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Moedas sociais

Iniciativas promovem inclusão financeira de população marginalizada

LILIANA LAVORATTI


Foto: Arquivo PB

Palmas, cocal, moqueio, guará, rios, semear e caju estão entre as 40 moedas sociais que circulam em várias localidades do Brasil, em complementação à unidade monetária oficial, o real. Dinheiro alternativo e de uso exclusivo nas comunidades que se organizaram e criaram seus próprios bancos comunitários, essas cédulas emitidas já totalizam o equivalente a cerca de R$ 80 mil. Embora cada guará ou cocal corresponda a R$ 1, essas moedas sociais movimentam muito mais, pois giram até cinco vezes nas mãos dos "prosumidores" – expressão que designa a rede de produtores, comerciantes e consumidores reunidos em um mercado solidário.

A emissão dessas moedas como mecanismo de combate à pobreza começou a ser feita no país em 1998, quando a Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira, em uma favela de Fortaleza, criou o Banco Palmas, que seria o primeiro de uma série. Em 2008, durante as comemorações de dez anos da instituição popular, não faltaram motivos para festejar: nesse período, os 32 mil moradores do bairro – dos quais 80% são analfabetos – tiveram acesso a pequenos empréstimos de custo baixo e 1,4 mil novos postos de trabalho surgiram no local. É compreensível, portanto, que 90% dos habitantes atribuam ao banco a melhoria da qualidade de vida proporcionada pelas novas oportunidades de emprego e renda, segundo pesquisa realizada pelo Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social da Universidade Federal do Ceará.

A experiência pioneira e bem-sucedida inspirou outros grupos e, hoje, já são 40 os bancos comunitários espalhados no norte e nordeste. Alguns exemplos: os pescadores da ilha de Mosqueiro, em Belém, criaram o Banco Tupinambá, que emite o moqueio – o nome é uma referência à maneira como se limpa e "trata" o peixe no lugar; as quebradeiras de coco de São João do Arraial (PI) fundaram o Banco dos Cocais; os quilombolas de Alcântara (MA) implantaram o Banco Comunitário Quilombola e emitiram o guará, que usa até um cifrão próprio, o Gr$; em Parnaíba (PI) funciona o Banco Comunitário Semear e, no Ceará, foram montados também o Banco Riosol, de iniciativa de cinco bairros da capital, e o Banco Cajueiro, no município de Monsenhor Tabosa.

Câmbio proibido

No verso de todas essas moedas, a mesma explicação das primeiras cédulas do Palmas: "Está totalmente proibida a troca ou negociação deste bônus por dinheiro. Ele só poderá ser utilizado como meio de bonificação na aquisição de mercadorias e serviços com comércios e pessoas conveniadas com a Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira, com o valor de 1 bônus por R$ 1. Essas atividades promovem o desenvolvimento local social e ambientalmente sustentável". Só muda o nome da entidade à qual pertence o banco comunitário.

"As cédulas ficam aqui, não saem do bairro. O tomador do empréstimo pega o palmas e vai comprar no posto de gasolina, que dá o bônus para pagar a pizzaria, que quita a dívida na farmácia, que passa para o açougue, que também pode trocar por passagens de ônibus e assim por diante", conta o coordenador do banco, João Joaquim de Melo Neto Segundo, de 46 anos.

Embora possam receber o financiamento em reais, os moradores preferem a moeda própria porque compartilham da filosofia dos "prosumidores", que prioriza o comércio e serviços locais. E isso é o que diferencia os bancos comunitários das cooperativas de microcrédito disseminadas nos últimos anos, principalmente no sudeste e no sul, bem como do crédito oferecido a microempreendedores pelos bancos oficiais públicos.

"Demos um passo adiante. Além do acesso a crédito a custo muito baixo, geralmente menos de um terço das taxas cobradas pelos bancos tradicionais, a população gasta na própria localidade, não apenas implantando pequenos empreendimentos, mas consumindo nos estabelecimentos conveniados. Isso cria empregos, mantém os existentes e amplia a renda", argumenta Joaquim de Melo.

Tudo nasceu da percepção de que a reorganização da produção e do consumo poderia gerar oportunidades para as famílias do Conjunto Palmeira. Os moradores se deram conta, no entanto, de que precisavam suprir a lacuna deixada pelo sistema financeiro tradicional, no qual desempregados, subempregados e assalariados de baixa renda têm dificuldade até para abrir uma conta-corrente. Como os bancos comunitários são proibidos pelo Banco Central de captar recursos de associados e emprestá-los – pela legislação vigente somente os bancos oficiais podem fazer esse tipo de operação –, o jeito foi encontrar outras saídas.

Ajuda de ONGs

Para montar o banco, 11 anos atrás, a Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira emprestou R$ 2 mil de uma organização não governamental, a Ceará Periferia. Seis meses depois, duas ONGs internacionais – a Oxfam International, da Inglaterra, e a GTZ, da Alemanha – doaram R$ 6 mil. Esse dinheiro foi repassado em financiamentos de valores baixos, de R$ 100 a R$ 200, a juros entre 2% e 3% ao mês, muito aquém das taxas cobradas pelo mercado, hoje ao redor de 9% ao mês para crédito pessoal no sistema financeiro formal.

Com quase zero de inadimplência, o dinheiro retornou, novos financiamentos foram concedidos, e a moeda social foi ganhando apoio, inclusive oficial. Atualmente, existem duas fontes de captação, ambas governamentais: uma doação de R$ 300 mil do governo do Ceará, dinheiro esse que é emprestado à taxa de 1% ao mês; e R$ 1,5 milhão, concedidos pelo Banco do Brasil a juros de 1% ao mês e que o Banco Palmas repassa a consumidores e produtores a taxas entre 1,5% e 3% ao mês. Nos demais bancos comunitários, o processo é semelhante. O valor médio de cada financiamento foi crescendo e, hoje, gira em torno de R$ 1 mil.

Entre os benefícios do aumento da carteira do Palmas nos últimos dez anos, de R$ 8 mil para R$ 1,8 milhão, o Conjunto Palmeira contabiliza a viabilidade de pequenos empreendimentos. Seis empresas de várias áreas compõem a rede Palmas de economia solidária: a Palma Fashion, uma grife de confecções; a Palma Limpe, de material de limpeza; a Palma Natus, que fabrica sabonetes, xampus e outros produtos de higiene pessoal; a Palma Art, de artesanato; a Palma Calçados, de sandálias femininas; e a Palma Serviços de Limpeza – dedicada a faxina e outros serviços domésticos. Está em fase de implementação a Palma Tour, uma agência de viagens com uma pousada para receber visitantes, inclusive estrangeiros, interessados em conhecer a experiência.

O faturamento bruto mensal dessas microempresas vai de R$ 8 mil a R$ 20 mil – o da Palma Fashion é o maior. Embora não sejam propriedade da Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira nem do Banco Palmas, as empresas são franqueadas pelo Instituto Palmas – que administra a marca Palmas – e passam por rigoroso controle de qualidade, que envolve a capacitação dos trabalhadores em cursos realizados em convênio com universidades e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Os donos são os trabalhadores, que administram os empreendimentos em regime de autogestão. A Palma Fashion, por exemplo, emprega 12 costureiras e produz por mês cerca de 2 mil peças, vendidas no varejo ao preço máximo de R$ 25 cada. Além disso, outras 50 costureiras trabalham em casa para a grife popular.

Maria Darcília de Lima Silva, de 54 anos, tem oito filhos e está há oito anos na Palma Fashion, onde coordena as costureiras que trabalham nas dependências da empresa. O aumento da renda mensal – R$ 750, o dobro do que ganhava antes nas indústrias de Fortaleza – e a comodidade de não mais precisar tomar três conduções por dia para chegar ao serviço estão entre as inúmeras vantagens ressaltadas por ela ao comparar sua vida antes e depois de ingressar na Palma Fashion. "Levo dez minutos andando de minha casa para o trabalho. Acabou aquele tempo de sair de madrugada e chegar tarde da noite", salienta Maria Darcília.

Os produtores vendem prioritariamente em estabelecimentos de comercialização próprios – nas feiras semanal e quinzenal, e na Central Palmas de Distribuição – e em eventos de movimentos sociais em outros municípios. "O grande desafio, no entanto, é fornecer para o poder público, o que ainda não conseguimos. A elevada burocracia das licitações nos impede de vender material de limpeza e outras mercadorias para as escolas municipais e estaduais", exemplifica Joaquim de Melo. Segundo ele, a lei teria de mudar para que a produção solidária pudesse ficar com uma fatia do mercado governamental.

Modelo exportado

A metodologia dos bancos comunitários está sendo exportada para a Venezuela, que já implantou cerca de 200 bancos comunitários semelhantes ao Palmas. A parceria começou em 2006, quando o Ministério da Economia Popular do governo do presidente Hugo Chávez enviou 20 técnicos para conhecer de perto o funcionamento da rede Palmas.

A rapidez na expansão dos bancos comunitários no país vizinho decorre do amplo apoio oficial. O governo venezuelano criou um arcabouço legal, incluindo um Fundo Nacional para o Desenvolvimento, com recursos para grupos de no mínimo cinco pessoas que se unam e formem seu próprio banco. "O respaldo do poder público é essencial para levarmos essa experiência à população brasileira excluída dos serviços financeiros", ressalta Joaquim de Melo. Esse apoio, demanda antiga dos grupos de economia solidária no Brasil, pela primeira vez está previsto em um projeto de lei em tramitação no Congresso (ver texto abaixo).

E quais as perspectivas futuras dos bancos comunitários? Joaquim de Melo – um ex-seminarista que conviveu com dom Helder Câmara (1909-1999), defensor dos direitos humanos e de uma Igreja voltada aos pobres – traduz a ambição: "Nossa meta é implantar, dentro de alguns anos, 10 mil bancos comunitários para promover a inclusão financeira e bancária e financiar a geração de pelo menos 3 milhões de postos de trabalho".

Terreno fértil é o que não falta no país campeão das taxas de juros altos. Apesar do "incentivo" dado pela estabilização econômica e pelas políticas públicas de acesso ao crédito, iniciadas no governo de Fernando Henrique Cardoso e aprofundadas na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, muito ainda precisa ser feito em termos de crédito, seja produtivo (microcrédito), seja para o consumo, e inclusão bancária.

Estudo comparativo realizado pelo Banco Mundial com 99 países colocou o Brasil em 71º lugar, com o atendimento de apenas 0,5% da população (dados de 2005). Naquele ano, 60 milhões dos 176 milhões de brasileiros tinham conta-corrente. Embora predomine a ideia de que parcela expressiva dos brasileiros continua à margem do sistema financeiro formal, nem o Banco Central (BC) nem a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) têm dados sobre o tema.

A Febraban divulga apenas o total de contas bancárias – os últimos números, de 2007, indicavam crescimento: 112 milhões de contas, das quais 77 milhões movimentadas, para uma população de 184 milhões, contra 63,7 milhões de contas registradas em 2000. Entretanto, segundo a assessoria de imprensa da entidade, boa parte dos correntistas mantém várias contas abertas ao mesmo tempo. Esse é o motivo alegado também pelo BC para não estimar o número de correntistas, mas somente de contas.


Sem regulamentação, mas com apoio oficial

Embora ainda não exista uma regulamentação específica para as moedas sociais no Brasil, o governo apoia essa iniciativa por meio de políticas públicas de combate à pobreza implementadas pelos ministérios do Trabalho e Emprego e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, pelo Banco Popular do Brasil (BPB) e pela Fundação Banco do Brasil – que concedeu seu Prêmio de Tecnologia Social, em 2005, ao Banco Palmas.

Sem uma posição oficial sobre a matéria, o Banco Central estuda uma forma de acompanhar a evolução do uso das moedas sociais, segundo informações da assessoria de imprensa da instituição. "Não se trata de um sistema paralelo ou que fuja à fiscalização do BC. O fato de não existir regulamentação específica sobre o assunto, por si só, não transforma a emissão de moeda social em uma prática ilegal", explica a assessoria.

A legalização desses bancos e suas moedas está prevista em projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, que cria os bancos populares de desenvolvimento solidário (BPDS), habilitados a prestar diversos serviços financeiros nas condições e limites fixados pelo Conselho Nacional de Finanças Populares e Solidárias (Conafis), com representação do governo, da sociedade civil e do BC. A medida deve autorizar ainda esses bancos a emitir moedas sociais de circulação restrita à sua área de atuação, bem como a captar poupança e emprestar esses recursos.

"A organização não governamental autorizada a atuar como BPDS não poderá prestar todos os serviços financeiros de imediato; antes, terá de se consolidar. Caso contrário, os maus resultados recairão sobre a população a quem deveria propiciar melhorias socioeconômicas", explica a autora do projeto, deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), ex-prefeita de São Paulo.

Se aprovado, o projeto – em fase inicial de tramitação – possibilitará uma maior cobertura dos serviços financeiros básicos, como pagamento de contas e pequenos financiamentos. "Isso significa superar o distanciamento atual das instituições bancárias em relação à população carente", conclui a parlamentar.

 

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