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Abismo cruel
O Real reduziu o número de pobres, mas a diferença entre eles e os mais abastados permanece
CECÍLIA ZIONI
Quem quer comemorar a chegada do ano 2000 não precisa de motivos, mas uma das inegáveis alegrias do Brasil neste século foi a sensível redução no número de seus pobres e miseráveis. Ainda que o clima neste 1999 não esteja muito propício para celebrações desse tipo, a marca está aí e nem mesmo as recentes dificuldades econômicas são capazes de alterá-la: o país tinha 60 milhões de pobres no início dos anos 70, e agora conserva apenas (ou melhor, ainda) 30 milhões. Só entre 1993 e 1997, diminuiu 33,7% a incidência da pobreza metropolitana, o que também ocorreu com a urbana (-30%) e a rural (-29,2%), como mostram os mais recentes censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O salto dos anos 90 é obra direta do Plano Real, o primeiro a manter o Brasil durante considerável espaço de tempo com inflação controlada. Se o índice inflacionário não tivesse caído de 929% em 1994 para 22% no ano seguinte e a partir daí para números sempre abaixo de 8% (até chegar à deflação em São Paulo, no ano passado) isso dificilmente teria ocorrido.
A medida do ganho de renda havido entre janeiro de 1995 e fevereiro de 1999 foi feita pelo pesquisador Marcelo Neri, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No período, de acordo com seus dados, todas as faixas de renda tiveram avanços.
Mas, se esses são os fatos, por que o clima neste fim de ano não reflete a melhora? É que ainda persiste se é que não se aprofundou um dos maiores problemas brasileiros, a desigualdade social, de renda.
Bom exemplo disso é uma pesquisa realizada na Grande São Paulo pela Fundação Seade, do governo paulista, e divulgada em outubro. Os dados confirmam o ganho de renda generalizado entre 1994 e 1998 na média, a renda familiar per capita subiu 32% no período. Mas revelam que os 10% mais ricos passaram a ter renda 37% maior, enquanto os 10% mais pobres elevaram bem menos seus ganhos: 24%. Ou seja, apesar de todos terem melhorado, aumentou o abismo entre os dois extremos da pirâmide social. Os mais ricos, que ganhavam 41,2 vezes mais que os mais pobres em 1994, passaram a ter renda 45,5 vezes maior que a deles em 1998.
A pesquisa é local, mas o fenômeno é nacional. Basta ver as variações do Índice de Gini. Indo de 0 a 1, esse indicador internacional mede a desigualdade de renda, tanto maior quanto mais próximo de 1 for o número registrado. Em outras palavras, como bem explica o jornalista Rolf Kuntz, o número zero corresponderia à igualdade absoluta na distribuição, e 1, à desigualdade total, quando só um sujeito controlaria todas as riquezas.
O Índice de Gini brasileiro é o segundo pior do mundo. Fica em torno de 0,60 (o melhor, da Áustria, é 0,23, e o pior, de Serra Leoa, na África, é 0,62, bem próximo do do Brasil, portanto), e não tem melhorado nos últimos tempos. Sonia Rocha, pesquisadora do Ipea, lembra o índice de 0,58 em 1993 e menciona a baixa para apenas 0,57 em 1997 para confirmar a persistência de elevado grau de desigualdade de renda no país. É um dado essencial, principalmente quando se trata de medir a pobreza no seu senso mais lato, não limitada apenas ao poder aquisitivo ou, pelo lado mais cruel, à insuficiência de renda , mas considerada como síndrome cultural complexa.
Cores sombrias
No final deste ano, 134 países estarão representados nos Estados Unidos para a Rodada do Milênio, convocada pela Organização Mundial do Comércio (OMC). O tema será o comércio, mas o cenário é a crescente pobreza no mundo, denunciada em setembro pelo Banco Mundial e por alguns institutos da Organização das Nações Unidas (ONU), como a Unctad (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento).
Em julho, a ONU já havia mostrado as cores sombrias do seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, atribuindo Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) a 174 países. O melhor índice é 1 e o pior, zero. O Brasil levou 0,739 e ficou em 79º lugar. Canadá (0,932) e Noruega (0,927) puxam a fila, em que Portugal, Uruguai, Colômbia, Equador e outros estão à frente do Brasil. O pior índice (0,254) é justamente de Serra Leoa, país vizinho ao nosso na rabeira do Índice de Gini.
O Banco Mundial diz que a distância entre países ricos e pobres está aumentando, o que a Unctad confirma, creditando à globalização a perda de participação no mercado mundial pelos países em fase de expansão. Na Rodada, os bem-intencionados tentarão reduzir esse fosso, que, no caso do Brasil, pode ser medido pela renda per capita: nos anos 80, a do Brasil valia quase 30% da dos Estados Unidos, e no ano passado ficou em 22% desse valor.
O perfil da pobreza do brasileiro foi desenhado recentemente em estudo de Sonia Rocha e Roberto Cavalcanti Albuquerque, diretor técnico do Instituto Nacional de Altos Estudos (Inae), considerando quatro pontos: a família pobre, sua educação, seu trabalho, sua casa. O perfil é construído em comparação com o de uma família não pobre (no caso da região metropolitana de São Paulo, pobre é quem tem renda mensal abaixo de 0,90 salário mínimo, ou R$ 122,40).
Montados esses perfis, os pesquisadores construíram um modelo capaz de expressar a probabilidade de uma pessoa ser pobre no Brasil. O trabalho foi divulgado em setembro, durante o Fórum Nacional sobre Estratégias de Combate à Pobreza. Dizem os especialistas que a probabilidade de um brasileiro ser pobre é de:
95% para a mulher chefe de família, desocupada ou no mercado informal, com até quatro anos de estudo, moradora em zona rural do nordeste e de cor preta ou parda
92% para a mulher nas mesmas condições, mas de cor branca
91% para alguém nas mesmas condições, mas se for homem
87% para esse mesmo homem, se ele deixar a família no campo e mudar-se para um centro urbano
86% se ele fizer isso e se tiver estudado mais de quatro anos.
A situação melhora muito se metade das pessoas da família tiver emprego: nesse caso, a chance de ser pobre se reduz a 62% e, se todos trabalharem, para apenas 16%.
Lições de Deus e do Bird
Ou seja, o trabalho é a solução. E é abençoado por Deus, como diz o arcebispo de São Paulo, dom Cláudio Hummes: "A Igreja sempre defendeu o direito de todos ao trabalho. Pelo trabalho, o ser humano se associa ao Deus Criador, pois desenvolve potencialidades naturais, faz desabrochar seus talentos, cultiva e transforma a natureza circundante, produz sustento seu e de seus dependentes, colabora para o bem comum de todos na sociedade. O trabalho dá dignidade ao homem e à mulher".
Em outras palavras, receita semelhante é dada pelo mais recente estudo do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1999. O chefe da equipe do Banco Mundial encarregada desse relatório, Shahid Yusuf, indica quatro lições essenciais a ser aprendidas neste século:
A estabilidade macroeconômica é essencial para o crescimento e indispensável para o desenvolvimento
Os frutos do crescimento se espalham muito lentamente entre as camadas sociais
O desenvolvimento decorre de abordagem abrangente e não de políticas isoladas
O desenvolvimento deve ser socialmente inclusivo.
Este quarto item é o que interessa: sem a inclusão do homem mais pobre no crescimento não haverá desenvolvimento sustentado. E é o assunto inadiável deste fim de milênio, caracterizado pelo Banco Mundial como o tempo da globalização e da descentralização: é hora de abrir o comércio internacional, deixá-lo livre de mecanismos de proteção, para dar chance a que todos dele participem em igualdade de condições.
Mas o Bird diz, em seu estudo, que nas últimas décadas a renda per capita média dos países mais pobres e dos intermediários recuou, em comparação com a dos mais ricos. Em um século, multiplicou-se por seis a distância que separa pobres de ricos. E, no caso do Brasil, a pobreza diminuiu e a renda cresceu, mas a repartição das fatias continua desproporcional, tendência iniciada nos anos 70, como mostram os números do IBGE.
Raízes históricas
Cláudio de Moura Castro é um economista brasileiro que trabalha no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Segundo ele, as raízes da desigualdade estão na nossa história. "Sempre fomos um país semifeudal de grandes latifúndios, de riqueza concentrada", diz ele, observando que não somos diferentes de muitos outros nesse particular. "Todavia, ao contrário de países parecidos com o Brasil, aqui os ricos ficaram muito mais ricos."
O que fazer para mudar isso? Há sempre muitas receitas, mas pouco se faz para resolver efetivamente a questão. Há poucos meses, o país se movimentou em torno de propostas como a de um imposto sobre a riqueza, sugerida pelo controverso senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-Bahia). Essa proposta mereceu até algum apoio de Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Partido dos Trabalhadores, que defende, há anos, um projeto de renda mínima, preparado pelo senador também petista Eduardo Matarazzo Suplicy (ver seção Debate desta edição). O governo federal reagiu, falando mais uma vez num imposto sobre heranças, que emerge das sombras sempre que assuntos como esse surgem na pauta.
Economistas e especialistas divergem, é claro. "Sendo um povo de soluções pacíficas e de contemporização, sempre adiamos a resolução dos problemas estruturais, ao contrário dos Estados Unidos, onde se matou meio milhão de pessoas em uma guerra civil por conta da abolição da escravatura", diz Moura Castro.
Para Luiz Fernando Furlan, industrial, presidente do Fórum de Líderes Empresariais e vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a única solução no curto prazo é exportar, para "voltar a crescer, gerar emprego e ter paz social". Como amostra do campo minado em que se transformou a desigualdade no país, ele costuma dar um exemplo marcante: "Estamos investindo US$ 100 milhões por ano para blindar carros, quase dez empresas fazem isso em São Paulo e no Rio de Janeiro, e a fila de espera é de 90 dias. Será que não daria para investir esses US$ 100 milhões nas causas do problema, gerando mais produção, emprego, exportação, acertando o déficit da balança comercial, dando estabilidade, fazendo com que o governo deixe de mendigar dinheiro no overnight ou nos mercados mundiais, pagando juro alto, porque a credibilidade e o lastro são baixos?"
O ex-ministro Mailson da Nóbrega vê na cultura de manutenção dos privilégios a principal causa da persistência da desigualdade social no país. Por isso, não teriam efeito, como não têm sentido, medidas pontuais, diz ele, apontando duas vias que considera eficazes: primeiro, o investimento correto em educação, em que se considere a empregabilidade da pessoa; segundo, o combate aos privilégios, cristalizados pela Constituição de 1988, e que podem ser atenuados pelas reformas, principalmente a tributária e a previdenciária. Há também de se mudar as políticas públicas, recomenda Mailson, lembrando que 70% das bolsas de estudos, no Brasil, são destinadas aos 10% mais ricos do país, assim como metade das aposentadorias de maior valor vai para esses mais abonados.
Sobre o investimento correto na educação, raciocinam na mesma linha diversos especialistas, como Moura Castro, durante anos consultor do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Diz ele ter o "baixo nível geral de educação dado aos poucos que a têm uma vantagem enorme, perpetuando um desenvolvimento de grandes empresas eficientes e pequenas empresas ineficientes". No entanto, adverte, "educação não é uma solução mágica para a pobreza, pois sem crescimento não há saída. Mas, sem a educação, nem pensar em mudar o círculo vicioso em que estão os nossos pobres", conclui.
Marcelo Neri, do Ipea, diz haver um núcleo duro de pobreza, formado por 16 milhões de pessoas, que não reage mais a políticas de geração de renda e só pode ser beneficiado por transferência pura e simples de renda. São os que estão abaixo da chamada linha da pobreza e ganham menos de R$ 65 por mês.
Nesse contexto é que se justificam políticas de caráter mais assistencialista e não institucionais. Na primeira linha estão medidas como as defendidas por ACM, que usa o Mapa da fome, do Ipea, para embasar seu projeto para criar ainda não formulados programas de nutrição, habitação, educação, saúde, complementação de renda e outros, "de relevante interesse social, voltados para a melhoria da qualidade de vida da população", como diz.
Sobre os efeitos no que os economistas chamam de desigualização da renda, proporcionados pelo crescimento e pelo desenvolvimento, Antônio Barros de Castro, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, faz uma importante consideração. "Estamos há 20 anos sem crescer. Isso transparece tanto mais quanto afloram problemas sociais de intensidade rapidamente crescente, não só o desemprego, mas a queda concreta do rendimento dos cidadãos, a inadimplência, a frustração nas compras e nas vendas, por conseqüência." Como resposta a esses desafios, Barros de Castro defende mudanças radicais na política econômica, que até agora "decepcionou a população". Em resumo, a receita se basearia, claro, em crescimento, mas com atenção ao caráter socialmente inclusivo.
Balança desequilibrada
São 5 milhões as pessoas um Paraguai inteiro ou quase meio Portugal que trabalham como domésticas no Brasil. Dois terços delas recebem R$ 130 ou até menos por mês. Mais da metade dessas adolescentes, moças e mulheres, é negra. Menos de 900 mil têm carteira assinada, que lhes garante menos direitos que os dos demais trabalhadores. Doméstica não tem Fundo de Garantia por Tempo de Serviço nem seguro-desemprego, por exemplo, e, se "dormir no emprego", ainda tem de aceitar desconto de 6% de seu salário... Mesmo assim, é chefe de família, em quase um terço das famílias pobres.
Essas mulheres acordam todas as madrugadas para servir famílias de classe média. São um exemplo vivo da desigualdade. As casas em que vivem têm perfil totalmente diferente do das casas em que fazem limpeza, preparam refeições, ainda que os anos mais recentes tenham propiciado aos mais pobres a posse de uma boa série de aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos que ampliam o bem-estar.
Mas o padrão de consumo e bem-estar subiu também para as classes mais ricas. Nas famílias servidas por essas domésticas, por exemplo, 15 milhões de telefones celulares e fixos foram comprados desde que ocorreu a privatização, há pouco mais de um ano. Nesse meio tempo, o número de linhas celulares pulou de 600 mil para 11 milhões e os preços do serviço e dos aparelhos continuam em baixa.
Neste ano, devem ser ligados 4 milhões de novas linhas: antes, por ano só se liberava 1 milhão. Até o fim do ano, 85% das centrais telefônicas serão digitais. Ter um celular é sinal recente de bem-estar. Alunos de escolas particulares dos melhores bairros paulistanos levam o aparelho na lancheira.
Mas, para o grosso da população, a infra-estrutura da telefonia brasileira ainda é deficiente: só 11,7% dos brasileiros têm telefone fixo. Na Argentina e no Chile, 20% das famílias têm uma linha telefônica em casa.
Pode parecer bobagem, mas dispor de uma ou mais linhas de telefone em casa é sinal de que se está bem de vida, plugado na modernidade. Na Internet, por exemplo. O Brasil é sempre citado entre os melhores casos de boom do sistema e do chamado e-comércio. No total, são 3,3 milhões de brasileiros (com idade a partir de 10 anos) ligados à Internet. Isso significa 9% da população consultada pelo Ibope em nove capitais brasileiras. Mais de 1,2 milhão dos brasileiros usuários da Internet são das classes alta e média, ou seja, 33% desses segmentos de renda. No México, só 12% das pessoas dessas classes usam a Internet, e na Argentina, 14%.
O Brasil é o maior mercado de comércio pela Internet na América Latina: nossos on-lines têm 307 dos 422 sites de vendas, e é curioso saber que há mais sites para vender livros (59) que para música. Mas quem mais fatura são os sites de supermercados (US$ 29 milhões projetados este ano), seguidos pelas livrarias (US$ 15 milhões).
Ter home banking é outra vantagem de 1,5 milhão de brasileiros donos de personal computer. Segundo informação dos jornais, um dos maiores bancos nacionais, o Bradesco, recebe 15 mil novos correntistas eletrônicos por dia. Seu movimento diário pela Internet equivale ao de 20 agências. E o emprego dos bancários, como fica nisso? Há 23 bancos já no sistema (na Argentina são 7, no Chile 6 e no México 3).
A baixa relativa do preço do computador e o avanço da telefonia são as causas disso: no ano passado, o preço médio de um PC era US$ 1,5 mil, metade do preço no início do Plano Real. Em 2001, deve cair para US$ 1,3 mil, segundo especialistas. Por isso, já existem 3 milhões de PCs no país, e serão 12 milhões em 2001.
Neste ano, o comércio convencional não tem ido bem, refletindo a perda salarial da população, afetada pelo avanço do desemprego. As fábricas de eletrônicos projetam vender 4 milhões de aparelhos de TV, um declínio em relação aos quase 5 milhões de unidades comercializadas em 1994, mais de 8 milhões em 1996 e acima de 7 milhões em 1997. As montadoras calculam fechar o ano com vendas de 1,2 milhão de carros, bem abaixo dos 2 milhões de dois anos atrás.
A situação é melhor, quando o foco se amplia: desde 1995, nunca a Associação Comercial de São Paulo havia registrado um índice tão baixo de requerimentos de falências como em agosto último (644, 33% menos que no ano passado e 20% menos que no mês anterior). O passivo das concordatas deferidas mostra situação pior para pequenas e médias empresas, pois o valor caiu 64% em um ano.
José Pastore, professor da Universidade de São Paulo, analisa a mobilidade social no país desde os anos 70. Segundo ele, no período, 80% dos brasileiros subiram na escala social e 20% desceram. "Ou seja, a maioria das famílias está em melhores condições sociais que as de seus antecedentes." O problema é que o quadro geral ainda é de uma sociedade desigual, móvel e de difícil organização, diz o professor. Num período mais curto, no começo do Plano Real, houve grande movimento de acréscimo de renda para os mais pobres, que não mais se repetiu. Mas uma parte da riqueza adquirida não desapareceu, e se incorporou às famílias. Quem sente mais a queda de renda mais recente é a classe média e, se isso persistir por mais dois ou três anos, o quadro pode mudar, alerta Pastore.
O que está levando rapidamente a isso é a ocorrência, nos últimos tempos, de uma conjunção perversa de aumento da inflação com decréscimo da massa salarial, como indica o sociólogo Sérgio Abranches. O trabalhador tem aguda percepção disso, assinala o especialista, e seu ânimo arrefece.
Talvez por isso os brasileiros estejam batendo recordes no movimento de apostas e loterias. O bolo arrecadado pela Caixa Econômica Federal, que administra a Mega-Sena, a Super-sena, a Quina, a Loteria Federal e a Esportiva, entre outras, cresceu 15% no primeiro semestre deste ano e chegou a R$ 1,2 bilhão. Com esse dinheiro, o governo poderia comprar de volta a Cesp Paranapanema, uma das duas estrelas (com a Comgás, vendida a R$ 1,8 bilhão) da privatização deste ano.
Belíndia ou Coríndia?
Há quase 30 anos, o então professor Edmar Bacha (agora banqueiro) criou a expressão Belíndia para identificar o Brasil das desigualdades. Seríamos um país capaz de conter a Bélgica rica e a Índia miserável ao mesmo tempo. O economista Cláudio de Moura Castro acha já ser hora de rever o conceito de Bacha, muito adequado à época, mas agora talvez superado. É que já se pergunta "se São Paulo é a Bélgica e o Piauí é a Índia ou se há uma Bélgica no Leblon e uma Índia na Favela da Rocinha".
Para obter as respostas, o economista analisou as classificações dadas aos estados brasileiros de acordo com o IDH.
Para seguir o raciocínio é bom lembrar que o indicador da Bélgica é 0,923 (5o lugar no mundo); o da Índia é 0,545 (132o) e o do Brasil, como já foi dito, 0,739 (79o). O da Coréia é 0,852 (30o). O IDH é divulgado anualmente pelo Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, e a edição de 1999 se refere a dados de 1996.
Em seu estudo, Moura Castro usou o Relatório de 1998, que tem números um pouco diferentes dos de 1999, mas sem alterações substanciais. O pior estado brasileiro, segundo essa classificação, diz o professor, era a Paraíba, com um indicador de 0,287. De fato, quase todos os estados do nordeste tinham índices em torno de 0,400, como Ceará, Rio Grande do Norte e Alagoas. Comparando o índice da Paraíba e desses estados com o de outros países, o professor verificou serem alguns muito próximos do nível da Índia, um dos 40 países mais pobres do mundo, como Bolívia (0,398) e Egito (0,389), equivalendo ao do Piauí em 1998.
Para entender melhor esses índices, o professor analisou as distribuições de freqüência entre educação e renda e entre saúde e renda. A primeira observação a ser feita é que a correlação renda/educação é muito elevada (0,920). De fato, é bem maior do que a correlação renda/esperança de vida (0,790). Isso significa que os estados historicamente gastaram com educação proporcionalmente às suas riquezas mas que com saúde uns fazem mais e outros menos.
O Ceará estava muito abaixo do Piauí em matéria de esperança de vida. Todo o esforço recente do Ceará para revolucionar seu sistema de saúde não apareceu nesses indicadores. Mas, mesmo assim, por que a diferença? Em matéria de saúde, o resultado mais trágico é o de Alagoas, que, além de ser o mais mal colocado, tem níveis de renda acima dos estados mais pobres. Em outras palavras, não é estritamente por pobreza que anda mal a saúde de seus habitantes, comenta Moura Castro.
Em matéria de saúde, Minas Gerais e São Paulo estavam abaixo do que se justificaria pelo seu nível elevado de renda, enquanto os estados sulinos estavam acima da linha de regressão (outro nome para a linha de pobreza). Na educação, São Paulo ficava acima da linha de regressão e Minas, abaixo. Dado o tipo de indicador utilizado, isso não surpreende o professor, já que o grande salto educativo de Minas Gerais foi dado nos últimos anos e pouco altera as estatísticas globais. Esse é um ponto importante a ter em mente: os indicadores pouco dizem sobre os esforços recentes na área social. Pelo contrário, medem um desempenho acumulado em várias décadas.
Edmar Bacha foi muito otimista em sua metáfora da Belíndia, diz Moura Castro. "Não chegamos a ser uma Bélgica, embora não fiquemos mal perto da Coréia. Mas estamos praticamente empatados com a Índia. Ou seja, combinamos Coréia e Índia. Coríndia, portanto."
Ao contrário do que se poderia esperar, isto é, um continuum entre os mais ricos e os mais pobres, as distribuições são muito polarizadas. Por isso, explica o professor, Coríndia não é uma metáfora para uma ampla distribuição de desempenhos em educação, saúde e economia, mas uma divisão em blocos bem separados. "Convivem no mesmo território estados escandalosamente diferenciados. Alguns, se não têm padrões europeus, pelo menos estão no grupo dos países mais bem situados do Terceiro Mundo: Coréia, Costa Rica, Uruguai e Chile. E há o nordeste, que varia entre o subcontinente indiano e os piores países da África", conclui.
Pela renda
Se apurar o IDH é complicado, nem por isso seria melhor se fiar apenas em indicadores baseados nos cálculos de renda. Desde o desenvolvimento da contabilidade nacional, lá pelos idos da Segunda Guerra, diz Moura Castro, um indicador de renda mede o bem-estar puramente econômico dos países. É a renda nacional refletida nos números do Produto Interno Bruto (PIB). Por eles, são comparados países e regiões, medidos avanços e retardos: são a fita métrica para avaliar os níveis de produção e renda dos países.
Mas o problema é que não basta saber qual é a renda per capita para captar o nível de bem-estar das pessoas e das sociedades, pois sua distribuição quase sempre é muito diferenciada e os usos dessa renda podem não aumentar o bem-estar da sociedade. É o que acontece, por exemplo, em países com gastos militares excessivos. O PIB é alto e, se a população é pouca, a renda per capita explode, mesmo sendo o povo miserável. Ademais, "essas medidas consideram os seres humanos mais como meios para aumentar a renda do que como fins do desenvolvimento", adverte Moura Castro. "Estão preocupadas com os seres humanos como insumos para aumentar a produção."
O critério da renda é um dos mais importantes entre os indicadores usados pelo Banco Mundial, embora também sejam considerados dados sobre a variação da capacidade de consumo per capita, a desnutrição, a mortalidade infantil, a expectativa de vida ao nascer, o analfabetismo, as condições de saneamento e a população.
Em nenhum deles o Brasil faz boa figura. Sinal de que há muito a consertar, antes que o abismo entre nossos ricos e pobres atinja distância intransponível.
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