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Letras Francesas


Com autores de várias nacionalidades, a nova literatura do país de Balzac e Flaubert é marcada pela diversidade de temas e técnicas narrativas
 

A um bom leitor seria fácil fazer uma lista de obras e autores de origem francesa. De Marcel Proust e a saga de Em Busca do Tempo Perdido, ao flanneur que vaga pelas ruas parisienses nos versos de Baudelaire em Flores do Mal. Dos clássicos de Honoré de Balzac, com sua Comédia Humana, e Emile Zola, que escreveu inúmeras obras naturalistas, como Germinal, às aventuras fantásticas narradas por Júlio Verne em Vinte Mil Léguas Submarinas, passando também pelo eterno O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. Isso sem contar os títulos em francês dos nem tão franceses Albert Camus, Marguerite Duras e Samuel Beckett. E, claro, as obras de Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, o famoso casal de filósofos-literatos que abalou o mundo das ideias e das palavras na Paris do último século. 

Esse mar de palavras da produção francesa teve grande influência na literatura feita no Brasil, que, junto ao México, é dos países que mais traduzem títulos franceses na América Latina. Dados do Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil registram que, por ano, as editoras brasileiras adquirem direitos autorais de cerca de 500 títulos franceses. “Mas a maior parte desses livros é de obras teóricas”, explica o adido do livro da embaixada da França no Brasil, Jerémie Desjardins. Por isso, como parte das atividades do Ano da França no Brasil, os organizadores tiveram a ideia de trazer ao solo brasileiro alguns dos principais autores em língua francesa da atualidade, como forma de colocar o público brasileiro em contato com a produção francófona contemporânea.

O mosaico multifacetado, composto por Atiq Rahimi,?Sophie Calle, Catherine Millet, Ollivier Pourriol, David Foenkinos e Grégoire Bouillier, pôde ser visto pelas ruas de Paraty, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro, e em mesas realizadas em São Paulo durante a Caravana de Autores, evento realizado em diferentes unidades do Sesc São Paulo (ver boxe Bienvenue en France). O grupo de escritores explora a interdisciplinaridade e evidencia a diversidade da escrita contemporânea produzida em francês. “Uma coisa em comum entre esses autores é o recurso a maneiras diferentes de se comunicar com seus leitores”, avalia o diretor editorial da editora Estação Liberdade, Angel Bojadsen, responsável pela tradução de Rahimi para o português. “A coisa vai mais além do que a simples escrita tradicional.” Bojadsen comenta ainda que se trata de escritores que “se dão em espetáculo”, como se houvesse a necessidade de algo mais que a escrita pura. “Mesclar fotos com escrita, cinema com filosofia, a inclusão da cultura persa e afegã na francesa, a vida sexual aos quatro ventos, as brincadeiras com o público, e finalmente transformar o relacionamento amoroso em metalinguagem literária”, enumera o editor. “Cada um deles trilhou um caminho bem diverso e original e, pelo que pudemos ver, de grande eficácia midiática.” A professora Verónica?Galíndez-Jorge, doutora em língua e literatura francesa ?pela Universidade de São Paulo (USP), traduz esse cenário como um momento de literatura de autores, no qual não há grupos organizados ou tendências gerais, mas uma grande pessoalização na relação entre público e escritores. “Em grande medida há, sim, uma presença mais individualista que atrai a atenção do leitor, ou do consumidor de livros”, explica.

Os estrangeiros
Entre os autores da caravana, um par de olhos azuis sob óculos de grau e um inconfundível chapéu preto chamaram a atenção. Pertenciam a Atiq Rahimi, escritor afegão ganhador do Goncourt em 2008, o mais importante prêmio literário da França. A obra premiada, Syngue Sabour – Pedra-de-paciência (Estação Liberdade, 2009), foi a primeira escrita por Rahimi direto em francês. Suas outras duas publicações no país – Terra e Cinzas (2002) e As Mil Casas do Sonho e do Terror (2003), ambas com edições em português pela Estação Liberdade – haviam sido escritas primeiro em persa e depois traduzidas para a língua francesa.

Em francês, Rahimi diz ter encontrado a possibilidade de tocar em temas sobre os quais não falaria na sua língua materna, o persa. Isso fica evidente quando o leitor se depara, em Syngue Sabour, com desabafos contra a religião e contra a repressão, feitos por uma mulher que vela seu marido moribundo, acamado, em estado vegetativo, após ser atingido por uma bala na cabeça.
O sucesso alcançado por Rahimi lembra o de outros autores que, embora tenham o francês como língua literária, não são naturais da França. “Há muitos anos, a França tem publicado os mais diversos autores de expressão francesa”, revela a professora Verónica Galíndez-Jorge, ressaltando que esse movimento ganha força no século 20, a partir de Camus – nascido na Argélia –, com a abertura do mercado para escritores de ex-colônias francesas. 

Nos anos de 2000, como lembra a especialista, essa presença de autores não-franceses tem sido incrementada pelo sucesso de escritores que não têm o francês como língua materna, como é o caso de Rahimi e de François Cheng, primeiro oriental eleito para a Academia Francesa de Letras. Não são os únicos – no século passado, Samuel Beckett, natural da Irlanda, obteve grande influência escrevendo em francês –, mas certamente esses nomes “estrangeiros” têm garantido a diversidade da literatura produzida no país.

Mulheres de Paris

Sessenta anos depois da publicação de O Segundo Sexo, obra em que Simone de Beauvoir buscou refletir sobre a construção do lugar social da mulher, o que se vê é um grande vigor nas produções femininas realizadas na França. A tradução de Histórias Reais (Agir, 2009), de Sophie Calle, e A Outra Vida de Catherine M. (Agir, 2009), de Catherine Millet, é uma pequena amostra e remete a autoras, cujo tema é o universo feminino e que põem em cheque valores e condições atribuídos à mulher. Calle, além de lançar Histórias Reais em português, está com a exposição Cuide de Você, no Sesc Pompeia, até 7 de setembro.


Em ambos os trabalhos, é possível observar uma característica marcante da artista: a combinação entre fotografia e texto e a expressão das fronteiras entre verdade e ficção, entre realidade pura e arte. Cuide de Você parte do e-mail que ela recebeu de seu ex-namorado, o escritor Grégoire Bouillier, terminando o relacionamento. Histórias Reais, em suas próprias palavras, surge de uma série de histórias que ela criou para “seduzir” seu psicanalista. Mas quem pensa que ela se sente exposta ao levar partes de sua vida para as obras se engana. “Eu sou uma artista e não simplesmente uma mulher que sofre”, ironiza.


Catherine Millet define a colega como alguém que, “de maneira bastante arbitrária, instaura condições de histórias que vão acontecer. Ela provoca a realidade, enquanto eu me contento em viver e depois eu conto o relato do que passou. Eu me viro ao passado”, diz Catherine, contrapondo sua obra à de Sophie. “É a realidade que me interessa. Essa realidade que acho hoje uma das principais vocações da literatura”, define, citando a também escritora francesa Christine Angot, sua amiga, que segue a mesma linha de explorar a própria realidade nas obras.



Bienvenue en France
Caravana literária nas unidades do Sesc São Paulo aproxima o público brasileiro de autores e obras atuais de expressão francesa


O vermelho, azul e branco da bandeira francesa estiveram presentes em diversas unidades do Sesc São Paulo, em julho, a bordo da Caravana de Autores. A iniciativa permitiu a quem não pôde ir à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) tomar contato com os escritores e publicações que estão sendo lançadas no Brasil. David Foenkinos e Ollivier Pourriol dividiram a mesa do dia 1º, no Sesc Pinheiros. De maneiras diferentes, os dois autores estão ligados à indústria cinematográfica. Foenkinos atuando como roteirista, Pourriol usando as narrativas do cinema para explicar conceitos filosóficos. Mas, se para Pourriol o cinema aparece em primeiro plano, Foenkinos deixa claro que sua área é a literatura. “O cinema requer muita energia, precisa falar muito”, diz David Foenkinos. “Chega uma hora em que eu sinto uma enorme vontade ?de voltar para o quarto e escrever um livro”, brinca, ao falar de seu trabalho como roteirista. Durante o evento, foram apresentados os lançamentos dos dois autores: Quem Se Lembra (Rocco, 2009), de Foenkinos, e Cinefilô (Zahar, 2009), de Pourriol.
No dia 6, no Sesc Consolação, foi a vez de Atiq Rahimi, que contou sobre sua fuga do Afeganistão e sua entrada no mundo das artes na França, primeiro por meio do cinema e depois pela literatura – já que se sentia mais seguro em trabalhar sentimentos por meio de imagens “por não ser um falante nativo do francês”. A relação com o cinema pode ser atestada pela adaptação de sua obra Terra e Cinzas para as telas.
Catherine Millet apresentou-se no dia 7, na unidade Vila Mariana. Crítica de artes, fundadora da revista Art Press, é autora de um dos maiores sucessos da literatura francesa contemporânea, A Vida Sexual de Catherine M. (Agir, 2001), ela dá continuidade à exposição de suas relações amorosas em A Outra Vida de Catherine M. (Agir, 2009). Mas, se no primeiro livro a autora provocou escândalo ao contar sobre sua pulsão pelo sexo e pelas relações com pessoas desconhecidas, agora ela mostra um outro lado, uma espécie de antítese da Catherine libertária da primeira obra. No Sesc Pompeia, no dia 22, foi a vez do diretor de filmes de animação Michel Ocelot, premiado na França e em outros países pelo longa-metragem Kirikou e a Feiticeira (1998).
Quem perdeu a programação de julho ainda tem outras oportunidades. Até o final do ano, acontecem mais três caravanas de autores de língua francesa no Brasil. Basta ficar atento à programação no Bibliofrança (www.bibliofranca.org.br).