Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Tudo se transforma

Reciclagem.jpg (28907 bytes)

A reciclagem de lixo no Brasil, em matéria publicada em janeiro/fevereiro de 1997

IMMACULADA LOPEZ

Terminado o almoço é hora de recolher a mesa. Os pratos vão para a pia, mas antes os restos de comida são jogados no lixo – já quase cheio com a lata vazia de ervilha, outra de cerveja, o vidro de azeitonas, os saquinhos do supermercado, a garrafa de refrigerante e os papéis rasgados de manhã. Já não cabe mais nada. O saco é fechado com um nó e colocado do lado de fora da porta. Situação resolvida… mas apenas por um momento, pois aí começa um dos grandes problemas dos centros urbanos: o acúmulo de lixo.

Os ambientalistas alertam que, para essa questão, uma única solução não basta. É urgente reduzir o volume de detritos, reutilizar o que for possível e reciclar tudo o que não estiver irremediavelmente perdido. Se nos dois primeiros pontos não se sabe ao certo a quantas anda o país, no terceiro, pelo menos, há avanços. De um lado, comunidades e prefeituras, tendo em vista a melhoria da qualidade de vida, lançam projetos de reciclagem. Do outro, a indústria reconhece cada vez mais o valor econômico dessa atividade. O uso de materiais reciclados vem aumentando ano após ano, apesar de estar longe dos níveis tecnicamente possíveis.

Cada setor (papel, vidro, plástico, aço, alumínio) tem seus argumentos e reivindicações, mas todos partem de um mesmo ponto: para a reciclagem crescer, a oferta de resíduos precisa aumentar. Quanto maior a oferta, maior será a demanda, garantem. Os resíduos gerados pela indústria e pelo comércio parecem já ter um escoamento organizado. Portanto, a "fonte" de resíduos mais promissora – hoje quase inexplorada – seria o lixo doméstico. Principalmente devido à vida curta das embalagens.

Um exemplo são as latinhas e os jornais. Sua coleta e venda já fazem parte da rotina de várias cidades. Geralmente, a atividade começa com os catadores de rua, passando para os depósitos (ou ferros-velhos), depois os sucateiros (ou aparistas), até chegar aos recicladores (que podem ser a própria indústria fabricante do material). Ou seja, há vários anos, a reciclagem vem desenvolvendo um mercado próprio. Ele está crescendo, apesar de ainda ser considerado desorganizado, concentrado e pouco profissionalizado. Por sua vez, o setor reclama da instabilidade dos preços e da falta de apoio do governo.

Por enquanto, as iniciativas públicas se limitam a algumas prefeituras. As indústrias cobram o estabelecimento de uma política mais ampla de reciclagem. O Cempre (Compromisso Empresarial para a Reciclagem) definiu várias propostas para curto e médio prazo. No final de 95, a entidade lançou uma Agenda para a Política Nacional, elaborada com representantes dos diferentes setores. "Desde então, ainda não recebemos nenhum sinal ou resposta do governo", informa Christopher Wells, diretor executivo do Cempre.

Bitributação

Para a Secretaria de Política Urbana, do Ministério de Planejamento e Orçamento, a reciclagem faz parte de uma questão maior, que diz respeito aos resíduos sólidos. Segundo Irene Altafin, do Departamento de Saneamento da secretaria, "neste momento, ainda estamos fazendo um diagnóstico da situação geral". Após a conclusão do trabalho, prevista para a metade do próximo ano, começarão a ser formuladas diretrizes nacionais para resíduos sólidos. Irene acredita que a discussão terá um impulso importante com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, prevista para o final de 96. "Esse fórum com a sociedade civil poderá sugerir normas, indicar problemas, propor incentivos fiscais…", explica ela.

Não faltam idéias para iniciativas de estímulo à atividade. Um primeiro ponto seria a eliminação do ICMS na produção do material reciclado e a redução do IPI nos investimentos. "Vencer a bitributação é um ponto de partida essencial", avalia Wells, referindo-se à taxação do produto feito com material reciclado – que, afinal, provém de produto já anteriormente taxado.

Outras reivindicações são linhas de crédito à pequena e média empresa, para incentivar a desconcentração do mercado, e facilidades de financiamento para aquisição e locação de melhor tecnologia.

A oferta de resíduos também precisaria ser estimulada, através de campanhas de educação ambiental e de um gerenciamento integrado de resíduos. Algumas sugestões: formação de cooperativas de recicladores, sistemas de depósitos-retorno, coleta seletiva de baixo custo. "Hoje, a oferta de resíduos é extremamente instável. Isso leva muitas vezes o reciclador de papel, por exemplo, a importar aparas para obrigar uma queda interna de preços", observa Wells.

 

Caso a caso

Particularidades de cada material determinam sucesso da reciclagem

Papel: tradição

A reciclagem do papel é tão antiga quanto a sua fabricação no país, iniciada há mais de cem anos. Hoje, atinge o patamar de 37,5% de recuperação, variando muito de região para região. A indústria de papel poderia absorver mais resíduos, segundo Alberto Fabiano Pires, consultor da ANFPC (Associação Nacional dos Fabricantes de Papel e Celulose).

Para Fabiano, entretanto, é suficiente que os fabricantes de papelão, papel de embrulho e sanitário continuem a absorver o material reciclado. Para aumentar esse mercado, ele aponta a necessidade de conscientizar a comunidade para que não misture o papel com o lixo orgânico. Mas não adianta separar, se o material não for aproveitado. "Há ilhas de consumo no país sem recicladores. É necessário criar linhas de financiamento para que recicladores de pequeno e médio porte se instalem nessas regiões", destaca Fabiano.

Deveriam surgir, também, linhas de financiamento para a formação de estoques de papéis recicláveis. Hoje, seu preço oscila muito acompanhando a variação da economia geral. Quanto mais produtos para embalar ou embrulhar, maior é a demanda por papelão, por exemplo. Seu preço sobe. E volta a cair quando o mesmo papel é descartado, aumentando a oferta.

"Mas vale ressaltar que a reciclagem sempre será uma atividade complementar." Fabiano argumenta que as fibras vão se desgastando a cada reciclagem. Por outro lado, alguns tipos de papel exigem fibras virgens para manter suas características. O papel de impressão e escrita, por exemplo, apenas reaproveita as aparas (sobras das gráficas).

Esse é um ponto crítico para o presidente da Anapa (Associação Nacional de Aparistas de Papel), Vito Taurisano. "Não adianta aumentar a coleta de resíduos, se não houver um destino final. Hoje, o consumo de fibras recicladas é muito limitado."

Para ele, o consumidor deveria ser estimulado a aceitar um papel diferente do atual. "Ele não precisava ser tão branquinho."

 

Vidros: sem diferença

O mercado do vidro se comporta de forma diferente. O material é 100% reciclável e o consumidor não nota a diferença entre o vidro original e o reciclado. Os cacos concorrem diretamente com a matéria-prima virgem, que determina seu preço. Mas é uma concorrência difícil: de um lado, material virgem de baixo custo e, de outro, material reciclado com qualidade, de alto custo. Atualmente, os cacos são coletados com muitas impurezas, o que encarece o tratamento. Por outro lado, a reciclagem reduz custos de energia, pois a temperatura de fusão do caco é mais baixa que a da matéria-prima virgem.

Isso talvez explique o crescimento da participação do material reciclado nas embalagens de vidro. Hoje, conforme dados da Abividro (Associação Técnica Brasileira das Indústrias Automáticas de Vidro), ela alcança a média de 32%, contra os 10% de 1994. "O uso de cacos deixou de ser uma mera questão de marketing, pois eles se tornaram um insumo básico de produção", diz Marcos Tibiriça, presidente da entidade. Ele informa que o setor pretende aumentar essa participação em 10% a cada ano, até ultrapassar o patamar de 60% de material reciclado.

Para isso, o maior desafio é conseguir resíduos de boa qualidade em grande quantidade. "O governo é simpatizante dos programas de coleta, mas parece ter outras prioridades", avalia Tibiriça. Por isso, a associação decidiu tomar a dianteira e está preparando um programa nacional para estimular e orientar a coleta e o tratamento dos resíduos. "Queremos incentivar a população a doar o vidro, além de organizarmos a captação e profissionalizarmos o processo."

 

Alumínio: ad infinitum

Ao mesmo tempo que preparam seus programas de reciclagem, os fabricantes de vidro perdem mercado para as embalagens de alumínio. "A latinha está conquistando espaço", comemora José Roberto Giosa, diretor de reciclagem da fabricante de latas de alumínio Latasa. Em 1990, 0,9% das embalagens de cerveja e refrigerante eram de alumínio. Em 96, essa fatia passou para 13%.

Para conseguir esses resultados, a empresa, pioneira e, por enquanto, única a fabricar o produto no país, assumiu a reciclagem, sem esperar a ajuda do governo. "Acreditamos que as iniciativas cabem ao setor privado. O governo só deve regular", explica Giosa. Com base nessa convicção, a empresa mantém desde 91 mais de cem postos de troca em supermercados, onde o consumidor permuta latinhas por vale-compras.

Em 93, a indústria implantou o projeto Escola, graças ao qual mais de 5 mil estabelecimentos de ensino já "compraram" equipamentos com latinhas. Em março de 96, a empresa inaugurou um centro próprio de reciclagem, com investimento de US$ 15 milhões.

Os resultados dessas iniciativas falam por si: de 91 a 95, o índice de recuperação passou de 32% a 63%. Ou seja, das 50 mil toneladas consumidas, 31 mil foram recicladas. No primeiro semestre de 96, ele subiu ainda mais, chegando a 70%.

O empenho vale a pena. Para reciclar uma tonelada de alumínio, gasta-se somente 5% da energia necessária para produzir a mesma quantidade de alumínio primário. Além disso, é fácil processar a sucata, pois a latinha é feita só de alumínio (sem rótulos, tampinhas, etc.). Para finalizar, o alumínio pode ser reaproveitado infinitamente e, quando reciclado, mantém as mesmas características que o material primário. Por tudo isso, mais que uma mera economia para a empresa, reciclagem "é uma vantagem competitiva", afirma Giosa.

 

Plástico: coleta difícil

No caso do plástico, a coleta é ainda o maior obstáculo. O material é leve e ocupa muito espaço, encarecendo o transporte – um dos pontos-chave da coleta. Ao mesmo tempo, é enorme a variedade de plásticos, que precisa ser separada e classificada. Há também as limitações de cor, restringindo o uso de material reciclado a certos produtos.

Mesmo assim, de 91 a 95, o índice de reciclagem das embalagens plásticas passou de 12,8% a 21,4%. "Com o nível tecnológico atual, podíamos pensar em 50% de aproveitamento", informa o diretor da Abremplast (Associação Brasileira dos Recicladores de Material Plástico), Liviu Bernard Schwarz.

Um dos entraves é o preço. "O resíduo ainda é caro", avalia Schwarz. Para ele, os catadores, os sucateiros e os transformadores do plástico teriam que ganhar em quantidade. "A indústria tem absorvido todo o resíduo comercializado."

O aumento de oferta, entretanto, não está nas mãos da indústria recicladora, na opinião de Schwarz. Ele acredita que a prefeitura e a comunidade têm uma participação determinante. "Sem esquecer o fabricante do produto final." Ele destaca que o fabricante de refrigerantes, por exemplo, que tem uma marca em evidência, poderia associá-la à reciclagem. "As grandes empresas têm condições de redirecionar sua verba de marketing e participar de programas de coleta", sugere.

 

Aço: ociosidade

Os sucateiros do aço também cobram um maior comprometimento do fabricante final, como, por exemplo, as montadoras de carros. Eles esperam também um incentivo creditício do governo para modernizar suas máquinas. "Há dez anos não conseguimos investir em tecnologia", destaca Marcos Sérgio Gonsalez, presidente do Sindinesfa (Sindicato Nacional do Comércio Atacadista de Sucata Ferrosa e Não-Ferrosa). "Hoje temos 50% de ociosidade no nosso setor", completa.

Os sucateiros do aço estão retraídos, mas não por falta de demanda, nem devido à concorrência da matéria-prima virgem. Afinal, as consumidoras de sucata são as siderúrgicas não-integradas, que não usam minério de ferro na produção. Por isso mesmo, as próprias siderúrgicas decidiram se equipar para comprar e beneficiar a sucata. "Esse é o nosso problema: nossos clientes se transformaram em nossos concorrentes", avalia Gonsalez.

No total, são aproximadamente 200 mil toneladas de sucata de aço movimentadas por mês, metade constituída por resíduos industriais e a outra metade por produtos descartados, como motores, carros, aviões, navios ou máquinas. Apenas uma das siderúrgicas, a Gerdau, consome a sucata "leve", ou seja, as embalagens de aço. São mil toneladas de latas produzidas por ano. Atualmente, 35% são recuperadas, usadas na fabricação de pregos, arames, vergalhões, etc.

"Não há oferta de sucata", alerta Roberto Pinto, coordenador de marketing do Prolata (Programa de Valorização e Incentivo ao Consumo da Embalagem de Lata). Segundo ele, bastaria a Gerdau para consumir toda a sucata leve gerada. Roberto reforça que o preço da sucata não tem compensado o trabalho do catador de rua. Uma saída apontada seria a instalação de eletroímãs em usinas de lixo. "Não podemos mais enterrar sucata", conclui.

 

Cooperativas

Enquanto cada setor faz suas queixas e propostas, alguns projetos já estão sendo colocados em prática por quem participa do mercado. Na cidade de São Paulo, por exemplo, desde 1989, está atuando a Coopamare (Cooperativa de Catadores de Rua). "Os sucateiros não aceitam comprar do carroceiro. Ele precisa vender mais barato, às vezes até pela metade do preço, para o depósito, que revende para o sucateiro. Por isso, nós decidimos trabalhar em conjunto", conta Carlos Roberto Fabrísio, um dos diretores da cooperativa, que reúne 60 cooperados. Juntos, agora, eles vendem diretamente para o sucateiro.

"Não falta material para recolher. Nunca voltamos com o carrinho vazio", diz Fabrísio. Mesmo assim, mais da metade dos cooperados estão afastados, pois compensa mais fazer outro tipo de serviço. "O preço da sucata está muito baixo", aponta Carlos, "principalmente depois do Plano Real."

O vidro, papelão, metal, plástico ou jornal coletados são separados em contêineres recolhidos pelos sucateiros ou diretamente pelos recicladores. Por semana, são mais de 15 toneladas acumuladas.

Na outra ponta da atividade, também está surgindo um projeto que tenta unir esforços: o Consórcio de Empresas de Reciclagem do Estado de São Paulo (Ceresp). O objetivo é criar um novo canal de abastecimento de resíduos, recolhendo o que hoje não é coletado, em parceria com as prefeituras. Para elas, não adiantaria a solução para apenas um material. "Por isso, as empresas decidiram atuar juntas e oferecer uma alternativa ampla para o lixo urbano", explica Véssia Maria Condaro, gerente do projeto. O primeiro passo está sendo a implantação de uma usina de lixo em Atibaia, interior paulista.

O objetivo é ter resíduos em maior quantidade, com custos menores e melhor qualidade. Com o Ceresp, as empresas poderão fazer inclusive frente à pressão dos sucateiros ou evitar as importações (freqüentes no setor de metais).

A expectativa é multiplicar a iniciativa em todo o estado. "Esperamos a colaboração das prefeituras e, principalmente, a continuidade dos projetos", destaca Véssia, preocupada com a mudança dos prefeitos. Se não houver sobressaltos, calcula-se que, só em Atibaia, 50 toneladas de restos de comida, latas vazias, garrafas de refrigerante, vidros de azeitonas, saquinhos plásticos, papéis rasgados e outros materiais começarão a ter um destino e valor diferentes.

Comentários

Assinaturas