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Boemia, belas canções e saudade

por Herbert Carvalho

A música popular brasileira comemora em 2011 o centenário de dois compositores que, apesar dessa coincidência, fizeram sucesso em diferentes metades do século passado. José de Assis Valente, protético baiano, despontou nos anos 1930 e deixou consagrados, pela voz e pela bossa de Carmen Miranda, sambas como Camisa Listrada e Uva de Caminhão, caindo depois no ostracismo que o levou ao suicídio, em 1958. Já o carioca Nelson Antônio da Silva, após existência anônima como operário e cavalariano da polícia, tornou-se conhecido nacionalmente como Nelson Cavaquinho na década de 1960, quando o reconhecimento público o alcançou antes de se chamar saudade, exatamente como reivindicava em uma de suas canções mais gravadas.

Apesar de cantar mal e não tocar nenhum instrumento, Assis Valente era dotado de uma musicalidade intuitiva. Batendo com os dedos na mesa, compunha sem grande riqueza melódica marchas e sambas mais parecidos a canto nordestino de feira, mas que ficavam retidos na memória em razão das letras críticas, irônicas e criativas. Das suas 154 composições gravadas – 25 das quais pela Pequena Notável –, as mais lembradas são verdadeiras crônicas sonoras da vida carioca de então ou rapsódias juninas, religiosas, de Natal e Carnaval. Os versos pungentes pedindo a Papai Noel a felicidade de presente fizeram de Boas Festas a principal canção natalina brasileira de todos os tempos. Embora não fosse o único sambista da época posteriormente apontado como homossexual, foi pioneiro em desafiar o ambiente machista repressor vigente ao abordar questões sob a ótica feminina, em Fez Bobagem e Recenseamento.

Na vertente oposta, Nelson Cavaquinho compunha choros aos 16 anos empunhando o instrumento que lhe valeu o apelido e mais tarde trocou pelo violão sem perder, entretanto, o hábito de beliscar as cordas com apenas dois dedos. Nascido em família de músicos, sua capacidade de criar melodias aos borbotões contrastava com a limitação temática: em mais de 600 composições, a maior parte nunca gravada, poucas letras fogem da melancolia e das angústias existenciais, sobretudo a obsessão em falar da morte, presente desde o título (Luto, Cheira a Vela, Eu e as Flores, Depois da Vida, Juízo Final e a já aludida obra-prima Quando Eu Me Chamar Saudade).

Até mesmo nas canções destinadas a louvar sua escola de samba do coração, Nelson Cavaquinho o faz a partir de uma perspectiva melancólica (Folhas Secas e Pranto de Poeta). Assis Valente, ao contrário, não frequentava morros (embora os incluísse em suas letras), mas exaltou de maneira ufanista uma única escola, a mesma de seu contemporâneo, em Mangueira, em cujos versos garante não haver outra igual: “O samba vem de lá, alegria também, morena faceira só Mangueira tem”. Apesar disso, a verde e rosa escolheu homenagear Nelson e não Assis neste ano, levando para a avenida o enredo “O Filho Fiel, sempre Mangueira”.

As diferenças entre ambos se acentuam na postura de cada um diante da vida: Assis usava todos os meios para permanecer em evidência, ao contrário de Nelson, boêmio radical que jamais fez algum esforço ou concessão para acumular fama ou riqueza. Em comum, porém, destacam-se a origem humilde, as discriminações sofridas e o desconhecimento, pelas novas gerações, das trajetórias e obras singulares desses dois expoentes do cancioneiro popular nacional.

Ser dividido

No dia 13 de maio de 1941, um mulato alto, de bigodinho, calça tropical azul e blusão bege entra num táxi no centro do então Distrito Federal e manda tocar para o Corcovado. Lá, mistura-se aos turistas que desfrutam o feriado comemorativo da libertação dos escravos. A sequência dos fatos ocupou as manchetes dos jornais da manhã seguinte e abriu um espaço no noticiário dedicado à guerra na Europa: o compositor Assis Valente tentou o suicídio, atirando-se do Cristo Redentor. Salvo com apenas duas costelas quebradas, foi resgatado da copa de uma árvore, frondosa o suficiente para amortecer a queda de 70 metros.

A leitura das reportagens sobre o primeiro homem a se atirar do pico do Corcovado e não morrer despertou a indagação: por que um artista plástico de talento, protético de renome e autor consagrado de músicas cantadas por todo o Brasil atentava contra a própria vida, num gesto que se repetiria mais vezes, até a dose mortal de formicida com guaraná, ingerida em 11 de março de 1958?

A resposta, possível apenas no terreno das hipóteses, requer uma visão panorâmica das quase cinco décadas de existência do baiano precursor de Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e muitos outros, que se distinguiram a partir da régua e do compasso fornecidos pela terra natal. Nela, mambembou ainda criança em circos pelo interior, a declamar poemas de Castro Alves e Guerra Junqueiro, até se fixar em Salvador, onde estudou desenho, escultura e prótese dentária, especialidade na qual se tornaria sinônimo de excelência. O desenhista também se destacou, ao ponto de receber, em 1922, um prêmio das mãos do governador da Bahia, J. J. Seabra.

No final da década de 1920, o filho da negra Maria Esteves Valente e do descendente de português José de Assis Valente – de quem herdou o nome na íntegra – aporta no Rio de Janeiro, estabelecendo-se como protético na Rua da Carioca. De dia, esculpia caninos e polia coroas, à noite rabiscava desenhos maliciosos que chegou a publicar nas revistas “Shimmy” e “Fon-Fon”. Ensaiando carreira nas artes plásticas, tornou-se amigo de Heitor dos Prazeres (1898-1966), igualmente talentoso como pintor e músico (apelidado pelo irreverente Stanislaw Ponte Preta de “Heitor dos Prazeres Duplos”), que lhe indicou o caminho da composição.

O primeiro samba, Tem Francesa no Morro (1932), saborosa mistura de um francês estropiado com o mais legítimo linguajar carioca, ironizava o macaquear de estrangeirismos tão ao gosto de nossas elites. Gravado por Aracy Cortes, a grande cantora do teatro de revista, o disco não teve sucesso, não por falta de qualidade da música, mas porque a verve de Assis Valente exigia uma intérprete diferenciada. Assim, com o mesmo tema, a marchinha Good Bye, Boy estourou em 1933 na voz de Maria do Carmo Miranda da Cunha, a portuguesa de nascimento que em breve se destacaria no mundo todo como a “embaixatriz” do samba brasileiro.

Para ter acesso a Carmen Miranda, Assis aproximou-se de seu conterrâneo Josué de Barros, o violonista baiano que a orientara no início da carreira alguns anos antes e lhe abrira as portas das gravadoras para que conquistasse, com a marcha Taí, de Joubert de Carvalho, o recorde brasileiro de venda de discos.

A química entre autor e cantora foi tão grande que até a partida dela para os Estados Unidos, no final da década, o primeiro comporia especialmente para a segunda uma fieira de obras-primas, como as já citadas Camisa Listrada – em que um bacharel tira seu anel de doutor e sai dizendo “mamãe eu quero mamar” – e Uva de Caminhão, samba-revista considerado por muitos como amostra de um tropicalismo avant la lettre: após mencionar uma “entrada no canivete” como metáfora para o até hoje interditado tema do aborto, a letra pop-dadaísta dava conta de que “caiu o pano da cuíca em boas condições/ apareceu Branca de Neve com os sete anões/ e na pensão de dona Estela foram farrear/ quebra-quebra gabiroba quero ver quebrar” . Outra joia do estilo criado para a intérprete única foi “E o Mundo Não Se Acabou”, jocosa sátira aos profetas catastróficos de todos os tempos.

Enciumado desde a entrada em cena de outro baiano – Dorival Caymmi –, cujas músicas comporiam, junto com os chapéus de frutas e os balangandãs, a identidade da futura atriz de Hollywood, Assis Valente vê sua carreira entrar em declínio quando a musa abandona o Brasil, levando ainda para os EUA o Bando da Lua, conjunto que gravara também sucessos seus, como Mangueira, É do Barulho e Maria Boa.

Entre 1940 e 1958 permanece dividido entre o laboratório de prótese e alguns sucessos esporádicos; entre a mulher e a filha, de um lado, e os “afilhados” que o rodeiam em busca do dinheiro generosamente distribuído, do outro; entre a condição de mulato discriminado a ponto de ser recusado como sócio do Clube Ginástico Português pela cor da pele e o eufemismo da “gente bronzeada” que adotou nas músicas e na vida, cortando o cabelo à escovinha para esconder o crespo natural; entre o profissional que ganha bem e o boêmio que gasta o que não tem, até a divisão final entre o corpo masculino e a sensibilidade feminina, que determina o desfecho.

Estado de poesia

Numa época em que os cantores eram a luz e os compositores não passavam de sombras, Assis Valente fugiu à regra atraindo para si os holofotes: distribuía fotos autografadas a quem encontrasse pela frente, além de procurar jornalistas pessoalmente para promover seus discos. Nelson Cavaquinho, ao contrário, jamais “caitituou”, como a gíria do meio designa o ato de pedir aos programadores de rádio que toquem suas músicas. O historiador e crítico musical José Ramos Tinhorão resume quanto ele era não apenas um autor, mas também um ser humano diferenciado, completamente avesso a qualquer expediente mercadológico:

“Tome um homem seu violão, cante pelas ruas como um antigo trovador da Idade Média a beleza das flores, a efemeridade da vida e a angústia metafísica da morte, e esse será o retrato de Nelson Cavaquinho. Com sua cabeleira branca, seu permanente ar de dignidade e sua voz enrouquecida por muitos anos de cerveja gelada, o que Nelson Cavaquinho canta (fazendo percutir, mais que dedilhando, as cordas do seu violão) é a saga de um homem que vive em estado de poesia. E cuja obra, por isso mesmo, não morrerá”.

Para explicar como alguns dos mais belos versos da música popular brasileira – incluindo o que pede “tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor” – possam ser da lavra de quem nunca leu um livro de poesia e sequer completou a escola primária, é preciso rememorar etapas da trajetória desse filho da lavadeira Maria Paula da Silva e do contramestre negro da polícia Brás Antônio da Silva, que tocava tuba.

Na infância viveu entre a malandragem da Lapa, o bairro boêmio do centro do Rio de Janeiro, e o Convento das Carmelitas em Santa Teresa, onde a mãe trabalhava e onde aprendeu o catecismo, tornando-se cristão fervoroso. Barão do Pandeiro, ritmista e cantor da noite que o acompanhou na década de 1970, relata essa estranha mescla de boemia e fé: “De repente, às seis horas da manhã, ele parava de cantar. Colocava o violão do lado e começava a rezar. Depois retomava o instrumento e seguia cantando e bebendo, com uma resistência absurda”.

Essa proverbial resistência do boêmio, que nunca durou muito em um emprego regular e passou mais tempo da vida em botecos barra-pesada do que em qualquer outro lugar, está por trás das histórias e lendas de Nelson: os violões quebrados pela inconformada primeira mulher – com quem teve quatro filhos e só se casou depois de arrastado pelo pai dela até a delegacia; a volta solitária ao quartel da montaria abandonada quando o sambista deixou a patrulha no morro da Mangueira para beber e cantar com Cartola, Carlos Cachaça e outros bambas da Estação Primeira; as sucessivas prisões por infrações disciplinares, quando aproveitava para compor, e o fato insólito de só ter sido achado para receber a comunicação da morte da mãe dias depois do enterro.

Obrigado a trabalhar numa fábrica de tecidos aos 15 anos para ajudar no sustento da família numerosa, frequentou rodas de choro, antes de se tornar sambista. Ao dar baixa da polícia em 1938, tenta viver de música, o que explica as parcerias vendidas e mesmo dadas para quitar contas da quitanda ou açougue. Dois fatos, separados entre si por cerca de 20 anos, serão os determinantes para que sua obra ganhe consistência e divulgação: o primeiro, nos anos 1940, é o encontro de um parceiro verdadeiro e dali por diante exclusivo, Guilherme de Brito (1922-2006), disciplinado funcionário da lendária Casa Edison (primeira gravadora de discos do país); o segundo foi a inclusão, em 1964, da canção Luz Negra, junto com duas outras, de Cartola e Zé Keti, no LP de estreia de Nara Leão, por meio do qual a musa da Bossa Nova apresentava os sambistas do morro às plateias intelectualizadas da classe média. Até então Nelson havia sido gravado apenas por Cyro Monteiro (1913-1973) em discos de 78 rotações, sem muito sucesso.

Ontem e hoje

Quando o nome de Assis Valente passou a fazer parte das reminiscências do início da carreira de Carmen Miranda, o compositor chegou a ouvir de outras cantoras a quem ofereceu músicas para gravar uma resposta agressiva, mas que sintetizava seu dilema: “Por que não dá para a Brazilian Bombshell?” Esta, por sua vez, recusou-se a gravar o principal samba-exaltação composto por Assis durante o Estado Novo – Brasil Pandeiro –, que celebrava não apenas o país, mas também aquela que nos tornara conhecidos nos EUA, ao mencionar que o Tio Sam “na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô e iaiá”. Gravado inicialmente pelo conjunto vocal Anjos do Inferno, o samba foi reciclado para públicos mais atuais com imenso sucesso pelos Novos Baianos, grupo que o incluiu no célebre LP Acabou Chorare, de 1972.

Na década de 1950 – quando o espaço da música brasileira nos meios de comunicação começa a se reduzir em razão da invasão dos ritmos estrangeiros –, Assis ainda emplaca seu último sucesso em vida, Boneca de Pano. Em 1969 a mesma Nara Leão regrava Fez Bobagem e em 1972, junto com Chico Buarque de Hollanda e Maria Bethânia, canta Minha Embaixada Chegou no filme Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues.

Esses poucos e esparsos registros, entretanto, não fazem justiça ao conjunto de uma obra que exibe relíquias pouco conhecidas como Cai, Cai, Balão, marcha gravada por Aurora Miranda (irmã de Carmen) e Francisco Alves, tão emblemática das festas de São João como a canjica e o quentão. Um único livro biográfico, A Jovialidade Trágica de José de Assis Valente (Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes, Funarte, 1988) foi duramente criticado por Caetano Veloso: “Assis Valente não merecia aquele casal de biógrafos espíritas que teimaram em tratar sua vida sexual no mesmo clima obscurantista de dissimulação e subterfúgios que era a regra no tempo em que ele viveu e que provavelmente contribuiu para levá-lo ao suicídio”. Assim, resta torcer para que neste ano de seu centenário surjam iniciativas para reabilitar esse compositor clássico injustamente esquecido.

Já a situação de Nelson Cavaquinho, descoberto durante a segunda grande fase da música popular brasileira, entre o início da Bossa Nova (1958) e o fim da era dos festivais (1972), passando pelo Tropicalismo, é bem diferente. Presença obrigatória no Zicartola – o famoso bar que o casal Cartola e dona Zica comandou na Rua da Carioca, de 1963 a 1965, como ponto de encontro entre sambistas do morro e intelectuais de esquerda –, recebe do cineasta Leon Hirszman o pedido para incluir Luz Negra na trilha sonora do filme A Falecida, com Fernanda Montenegro no papel principal. Ainda em 1965 o samba é cantado por Elizete Cardoso no LP Elizete Sobe o Morro.

A partir daí, sexagenário, tem suas músicas gravadas por Nora Ney, Nelson Gonçalves, Clara Nunes, Elis Regina e Paulinho da Viola. Em 1970 surge seu primeiro LP, Depoimento de Poeta. Em 1973 registra com Guilherme de Brito um depoimento musical para o programa “MPB Especial” da TV Cultura, reproduzido em livro e CD na coleção A Música Brasileira deste Século por Seus Autores e Intérpretes, editada pelo Sesc-SP. No auge da censura do regime militar, Chico Buarque, impedido de gravar suas próprias músicas, inclui no disco Sinal Fechado (1974) a canção Cuidado com a Outra, na qual o sarcasmo de Nelson adverte: “Vou abrir a porta pra você entrar, mas não demore, não, que a outra pode lhe encontrar”.

A morte por enfisema pulmonar, em 1986, aos 74 anos, só fez aumentar o culto à sua imagem, que adentra o século 21 com o disco-homenagem Nome Sagrado – Beth Carvalho Canta Nelson Cavaquinho.