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Relações intergeracionais

Ilustrações: Marcos Garuti
Ilustrações: Marcos Garuti

Jovens e idosos. Eles estão em pontas diferentes do fio condutor que descreve a trajetória da vida. Portanto, olhar como essas gerações se relacionam é fundamental para entender questões humanas e familiares tão transformadas pelos processos contemporâneos do mundo. Sabe-se, por exemplo, que as pessoas vivem muito mais atualmente. Mas como tratar as gerações mais antigas a fim de eliminar preconceitos?

E como preparar os mais novos, que também vão entrar um dia nessa fase da vida? Para analisar o tema, escrevem a pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Vera Lúcia Valsecchi de Almeida, e a especialista na área de Educação e Desenvolvimento Humano, Celina Bragança.


Como se relacionam as gerações na sociedade contemporânea?
por Vera Lúcia Valsecchi de Almeida

Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que você recorda.
Rachel de Queiroz

É apenas no contexto das sociedades contemporâneas que a questão das relações intergeracionais transformou-se em objeto de investigação e em tema de encontros científicos; ao mesmo tempo, vem conquistando, como questão, um lugar cada vez mais privilegiado – melhor seria afirmar “inquietante” – no âmbito das relações de amizade e familiares.

As raízes do atual modelo de sociedade não são recentes; remontam ao século 20 e às transformações relacionadas a dois importantes processos: industrialização e urbanização. Caminhando de “mãos dadas”, esses processos responderam por alterações significativas nos modos de produção, nas relações de trabalho, nas moradias e nas relações familiares, entre outras. Enfim, mudanças que alteraram profundamente os modos de ser, pensar e interagir.

Paulatinamente, o modelo de família extensa – baseado na convivência de várias gerações – cedeu lugar à família nuclear, constituída por pais e filhos. Nesse último modelo de família, espera-se que os filhos, quando jovens adultos, passem a morar em outro lugar. Certamente, o dito popular “quem casa quer casa” só ganhou sentido com a nuclearização da família; nuclearização responsável pela diminuição, cada vez maior, do número de membros do núcleo familiar – segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as taxas de fecundidade (número de filhos tidos por mulher em idade reprodutiva) vêm declinando, no Brasil, ano a ano. Já em 2008, essa taxa apontava na direção da reposição da população total.

Sob tais condições, as trocas intergeracionais se esgarçam. O contato entre netos e avós restringe-se, cada vez mais, a encontros ocasionais (aniversários, férias, finais de semana etc.). Apesar de muitos avós responderem, não poucas vezes, por atividades relacionadas ao dia a dia de netos (como levá-los à escola e buscá-los), o fato é que tais atividades não se transformam em relações de trocas ricas e prazerosas.

Uma das características centrais das relações intergeracionais é a “reciprocidade”; no entanto, o que se observa nas relações entre crianças, jovens, adultos e idosos é, frequentemente, a falta de reciprocidade. Reciprocidade significa diálogo, sinceridade e respeito ao outro, ao diferente (por raça, etnia, gênero, religião, geração etc.).

A distância que separa as gerações é cada vez maior; distância relacionada aos assuntos passíveis de conversa, à negação – pelos mais jovens – do passado, da experiência e da lembrança, ao descaso para com os “seus velhos”. Paralelamente, como bem escreveu Bobbio, no livro Tempo da Memória: De Senectude e outros escritos autobiográficos (Editora Campus, 1997):

[...] as transformações cada vez mais rápidas, quer dos costumes, quer das artes, viraram de cabeça para baixo o relacionamento entre quem sabe e quem não sabe. Cada vez mais, o velho passa a ser aquele que não sabe em relação aos jovens que sabem [...].  (1997; p. 20).

É na sociedade contemporânea que presenciamos expressivos e rápidos progressos nas mais diversas áreas; progressos que respondem, por exemplo, pela maior expectativa de vida e pelo aumento dos anos vividos na condição de “idoso” (fenômeno conhecido como “longevidade”).

No entanto, essa mesma sociedade que prolongou a vida não sabe o que fazer com os que chegam aos sessenta anos – idade que define, para os países em desenvolvimento, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a “entrada” na velhice – e com os que vivem a velhice muitos e muitos anos. 

Estranhas às sociedades tradicionais e às chamadas sociedades “primitivas”, as palavras citadas devem servir de alerta para tudo o que perdemos quando destinamos aos mais velhos lugares – existenciais e relacionais – tão pouco confortáveis.

O homem, por sua condição, é um ser relacional; tanto as identidades individuais como os lugares socioculturalmente ocupados definem-se na relação com os outros, ou seja, com todas as pessoas com as quais estabelecemos relações próximas e/ou distantes. Abdicar das trocas intergeracionais, negar o passado e permanecer no “aqui e agora” constituem atitudes que comprometem a própria condição humana.

Muito ganharíamos se atentássemos para as sociedades nas quais os mais velhos são um bem maior; sociedades em que as relações intergeracionais são pautadas pelos princípios maiores da reciprocidade e do respeito ao legado de que os mais velhos são os legítimos senhores. Enfim, sociedades que desconhecem ouvidos moucos às palavras dos mais velhos.

Apesar da oposição, filosoficamente tão explorada, entre “informação” e “experiência”, a “sociedade da informação” – outra designação para as sociedades contemporâneas – não pode prescindir da “experiência”. Isso porque enquanto a informação basta a si mesma, renovando-se constantemente, a experiência, alimentada que é pela vivência, entrelaça passado, presente e futuro. Passa de geração a geração através das trocas relacionais, não sucumbindo aos meios virtuais ou veículos de comunicação.

Para que a velhice seja vivida sob outras condições, na sociedade contemporânea, impõe-se não só a desconstrução do ideário que a cerca, como a valorização da vida em todas as suas etapas; valorização certamente pautada em relações de trocas sociais entre crianças, jovens, adultos e idosos.

Vó é palavra mágica,
Feita de favos de mel,
Por fadas do bem querer.
Ser avó é ter desejos de mudanças,
Aceitar pacificamente as mudanças dos desejos...
É quebra de paradigmas.
Conquista de novos olhares,
São diferentes visões de mundo,
Num mundo mais colorido,
Feito de pura emoção que segue a cada momento,
A cada dia a explodir de prazer o coração,
De excesso de emoção...
Maria José de Azevedo Araújo


Vera Lúcia Valsecchi de Almeida é docente e pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e líder do Grupo de Pesquisa Contemporaneidade e Velhice: espaço urbano, identidade e memória.

“Essa mesma sociedade que prolongou a vida não sabe o que fazer com os que chegam aos sessenta anos (...) e com os que vivem a velhice muitos e muitos anos”


 

Caminhos contemporâneos entre gerações

por Celina Bragança

Uma imagem clássica é a primeira que me vem à cabeça diante da questão... Um senhor calvo e sereno, que assume diante de seus alunos silenciados uma postura altiva e enfática de mestre. A plateia é jovem e pacata, desempenhando seu papel subserviente: nada lhes resta a não ser a possibilidade de serem aprendizes até que os anos os libertem.

Transitando pelo tempo, forma-se uma imagem paralela, agora acelerada e instável, em que o tom grisalho dos cabelos habita o lugar do aluno, em meio a um ambiente de aprendizagem com fortes traços de tecnologia, alguma tensão no ar pelo contato permanente com o novo, e a condução do grupo nas mãos de um rosto jovem, quase arrogante, fascinado pelo lugar que exerce ainda sem muitos anos de atuação na mochila. O que pensar diante dos cenários? Entre uma cena e outra, afinal, evoluímos ou não?

Avançamos na direção da ruptura com paradigmas geracionais que fundamentam a estranheza diante do novo? O que pensam, de fato, os atores ali registrados uns sobre os outros – e qual a efetiva disponibilidade para descobrirem-se, trocarem impressões sobre o mundo, transformarem-se? Em que estágio de maturidade humana estamos, afinal, quando colocamos frente a frente gerações, ocupando, consciente ou inconscientemente, espaços de poder e interação?

Mergulhemos por alguns instantes neste álbum de retratos do sistema educacional, reconhecendo que a ?escola é um recorte das práticas sociais, uma lente através da qual se pode intuir, analisar e refletir sobre as diferentes variáveis que modelam os comportamentos coletivos. Não é, portanto, um registro escolar, mas padrões de relações entre gerações o que observamos com estas imagens...

Se no primeiro quadro surge com força a associação entre geração, saber e respeitabilidade, tripé posto em xeque por boa parte daqueles que o vivenciaram na prática, o que dizer do segundo? Será diferente a arrogância juvenil da pouquíssima disponibilidade para a escuta, típica do modelo clássico? Serão diferentes o medo e o tremor dos alunos diante dos mecanismos de avaliação – rituais expressamente destinados a evidenciar diferenças entre os agentes envolvidos, muitas vezes com requintes competitivos?

Neste “contemporâneo” em que vivemos com a sensação de uma “fusão de tempos”, tais imagens coabitam os ambientes educativos, assim como é possível encontrá-?-las metamorfoseadas nas cenas urbanas cotidianas, nos shoppings, nas casas e condomínios, nos ambientes de trabalho e lazer. O simples fato de que as gerações espalham-se hoje pela sociedade já sem amarras tão claras quanto aos papéis sociais que devem, a priori, exerce, é acalentador na perspectiva de um meio social acolhedor e menos estereotipado, apto a permitir a participação de todos os seus indivíduos sem restrições oriundas de um ou outro elemento biográfico estático e preconcebido.

Não assegura, no entanto, que tenhamos de fato enfrentado aspectos centrais de nossa relação com o outro, o diferente, que é também um espelho constante (e, muitas vezes, ameaçador) de nós mesmos.

É preciso atenção, particularmente no que diz respeito à visão competitiva que impera nos múltiplos relacionamentos de nossa espécie, tratando o outro a partir de suas características estaticamente concebidas (caracterizando, por exemplo, um perfil geracional) e tomando-o como objeto “relativo” a si, a ser superado ou depreciado.

Temos fortes desafios nessas construções, e a Educação, seja aquela praticada entre os muros escolares, seja aquela que acontece de forma corriqueira no âmbito familiar ou de trabalho, ocupa um lugar central nesse percurso, pois é o campo em que se fertilizam os indivíduos como seres socialmente formados, em que se perpetuam e se transformam as práticas sociais. É preciso atuar (endogenamente, inclusive) para que superemos os estereótipos que apartam as gerações e impedem sua interação produtiva, momentos de coeducação, que diluem ou destensionam os conflitos para dar lugar ao encontro e ao encantamento mútuo da descoberta da diferença, não como objeto de tolerância, mas sim como valor humano.

É fato que não é simples superar visões formadas a partir de diversas variáveis (não apenas a alocação etária), e a partir das quais se estruturam relações de poder e subserviência, de identidade ou exclusão, cristalizando a percepção geracional. O que entra em cena é a percepção do outro, cujas feições estão carregadas de preconcepções determinadas histórica e culturalmente.

O ponto a destacar deste percurso é que estamos distantes de enfrentar de fato uma percepção do outro construída à luz de uma sociedade profundamente competitiva, em que a diferença é vista como ameaça antes de ser percebida como valor, como elemento de troca e crescimento mútuo. No mundo contemporâneo, a experiência com o outro, com o diverso, tem sido norteada não pela troca ou pelo encontro, mas sim pelas sombras da hierarquização e do exercício de poder, gerando assim uma indisponibilidade para o relacionamento (adensamento de vínculos) e uma enorme fragilidade nas relações.

Ainda que tenhamos dado passos significativos na direção de um novo padrão relacional, corremos o risco de viver sob a máscara da tolerância ou do (suposto e apenas superficialmente praticado) respeito à diferença e permanecer distanciando-nos da efetiva vivência do encontro, que nasce da disponibilidade para o outro e para o seu (preconcebido) valor.

Se, por um lado, tivemos avanços que não podemos negar, ampliando as interfaces de convívio, flexibilizando condutas e práticas sociais engessadas geracionalmente (até pouco tempo atrás seria raro, senão impossível, encontrar senhoras em academias, namorando ou planejando viajar o mundo, ou ainda jovens que pudessem encarar uma plateia que supera em muito sua idade para expor seu pensar sobre assuntos técnicos, de gestão ou mesmo no âmbito escolar), por outro estamos longe de lidar com naturalidade e leveza com tais situações, ou ainda entendê-las como oportunidades de crescimento e aprendizagem.
 
Celina Bragança, educadora há 26 anos, já encontrou diferentes gerações ao longo da vida, apreciando a diferença em seu percurso como mãe de quatro filhos. Aprendeu ao longo da vida por vários caminhos, formais como a graduação e a pós-graduação, assim como nas conversas ao pé do ouvido com seus vários alunos, amigos e companheiros de reflexão e vivências... É formada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal ?do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em História pela  Universidade de Campinas (Unicamp) e doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP).

“Temos fortes desafios, e a Educação, seja aquela praticada entre os muros escolares, seja aquela que acontece de forma corriqueira no âmbito familiar ou de trabalho, ocupa um lugar central nesse percurso”