?

Sim, uma última questão. Cada vez mais, encontro fundamentos para acreditar que o museu deveria ser o lugar das perguntas, muito mais que das respostas. Sua principal função educacional seria ensinar a fazer perguntas. O mundo virtual está plenamente capacitado para essa função – e como! Entretanto, não é o que vem acontecendo, na prática. Também no museu virtual o paradigma do conhecimento observacional tem dominado, em detrimento do discursivo. E as experiências que ele propõe são predominantemente instrumentais.

Dessa forma, o museu exerce um papel homologatório, abastecido na maior parte de respostas prontas. De novo, sob a aparência da interatividade, continua-se a propor enganosamente que ver é o melhor caminho do conhecer – o multissensorialismo ainda é hierarquizado pela visão. O grande pensador da tecnologia, Gilbert Simondon [filósofo francês, 1924-1989], há tempos formulava a esperança de que a máquina pudesse ser dotada de certa margem de indeterminação, tornando-se sensível a uma informação externa. Por que não incorporar tal perspectiva desde já?
   
Pode-se afirmar que existe uma crise da memória por conta das novas tecnologias?

Não, absolutamente. Seria fetichizar a tecnologia, isto é, transferir para a tecnologia, que é mediação, aquilo que se deve creditar aos homens e seus interesses. O problema é que, aos interesses dominantes, compensa sempre responsabilizar a tecnologia. Já Platão, na Grécia do século 5 a.C., afirmava que, com a escrita, a memória se desalojaria da mente dos homens e os tornaria mais pobres e dependentes.

O historiador francês Pierre Nora, ecoando Platão, diz que a memória, hoje, deixou de ser experiência vivida e se concentra, secamente, em lugares de memória, entre os quais os museus. Acredito, como já disse, que as práticas, funções e suportes da memória se transformam historicamente. E, como dizia Steve Woolgar [sociólogo britânico], ao falar da “terceira regra da virtualidade”: as novas tecnologias virtuais tendem a complementar – em vez de substituir – as tecnologias existentes.

Para me ater à questão da tecnologia e da memória, acredito que há na internet um enorme potencial de memória coletiva vivenciada, ainda em gestação – e concomitantemente com potentes mecanismos de amnésia social. Por outro lado, vejo nas grandes celebrações de massa – esportivas, musicais, políticas de toda ordem – lugares de memória que novos padrões de sociabilidade estão fazendo surgir.

Com os grandes shoppings, por conta do trânsito ruim e mesmo da violência da metrópole, o paulistano se afasta cada vez mais das ruas. Esse tipo de comportamento leva o cidadão a se desligar emocionalmente de sua cidade, de seus referenciais, como uma praça ou um parque?

Esses aspectos contam, mas o problema está mais embaixo. Sabemos que o primeiro eixo que a razão técnica impôs à cidade industrial foi a circulação, de mercadorias, pessoas e informação. Hoje, a cidade, não só a rede viária, mas a cidade toda, está a serviço da circulação. Daí a multiplicação de elevados e vias expressas, túneis, pontes e viadutos, bolsões de estacionamento e garagens subterrâneas, ruas alargadas e assim por diante.

Com o domínio do automóvel, mais se reforçou a naturalidade dessas premissas. Surgem, então, dois paradoxos. O primeiro é a perda de sentido e densidade do habitante da cidade: de cidadão transforma-se em passante, transeunte – trans-eo, no latim, se reporta àquele que apenas atravessa, mas não ‘pratica’ o espaço; finalmente, degrada-se em passageiro, aquele que passa. De outra parte, se o progresso foi concebido como a supressão do espaço pela redução do tempo, instaura-se um desequilíbrio radical: a rede pública se esmerou em assegurar a circulação de bens e, sobretudo, de informações, não de corpos. Estes ficam a cargo de cada indivíduo, com as discriminações aí implicadas.

O resultado disso tudo é aquilo que o historiador francês Bernard Lepetit definiu com admirável precisão como o risco da ‘redução semântica’ da cidade, diante da ameaça de o novo sistema urbano restringir a possibilidade de significar. Muito teríamos a ganhar se recolocássemos nesses termos a questão do patrimônio ambiental urbano, inclusive para mais bem conceituar o que seja um de seus propósitos correntes, a qualidade de vida, em vez da imagem.

Como você vê o marketing cultural em torno dos museus e de suas exposições?

Não vejo oposição entre valor cultural e valor econômico. Vejo, porém, conflito insanável entre lógica cultural e lógica de mercado. Nessa linha, o marketing cultural devia pautar-se pela lógica cultural servindo-se de instrumentos do mercado. Infelizmente, não é o que ocorre, como norma, pois os museus sucumbem à ilusão de serem produtivos e servem ao mercado, em lugar de dele se servirem.

O Museu de História Natural de Nova York possui um programa em que as crianças passam uma noite em suas dependências. Tal tipo de vivência e interatividade é o caminho para o museu do futuro?

Como o museu não é algo natural, mas inventado, eu sempre acreditei que sua primeira obrigação educacional seria dar a conhecer o que é um museu e como funciona. Se o programa for nessa linha, parece-me ótimo.

“Os museus, ontem como hoje, têm potencial de exercer várias funções: fruição estética, conhecimento crítico, informação, educação, desenvolvimento de vínculos de subjetividade, sonho, devaneio etc.”

“Cada vez mais, encontro fundamentos para acreditar que o museu deveria ser o lugar das perguntas, muito mais que das respostas”

“Sob a aparência da interatividade, continua-se a propor enganosamente que ver é o melhor caminho do conhecer”

“Há na internet um enorme potencial de memória coletiva vivenciada, ainda em gestação – e concomitantemente com potentes mecanismos de amnésia social”