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No fim do túnel, um som de esperança

Fabricantes de instrumentos apostam na volta do ensino musical obrigatório

ALBERTO MAWAKDIYE


Apresentação da Banda Mário Portes,
de Mogi das Cruzes (SP) / Foto: Divulgação

Parece que a sorte começa, finalmente, a sorrir um pouco mais largo para os produtores brasileiros de instrumentos musicais – uma antiga e teimosa casta industrial que reúne cerca de 200 pequenos e médios fabricantes, além de centenas de luthiers, como são conhecidos os que produzem artesanalmente instrumentos de corda.

Instalados algo desconfortavelmente no mercado brasileiro – tão estreito que não lhes permite faturar mais que R$ 400 milhões num ano bom – e ainda pouco presentes no cenário internacional (as vendas equivalem a meros 10% das realizadas aqui), os fabricantes deverão enfileirar-se entre os principais beneficiários da lei federal, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último mês de outubro, que determina a volta da obrigatoriedade do ensino de música nas escolas do país – abandonada oficialmente em 1972.

A intenção da medida – que nasceu de um projeto da senadora Roseana Sarney (PMDB-MA) e teve como base reivindicação de uma legião de entidades ligadas à área musical, inclusive das de fabricantes de instrumentos – é que, com aulas de música, os alunos passem a compreender melhor a cultura brasileira, desviem-se de possíveis maus hábitos e ainda se tornem mais sensíveis ao aprendizado, inclusive da matemática, disciplina que é gêmea da teoria musical.

Subjacente à ideia também está o propósito de melhorar a formação musical dos brasileiros, que podem até ter a música na alma, mas, com as raras exceções dos músicos natos, são incapazes de dedilhar, soprar ou percutir um instrumento sem machucar os tímpanos alheios (de fato, pense o leitor em quantas pessoas de suas relações sabem tocar alguma coisa). Essa inapetência não era tão grande assim quando os brasileiros traziam noções de música dos bancos escolares.

"Sem dúvida, o fim das aulas de música nas escolas reduziu bastante o interesse das pessoas por aprender a tocar", afirma Marcelo Segatti, gerente de projetos da Associação Nacional dos Fabricantes de Instrumentos Musicais e Áudio (Anafima), que reúne cerca de 40 empresas. "Hoje, nossas vendas estão restritas, basicamente, aos músicos profissionais ou semiprofissionais e aos alunos de conservatório, que em geral também aspiram abraçar a carreira."

De acordo com ele, a volta da obrigatoriedade do ensino deve ampliar significativamente a quantidade de interessados em estudar música, assim como as vendas de instrumentos para não profissionais que não sejam os onipresentes violões de madeira compensada ou as flautas doces, tidos como quase de brinquedo por quem entende do assunto – aliás, um segmento que vem sendo devastado pela concorrência chinesa, com seus instrumentos populares a preços de baciada.

Na visão de Segatti, trata-se, inclusive, de uma lei que não foi feita no vazio, ao contrário de tantas outras na legislatura brasileira. Ele sente que, apesar de tantos anos de falta de estímulo, voltou a existir um interesse genuíno, entre muitos jovens, por passar de meros consumidores de música à condição de instrumentistas, o que o aumento do número de escolas de formação musical espalhadas pelo país confirmaria.

De fato, essas escolas já somam 765 apenas na cidade de São Paulo, e 132 no Rio de Janeiro. Uma instituição de renome como o Conservatório Dramático e Musical Doutor Carlos de Campos, vinculado à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e localizado na cidade de Tatuí, recebeu neste ano, por exemplo, inscrições de 2.975 candidatos a 587 vagas oferecidas em 43 cursos diferentes nas áreas de música, teatro e luteria (construção de instrumentos). É um número de candidatos 50% maior do que o registrado em 2008.

"A gente sente mesmo um interesse maior dos jovens, e que nada tem de diletante", diz Henrique Autran Dourado, diretor executivo do conservatório, que é considerado um dos mais importantes do país. "Tanto que o curso mais procurado este ano foi o de piano, com 253 inscritos, e o de violino teve 171. Já o de bateria popular teve 14 candidatos por vaga, e o de trompete, 13." De acordo com Dourado, o curso de guitarra e de contrabaixo elétricos – instrumentos básicos do rock’n’roll – teve só dez inscritos por vaga: "Isso mostra que a média dos candidatos está interessada mesmo em aprender música, e não em se enfronhar em um gênero musical".

Condição

Na verdade, a ampliação da base do mercado implícita na obrigatoriedade do ensino de música (as aulas devem ser implementadas pelas escolas públicas e privadas em um prazo máximo de três anos, a ser usado para a elaboração do currículo e formação do corpo docente) se tornou quase uma condição para a indústria brasileira de instrumentos continuar a crescer e progredir.

Afinal, é óbvio que nenhum empresário investirá continuamente numa fábrica se a partir de certo ponto as vendas não sustentarem ou justificarem novos investimentos – um limite que está chegando para muitas indústrias brasileiras.

Seria uma pena se isso acontecesse. Poucos segmentos investiram e se modernizaram tanto nos últimos anos como a indústria de instrumentos, que embora já tenha uma longa história no país – as fabricantes de violões profissionais Di Giorgio e Giannini (que também faz guitarras elétricas) foram fundadas, por exemplo, no começo do século 20 – começou a se firmar realmente como ramo fabril importante a partir dos anos 1960. Hoje, o Brasil produz quase todos os instrumentos necessários para o funcionamento de uma orquestra ou de uma fanfarra, por exemplo, em quantidades bastante razoáveis e, em alguns casos, com uma qualidade tida como excepcional.

Indústrias como a Weril (saxofones, trombones e outros instrumentos de sopro), Hering (gaitas e guitarras elétricas), a já citada Di Giorgio (violões) e RMV e Odery (baterias e itens para percussão) já se tornaram pequenas referências mundiais em suas especialidades, competindo até mesmo, em alguns modelos, com grifes estrangeiras. É o caso dos trombones da Weril – cujo GG (Gilberto Gagliardi) foi eleito, em 2002, um dos melhores do mundo pela International Trombone Association, dos Estados Unidos – e de algumas gaitas da Hering, que hoje não fazem feio nem mesmo perto de uma Hohner, tida como a Ferrari desse instrumento.

"Não fazemos questão de produzir milhões de gaitas por mês, mas sim instrumentos de alta qualidade e que atendam os mais diferentes gêneros musicais", diz Alberto Bertolazzi, presidente da Hering, cuja fábrica fica em Blumenau (SC). "Fazemos gaitas para instrumentistas de blues, de country, para música folclórica, sempre utilizando engenharia e materiais de primeira. Temos até gaitas feitas inteiramente de bronze, um material que possibilita grande precisão e um som absolutamente limpo."

Houve, também, na indústria como um todo, um grande empenho em atualizar tendências. Os desenhos foram modernizados – ainda no começo dos anos 1970, o Brasil produzia clarinetas de 13 chaves, que estavam em desuso na Europa desde o século 19 (as modernas têm 21 chaves, tecnologia que facilitou muito a execução) – e certos instrumentos praticamente deixaram de ser fabricados em massa, como a sanfona, que foi muito popular no Brasil até os anos 1960. Da enormidade de 55 fábricas de acordeão existentes no país, restou só uma, na cidade de Jaú (SP), que representa a marca italiana Scandalli.

"Não há dúvida que o setor se modernizou e ficou mais competitivo, tornando-se capaz, hoje, de produzir instrumentos de qualidade comprovada", diz Vera Machado, gerente comercial da paulistana Di Giorgio, cujos violões, construídos na maior parte ainda de maneira semiartesanal, são voltados para o, por assim dizer, mercado premium desse instrumento. "Fabricamos, em média, 4 mil unidades por mês, mas cada um de nossos violões top exige da fábrica um mês inteiro de dedicação, e não os produzimos como um artigo de massa. É isso que nos garante um nicho de excelência no mercado e a fidelidade da clientela."

De acordo com ela, várias outras fábricas também adotaram essa estratégia de focar públicos mais qualificados, por falta de uma base de consumidores que tocam simplesmente por amor à música e poderiam se contentar com instrumentos de boa qualidade, mas não necessariamente de ponta.

Encolhimento

Diga-se que esse mercado para instrumentistas profissionais ou semiprofissionais, para azar dos fabricantes, hoje tampouco é dos maiores, outro fruto amargo da desinformação do público sobre o que é fazer e tocar música – sem uma base musical elementar, a necessidade dos brasileiros de interagir com os músicos em certa igualdade de condições foi, naturalmente, também diminuindo com o tempo, resumindo-se mais e mais ao ato da audição passiva, na maioria das vezes submetido ainda ao consumo de massa.

De fato, a invasão aparentemente irrefreável da música mecânica sobre bares, restaurantes e casas noturnas reduziu à exceção, por exemplo, os antes relativamente pródigos espaços para a música ao vivo, roubando o trabalho de milhares de profissionais. E em muitas casas que ainda a mantém, ela é quase sempre executada por um único músico em um moderno órgão eletrônico, que imita os sons de qualquer instrumento e ainda responde pelo acompanhamento. Esses órgãos, geralmente, são fabricados nos Estados Unidos ou no Japão.

"Temos inscritos na seção paulista da Ordem dos Músicos do Brasil uns 46 mil profissionais, mas não mais do que 12 mil a 13 mil estão em atividade", constata Roberto Bueno, presidente do conselho regional da entidade no estado. "O que tem de músico hoje trabalhando como vendedor, segurança, escriturário, é uma festa." O problema, segundo ele, se agrava em âmbito nacional. De fato, de acordo com o Conselho Federal da Ordem dos Músicos (onde estão cadastrados cerca de 800 mil profissionais), 80% dos instrumentistas não trabalham na área e só 5% conseguem se consagrar na carreira. Os demais atuam por conta própria em escolas, bandas e em "bicos" eventuais.

E, apesar de todos os esforços do poder público – que, para além de megainiciativas duvidosas como a Cidade da Música, da prefeitura do Rio de Janeiro, tem desenvolvido projetos consistentes para a disseminação de orquestras e bandas pelo país, inclusive com a doação de instrumentos por meio de patrocínios culturais –, tampouco a quantidade desses conjuntos ainda é grande o suficiente para sustentar um mercado mais pulsante.

Há hoje no Brasil, no máximo, 40 orquestras dignas desse nome, enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, o número de orquestras profissionais ultrapassa 2 mil. Já na Alemanha, mesmo a menor cidadezinha tem a sua, e é rara a cidade média que não tenha mais de uma. Quanto às bandas e fanfarras, elas parecem estar sumindo aos poucos da paisagem musical brasileira, apesar de todo o estímulo oficial para reavivar a modalidade. Se, no começo dos anos 1980, somavam mais de 7,5 mil, hoje não passam de 2,5 mil. Nos Estados Unidos, existem pelo menos 30 mil bandas e fanfarras em atividade.

"Percebemos um interesse autêntico da esfera pública, seja da União ou dos estados e municípios, em estimular a disseminação de orquestras e bandas, mas o investimento ainda é pequeno", diz Bruno Belotto Novaes, coordenador de marketing da também paulistana Weril. "Nós mesmos já fornecemos centenas de instrumentos de sopro aos mais diferentes grupos, quase sempre adquiridos por meio de incentivos culturais, mas esse é um mercado que está, no máximo, em desenvolvimento".

Novaes diz que, atualmente, um dos principais mercados da Weril é aquele constituído pela cultura gospel – ou seja, pelas igrejas evangélicas, cujos milhões de fiéis, a cada dia reforçados por novos membros, já formam faz algum tempo um grande mercado para a música e a literatura, movimentando, segundo algumas projeções, cerca de R$ 1 bilhão por ano.

De acordo com o executivo, trata-se de um mercado que enche de alegria os fabricantes de instrumentos. "Nas bandas dessas igrejas, apenas alguns músicos são profissionais, não a maioria", revela Novaes. "São locais onde tradicionalmente se respira e se ensina de fato a música, e onde existe um interesse genuíno dos recém-iniciados em aprender e ter um instrumento de qualidade. Torço para que um pouco desse espírito se transfira para as escolas, e que a volta do ensino de música seja obrigatória apenas na lei, mas prazerosa e autêntica no cotidiano."


O fim de um hiato de quase 40 anos

A obrigatoriedade do ensino de música nas escolas vigorou no país a partir de 1932 (a inspiração partiu do maestro e compositor nacionalista Heitor Villa-Lobos) e foi extinta durante o regime militar, em 1972, por Jarbas Passarinho, então ministro da Educação e Cultura, num dos típicos arroubos autoritários da época.

A ideia do MEC foi cortar o mal pela raiz, já que a música, além de seu óbvio poder agregador, tinha então, também, um papel importante no combate ao regime – é suficiente lembrar as canções de protesto de Chico Buarque e de Geraldo Vandré. O ensino de música foi diluído dentro da disciplina Educação Artística e rapidamente abandonado na maioria das escolas.

Foi uma perda não apenas cultural, mas também didática. Uma pesquisa feita recentemente na Califórnia (EUA) com 5 mil alunos, metade dos quais formada por estudantes de piano, a outra metade por aficionados da internet, mostrou que os primeiros eram incomparavelmente superiores aos segundos no domínio das ciências exatas. Não é à toa que os estudantes brasileiros também não se destacam nem um pouco nas matemáticas.

Algumas instituições de ensino, claro, levaram adiante a chama, principalmente na rede privada de elite. Cidades como Franca, Santos e Mogi das Cruzes, todas em São Paulo, também já têm o ensino de música no currículo escolar faz algum tempo.

Em Mogi, o projeto municipal Tocando e Cantando garante aulas de música em 20 escolas da cidade. A Secretaria de Educação também estimulou a formação de uma banda sinfônica infantil, uma banda de percussão e grupos de música e câmara, todos com instrumentos doados.

"A partir da música, o aluno vê e ouve o mundo de maneira diferente, e seu relacionamento com os professores e as outras pessoas também se modifica", diz Maria Geny Borges Ávila Horle, secretária de Educação de Mogi das Cruzes. "As aulas de música despertam tanto a sensibilidade artística como o sentido de cidadania dos alunos."

Também os 21 Centros Educacionais Unificados (CEUs) da prefeitura de São Paulo abriram espaço para a música, dentro do Projeto Guri, que recebeu recentemente a doação de 400 violinos. Não é necessário, porém, dispor de instrumentos para ensinar música (um pretenso obstáculo que já vem sendo levantado por algumas escolas que são contra a obrigatoriedade, principalmente devido à óbvia dificuldade que todas elas terão para montar um corpo de professores capacitado e numericamente suficiente). Afinal, nesse campo, a improvisação pode valer muito – até porque ela faz parte da música.

De fato, nada mais fácil do que construir um chocalho com tampinhas de garrafa, instrumentos de sopro com tubos de PVC e reco-recos com pedaços de madeira. Para não falar da flauta doce de plástico, que já vem pronta. Era assim que se ensinava música nas escolas mais pobres nos anos 1960.

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