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Em Pauta

Função educativa da TV

Na edição de fevereiro de 1995, o Em Pauta perguntou aos colaboradores da seção se a televisão estaria cumprindo com sua parcela na educação das crianças e mesmo na formação geral dos adultos. Em artigos exclusivos, nomes como o do dramaturgo Lauro Cesar Muniz, o jornalista Roberto Muylaert e do advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira discutiram o tema. Mais de uma década depois, em plena era da revolução tecnológica nas telecomunicações, a Revista E volta à questão. Desta vez, quem disserta sobre o tema é a autora infantil Tatiana Belinky, responsável pela primeira adaptação de Monteiro Lobato para a telinha, e o advogado Ericson Meister Scorsim, especialista em regulação da TV digital.

Uma TV educacional e formativa
por Tatiana Belinky

O tema da bandeira paulista é “Non ducor-duco” (não sou conduzido, conduzo). Na palavra latina “duco”, só falta a “e” inicial para ser “educo”! Porque quem educa conduz, e quem conduz necessariamente “educa”. Simples, não é verdade? Verdade, sim, mas tudo menos simples. Até porque, queiramos ou não, somos todos educadores. Educamos, bem ou mal, as crianças e os jovens, e eles, por sua vez, nos educam. E tudo em volta de nós, crianças ou adultos, nos educa, nos ensina, nos “leciona”, com lições, ou sem elas; sem dedo em riste. Conduzimos e somos conduzidos, educados, por tudo o que nos toca ou atinge, direta ou indiretamente, desde o nosso simples cotidiano até as inúmeras “acontecências”, pessoais, sociais, políticas, científicas, tecnológicas etc. etc. O que dizer então da tal da mídia, o rádio “velho de guerra”, a imprensa, ideologias, comunicações instantâneas, o “velhinho” telégrafo? Bem, não é preciso enumerar os nomes de mais tantos e tantos educadores e suas funções.


E aqui chegamos à televisão, quiçá a mais poderosa e mais democrática e, ouso dizer, irresistível “educadora” ao alcance da população em geral – e das crianças, adolescentes e pré-adolescentes em particular, com sua vasta abrangência e sua poderosa ação e influência sobre milhões de telespectadores no país (e no mundo inteiro).


Então, a provocativa pergunta da seção Em Pauta, sobre nada menos que “a função educativa da TV, que ela tem ou deveria ter no Brasil hoje”, exige não um simples artigo de revista, mas pelo menos uma abrangente palestra, ou mesa-redonda, ou painel na própria TV, que não dariam para esgotar tão vasto assunto, ou talvez um livro inteiro, se é que já não saiu algum, sem o meu conhecimento.


Bem, sobre a função educativa da TV, eu tenho, de fato, uma valiosa experiência: a de uma programação infantojuvenil que durou mais de 12 anos ininterruptos, na antiga TV Tupi, de São Paulo. Eram quatro programas de tele-teatro, ao vivo, por semana, assumidamente “culturais”, do Tesp, Teatro-Escola de São Paulo, grupo teatral “profissionalmente amador”, dirigido por Júlio Gouveia, médico psiquiatra, psicólogo, poeta, homem de teatro, diretor e apresentador de TV – e, principalmente, um educador nato e superconvincente que manteve no ar, sem contrato e sem concessões, sua programação “educativa”, coisa fora do comum já nos anos de 1950 e 1960 do século passado e, acho, mesmo, quase inviável hoje.

Mas não seria inviável se houvesse disposição, coragem, vontade política e espírito cívico de algumas emissoras – e, claro, ajuda dos ministérios da Cultura e da Educação –, em especial, se pensarmos nas possibilidades fantásticas da TV brasileira, hoje, com sua notória capacidade técnica e artística, e os inúmeros talentos brasileiros, à disposição dos milionários recursos monetários da nossa televisão – e do seu potencial, sua função educativa, ou educacional formativa, como preferia chamar Júlio Gouveia.

Foram centenas, muitas centenas, de programas diversos, a maior parte baseada em boa literatura, com a intenção de promover, por meio do tele-teatro, o livro e a literatura.

E é aqui que entra a minha experiência nessa “função”. Durante esses cerca de 12 anos, eu fui roteirista (na época se chamava script writer) que adaptava e redigia (e até “inventava” alguns deles) quase todos os textos para a TV educacional formativa do Tesp. De olho atento para a função educativa – estética, ética, psicológica, dramática, cômica (o humor, vários tipos de humor, é essencial na tal função educativa, tanto ontem como hoje). Tudo, nunca com intenção de “fazer a cabeça” da criançada, mas mesmo com o famigerado “politicamente correto” impositivo e até agressivo, muitas vezes exagerado e até tolo. O “nosso” que não tinha esse nome, era “implícito”, nunca “ensinado”, como uma chatíssima “moral da história”. Essas ideias estavam simplesmente implícitas, “aconteciam” naturalmente no decorrer da ação. Coisas simples, como não associar maldade à feiura, ou a “defeito” físico e vice-versa, beleza não implicava necessariamente virtude ou bondade. E “vilões”, personagens negativos, masculinos ou femininos, belos ou feios, podiam, sim, em caso de necessidade, aparecer com vícios, preconceitos etc. (como, aliás, aparecem nas novelas para adultos hoje, e às quais as crianças também assistem, absorvendo outras funções “educativas”).

Não vejo por que não usar os princípios básicos do Tesp do “meu tempo” hoje – claro que com algumas diferenças óbvias, na técnica, às vezes na linguagem, nas trucagens e tantas coisas mais, impostas pelas grandes mudanças da nossa época acelerada e mesmo frenética.

“Frenético” é, infelizmente, um adjetivo que se aplica demais à vida das crianças e dos adolescentes dos dias atuais. As crianças são literalmente bombardeadas pelo excesso precipitado de informação, impressões, estímulos e até mesmo pela sobrecarga de atividades “legais”, como escola, aulas especiais disso e daquilo, ruídos, aglomerações, e lá vai o etc. etc. etc., que as deixam mais atordoadas e atrapalham o interesse, outros e importantes interesses, e a tão necessária, para muita coisa, capacidade de concentração.

Então, voltando à função educativa, ou deseducativa, da TV, vale o que comentei acima. E torno a dizer, o que a TV “deveria” evitar, na medida do possível, são aqueles programas frenéticos, pseudo-humor barato e grosseiro, que as crianças e os jovens assistem, e até gostam de assistir. E sabemos muito bem que nem tudo de que as crianças (e os outros) gostam é bom para a saúde delas, física, mental, emocional.

Cabe aos educadores, profissionais ou “honorários”, inventar ou descobrir um jeito de domar um pouco a tão onipresente e invasiva TV, com as suas nem sempre desejáveis mensagens “educativas”.

E ainda nem falei na grande “educadora” televisiva: a barulhenta e muitas vezes inteligente e criativa propaganda comercial. Os “nossos comerciais”, que invadem a nossa intimidade, aos berros. E impingindo, em especial às crianças, o setor mais vulnerável do público, toda sorte de consumismo, “necessidades” desnecessárias, alimentos e guloseimas prejudiciais à saúde (e ao bolso dos pais...). Como evitar, ou pelo menos atenuar essa função educativa da TV hoje? Eu poderia citar e lembrar mais mil e uma coisas no mínimo inúteis na TV nossa de cada dia. Mas seria, com perdão da palavra, o tal de “encher linguiça”, neste bom e elucidativo espaço.

Ah, estávamos falando de “fazer a cabeça” do jovem telespectador. Pois é, uma das funções educativas da TV certamente não é “fazer a cabeça” de ninguém. Fazer a cabeça até pode ser função do cabeleireiro e é, certamente, função – com todo o respeito! – do candomblé. Mas não da TV. No que se refere à criança, não consigo fugir dessa função educativa da TV, hoje como ontem, que é a de não impingir nada garganta abaixo, ao pequeno telespectador, mas ajudá-lo a expandir sua cabecinha, abrir os olhos, os ouvidos e até o olfato (quando, se não demorar muito, a TV tiver cheiro) para observar, procurar entender e absorver tudo o que de bom e de melhor a TV hoje pode, e deve, oferecer, para incentivar e estimular a sua tão necessária curiosidade, e levá-lo a parar para pensar – e descobrir como é bom usar a própria cabecinha, com toda aquela riqueza potencial que ela contém. E que lhe permitirá desenvolver suas latentes capacidades criativas, artísticas, científicas, musicais e até tecnológicas, matemáticas e, por que não?, políticas (junto com as cívicas!).

Eu poderia dizer muito mais, mas vou parar por aqui. Sem deixar de dizer que nossa TV aberta, de modo geral bastante medíocre, raramente exercendo sua desejável função educativa, que deveria ser “formativa”, como queria o educador Júlio Gouveia, muitas vezes se mostra “desinformativa” e até “deformativa”... Porém, a bem da verdade, temos também programas bons, muito bons mesmo, educativos, artísticos e culturais, bem pensados e bem executados, para qualquer público – que não é bobo e saberá lhe dar o merecido feedback, que é a recompensa que todos desejamos e, feedback esse, do qual me lembro bem do tempo da TV Tupi, com os altos índices de audiência e invejáveis “Ibopes” dos programas do Tesp, sempre confiantes no jovem (e no nem tão jovem) telespectador. Aquele que tem inteligência e perspicácia, e capacidade de compreender e metabolizar o “alimento” enriquecedor, implícito no desenvolvimento de uma história bem contata. E com uma abordagem palatável e até sutil, válida, na sua filosofia ético-democrática e moderna no melhor sentido.

E posso afirmar isso porque até hoje, meio século depois, as pessoas que eram crianças e jovenzinhas “naquele tempo”, quando encontro – já adultíssimas, realizadas, pais, mães e até avós – dizem e repetem como num bordão: “Devo a minha formação cultural, amor aos livros, ao teatro e às ideias esclarecedoras e construtivas, e que hoje transmito aos meus filhos e netos, aos programas apresentados pela TV Tupi, e o Tesp de Júlio Gouveia e Tatiana Belinky...”. Dá para pensar nisso, não é mesmo?

 
Tatiana Belinky é autora de livros infantojuvenis e foi a primeira a adaptar, juntamente com Júlio Gouveia, a obra ?Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, para a televisão

 “No que se refere à criança, não consigo fugir dessa função educativa da TV, hoje como ontem, que é a de não impingir nada garganta abaixo ao pequeno telespectador, mas ajudá-lo a expandir sua cabecinha, abrir os olhos, os ouvidos”


Educar pela TV
por Ericson Meister Scorsim

A TV é um aparelho eletrônico que consome tempo de vida. Por isso, é preciso pensar sobre seu papel na educação infantojuvenil e instrução dos adultos. No Brasil, segundo recente pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11,5% das crianças de oito a nove anos são analfabetas. Ler, escrever e falar são atos fundamentais para o ensino. A palavra educar deriva do latim educere, que significa extrair e valorizar as potencialidades do ser humano. Assistir televisão pode ajudar ou atrapalhar a aprendizagem? Qual a responsabilidade das emissoras de TV no que tange à educação? Os estudos demonstram que quem assiste TV em excesso compromete o seu desempenho no trabalho e pode vir a prejudicar seus relacionamentos pessoais.
O trabalho moderno depende muito mais da utilização do cérebro do que músculos. O desenvolvimento de competência cognitiva é uma questão de sobrevivência para os trabalhadores. O trabalho pode contribuir para a excelência da vida do indivíduo, mas isso depende da própria significação atribuída pela pessoa às suas experiências diante de novos desafios. Maior educação possibilita mais segurança financeira, respeito e estabilidade.


O atual contexto é o de uma geração que nasceu, cresceu e envelheceu em um cenário audiovisual. A televisão se diversificou e multiplicou ao longo do tempo, em razão da evolução tecnológica e de novas demandas sociais, nas seguintes espécies: TV aberta (gratuita), TV por assinatura (paga, dividida em TV a cabo e por satélite), TV analógica e digital, TVs privadas, públicas e estatais. As TVs privadas buscam lucro, mediante a veiculação da publicidade comercial. As TVs estatais veiculam a comunicação institucional dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (exemplos: TV Brasil, TV Senado, TV Câmara, TV Justiça etc.). As emissoras públicas pertencem às entidades representativas da sociedade (exemplo: canais comunitários que fazem parte do sistema a cabo e, de certo modo, a TV Cultura de São Paulo, TVs universitárias, a própria TV do Sesc).


A programação da televisão aberta enfatiza a exibição de notícias ruins. Isso é feito, estrategicamente, para chamar a atenção do público e promover a venda de mercadorias e serviços. Cria-se a ilusão de que o consumo propiciará a felicidade. Então, como construir uma nova programação comprometida com a educação? Um dos caminhos é pensar a televisão e sua respectiva influência.


Os cidadãos e consumidores devem conhecer e fazer valer seus direitos. A Constituição do Brasil de 1988 garante a proteção ao direito fundamental à educação, que é um instrumento para o desenvolvimento da pessoa, preparação para a cidadania e qualificação para o trabalho. Mas, como é possível educar pela televisão? A educação é um processo de capacitação do código linguístico. Não há como pensar sem dominar a linguagem, não há comunicação – seja por escrito, seja oralmente, sem a compreensão das palavras e das diversas formas de raciocínio. É ensinar a pensar por imagens, pois a imaginação desperta a intuição que possibilita o entendimento. Aliás, para pensar, não é preciso ver. Educar é apoiar e facilitar o desenvolvimento do indivíduo, por via do entendimento das regras da gramática e da aritmética, auxiliando a plena operação das funções mentais. Educar é conscientizar a pessoa para que ela possa conhecer a si mesma e o mundo que a cerca.


A pessoa sem a capacidade de cognição adequada possui estruturas mentais de pensamento limitadas, pois é incapaz de dominar a linguagem, não consegue abstrair e generalizar – ferramentas imprescindíveis para o desenvolvimento do raciocínio. Não consegue compreender, não é capaz de se expressar. É incapaz de ser o protagonista de qualquer evento em sua vida.


Tendo em vista todos esses aspectos, uma programação de TV deve ter uma abordagem plural para alcançar os diversos públicos e seus diferentes interesses (novelas, noticiário, programas de auditório, de entrevistas e de humor, reality shows, desenhos animados, filmes etc). O universo de opções temáticas é imenso: artes, saúde, bem-estar, esportes, história local e regional, meio ambiente, cultura, política, finanças pessoais.


A qualidade dos conteúdos audioviduais requer elevados investimentos na produção dos programas. Além disso, existem alguns pressupostos para a veiculação de conteúdos educacionais. É que o paradigma da linguagem audiovisual está associado à intensa velocidade de imagens e sons. O ato de educar requer tempo para reflexão, contemplação e concentração. Por isso, entendo que é possível ensinar pela TV; porém, de um modo limitado e em uma dimensão totalmente diferente daquela adotada no modelo tradicional.


A natureza técnica da televisão dificulta a abordagem de determinados temas com a necessária profundidade. Pode ser mais eficiente o enfoque na transmissão de informações básicas e úteis. A televisão jamais será a heroína da educação. A leitura, a escrita e a fala são os pilares da instrução. Há um espaço menor para os programas educativos nas emissoras comerciais porque elas estão focadas na diversão. A maior abertura para programas educacionais acaba ficando restrita às emissoras públicas e estatais.


Existem princípios constitucionais que tratam da produção e da programação. Um deles impõe a preferência por finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, por exemplo. Outro garante o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Há, ainda, um dispositivo que preceitua que a lei disciplinará meios de proteção à pessoa e à família em face de programação inadequada – bem como contra práticas e ?serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Ou seja, o que falta é uma legislação adequada de proteção dos telespectadores que efetive as regras constitucionais. A lei da TV aberta é do ano de 1962, época em que o televisor era por válvula e a transmissão era feita em preto e branco. Entenda-se: essa lei está totalmente desatualizada tecnológica e socialmente. Como determina o texto constitucional, a educação é dever de todos, o que evidentemente inclui a televisão. Por outro lado, os pais não podem renunciar à responsabilidade educacional em relação a seus filhos, deixando esse papel somente à escola ou à TV. Então, como assegurar o cumprimento do papel educativo da TV? Um bom começo é promover, dentro de casa, a educação para a mídia, observando o espaço que a televisão ocupa no cotidiano das famílias. É fundamental o diálogo familiar sobre o conteúdo dos programas, escolher a programação mais adequada conforme a classificação indicativa, prestar atenção ao tempo em que os pequenos ficam diante da TV – tentando negociar isso juntamente com o cumprimento de tarefas escolares e da rotina do lar.


Segundo o Ibope, em 2005, as crianças de 4 a 11 anos de idade assistiram a uma médida de 4,5 horas de televisão por dia. Quando elas completarem 17 anos, terão passado aproximadamente quatro anos de sua vida na frente do televisor – sobre o tema há o livro A TV Que Seu Filho Vê [Panda Books, 2008] de Bia Rosenberg. Porém, essa participação ativa dos telespectadores, com ações concretas diante das emissoras e do poder público, não exclui o dever da própria televisão em repensar e renovar a sua programação (na TV paga, por exemplo, a oferta de programas educativos é até maior do que na TV aberta). E é sempre bom lembrar: se a TV não cumpre com sua função educativa, sempre existem outros caminhos – como desligá-la, trocar um programa por um bate-papo com a família e os amigos, praticar esportes, ler bons livros, assistir a filmes (ir ao cinema ou ver DVDs), passear, ouvir música e mais uma infinidade de atividades. Afinal, o que fazemos com nossa vida e nosso limitado tempo? Tempo livre é luxo!


Ericson Meister Scorsim é advogado, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em regulação da TV digital e autor do livro TV Digital e Comunicação Social (Fórum, 2008) – www.tvdigital.adv.br

“É possível ensinar pela TV, porém, de um modo limitado e em uma dimensão totalmente diferente daquela adotada no modelo tradicional. A natureza técnica da televisão dificulta a abordagem de determinados temas com a necessária profundidade”