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Movimentos culturais

Os anos de 1960 e 1970 foram marcados por fatos que mudaram os rumos da sociedade. Aqui, a reação à ditadura militar brasileira particularmente por parte dos jovens. Lá fora, entre outros acontecimentos, a renúncia, também da juventude, ao estilo de vida norte-americano do pós-Segunda Guerra Mundial. E o que unia todas essas manifestações era sua grande porta-voz: a arte. Em artigos exclusivos, o doutor em filosofia Celso Favaretto e o doutor em educação João-Francisco Duarte Júnior discorrem sobre os anos que mudaram o mundo.

Os anos setenta e sua herança
por João-Francisco Duarte Júnior

Costuma-se afirmar que os setenta na verdade começaram antes, em 1968, ano em que o mundo assistiu a marcantes episódios de massa, como a revolta dos estudantes em Paris, a Primavera de Praga e os grandes festivais de rock. Para nós, brasileiros, foi também o ano em que a ditadura militar da época apertou barbaramente seus torniquetes, com a edição do AI-5 e a feroz repressão dele decorrente.

Contudo, antes disso um evento ocorrido em 1967 se afigura bastante significativo e determinante de muito daquilo que viria a acontecer no decênio seguinte: a gravação da canção All You Need is Love, dos Beatles, transmitida ao vivo pela televisão inglesa – a primeira transmissão mundial de TV via satélite. Pois, a partir daí, a instantaneidade das comunicações começou a unir mais e mais o planeta, rumo ao que o teórico das comunicações Marshall McLuhan já havia chamado de “aldeia global” (e que redundou, nos dias de hoje, na enorme rede mundial criada pela internet). Foi assim que se pôde, pela primeira vez, assistir ao vivo, em 1970, à Copa do Mundo de Futebol pela televisão, enquanto aqui no Brasil a tortura e o desaparecimento de oposicionistas cresciam assustadoramente. (Vale a pena assistir ao filme de Cao Hamburger, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, passado exatamente nesse ano de nosso passado.)

Esse incremento nas telecomunicações teve real importância para disseminar ideias e comportamentos, notadamente entre os habitantes dos países desenvolvidos e dos assim chamados “em desenvolvimento”. A contracultura e o movimento hippie, surgidos no final dos anos sessenta, puderam mais rapidamente espalhar suas ideias e percepções, gerando fenômenos políticos e estéticos, em especial entre largas parcelas da juventude de muitas nações. Assim é que, de certa forma, a primeira metade dos anos setenta pode-se considerar como um espraiamento de muitas tendências “sessentistas”, uma onda a quebrar na praia mais distante daquele local onde se originou.


Isso, todavia, com todas as miscigenações, reinterpretações e adaptações às culturas locais que a dinâmica de um processo como esse sempre comporta. No nosso caso, um processo acrescido da ferrenha atuação da censura governamental, com seus critérios que, no mais das vezes, beiravam a estupidez. Para burlá-la o jeito era, por conseguinte, seguir pelas margens, tangenciando temas políticos e existenciais e valendo-se fartamente das metáforas e das entrelinhas. Tais margens geraram, por exemplo, a “poesia marginal”, escrita por jovens poetas que reproduziam seus poemas em mimeógrafos e os vendiam em bares, universidades e espetáculos. E levou também à criação da chamada “imprensa nanica”: jornais e revistas produzidos por grupos de artistas e intelectuais cuja voz não tinha lugar na grande imprensa. Marcaram época publicações como Opinião, Movimento, Em Tempo, Coojornal, Lampião e Bondinho.


Mas, sem dúvida, foi o jornal O Pasquim aquele que melhor definiu o espírito daqueles anos, ocasionando uma verdadeira revolução na imprensa brasileira, na forma e no conteúdo. Vasto nas abordagens das matérias mais diversas e díspares, seu estilo irreverente demonstrou que não se precisava escrever de terno e gravata, e que a sagacidade, a picardia, o humor e o jogo de cintura do brasileiro cabiam muito bem em textos jornalísticos, por mais sérios que fossem os temas neles abordados. E foi de seu jeito seriamente satírico que esse hebdomadário (sinônimo de semanário e termo com que o Pasquim se referia a si próprio, ironizando a erudição) contribuiu sobremaneira para que manifestações artísticas, políticas e comportamentais se espalhassem entre nós de forma crítica e criativa, construindo a necessária resistência à rigidez da ditadura militar.


E convém assinalar que o desenvolvimento das telecomunicações veio também nos possibilitar maior integração nacional, através da telefonia e, principalmente, das grandes redes de televisão que então se construíam – mesmo que dóceis e fiéis aos desígnios do governo ditatorial. Começamos então a nos interessar por manifestações artísticas regionais, de norte a sul, seja em sua forma pura, seja através de releituras e de hibridismos com estilos importados, o que ocorreu marcadamente na seara de nossa música popular, que explodiu em xotes, baiões, milongas, carimbós e no “sambão” (um precursor do atual pagode), em grande parte executados com instrumentos eletrificados e disseminados através de gravações com qualidade técnica crescentemente melhor. Foi dessa mesma forma que o país começou a se ver nas telenovelas, mais e mais escritas por autores nacionais e passadas em território reconhecidamente brasileiro, outra herança que os anos setenta nos deixaram.


As aceleradas mudanças tecnológicas no campo das comunicações e a necessidade que o capitalismo tem de resistir e superar todo e qualquer movimento que lhe seja crítico e contrário (como a contracultura e o comportamento hippie) produziram talvez o legado mais marcante daqueles tempos: a transformação em mercadoria de tudo o que se apresentasse como alternativa e repúdio ao estilo de vida das gerações passadas e do consumismo então nascente. Assim é que a juventude e seus sonhos utópicos, suas novas propostas de vida, tornaram-se logo alvo da publicidade e da indústria. Se os jovens clamavam por liberdade e se vestiam despojadamente, nada melhor do que lhes vender a roupa apropriada sob o slogan “liberdade é uma calça velha e desbotada”. Os publicitários e os industriais haviam descoberto um novo filão: era possível vender revolta em produtos meticulosamente planejados através de pesquisas de mercado – outro aperfeiçoamento levado a cabo naqueles tempos. O desdobramento lógico dessa descoberta seria, nos anos oitenta, a incorporação da infância como alvo das propagandas publicitárias. Coisa que hoje vem sofrendo discussões e fiscalizações por inúmeras entidades de defesa das crianças.


Indubitavelmente, os anos setenta são fruto de uma somatória de criatividade, desejos, tendências, vislumbres, repressão e oportunismos. Foram os anos em que isso que ora chamamos de sociedade de consumo, ora de sociedade de massas, implantou-se com desenvoltura e vigor. A partir daí, todos os mais íntimos recônditos de nossa vida pessoal vieram a ser vasculhados e pesquisados com o intuito de produzir e nos vender produtos mirabolantes, os quais nos prometem a felicidade e o paraíso a preços módicos e com crediários convidativos.
De acordo, porém, com a psicanalista Maria Rita Kehl, em seu ensaio A Razão Depois da Queda (publicado no livro Tempo do desejo, da Editora Brasiliense, organizado por Heloisa R. Fernandes), esses anos que começaram no final dos sessenta nos legaram uma herança inestimável. A proposta hippie de uma vida em harmonia com a natureza mostra-se o único sonho utópico realmente viável, factível e que se revela mais e mais urgente para a espécie humana: a de um equilíbrio ambiental, de uma relação amorosa e estável com o planeta. Aquilo que era tão-só um motivo para canções, poemas e manifestos hippies, ou para as obras de arte nas quais era abordado – mesmo que de passagem, feito no musical Hair –, hoje é assunto de pesquisas científicas, do trabalho de ONGs e de programas governamentais planeta afora.


Os anos setenta, herdeiros dos sessenta, continuaram, mesmo que por pouco tempo, a sonhar com uma vida qualitativamente melhor e mais sensível para todos nós. Ainda que os oitenta e noventa viessem nos entupir com seus delírios yuppies de propriedade e de poder, mesclados a uma alta dose de individualismo e polpudas contas bancárias, há que se reconhecer agora, dentre as muitas heranças que aqueles anos nos deixaram, ao menos esta: a de um vigor sempre renovado para uma luta em prol da vida, a qual está inexoravelmente ligada à natureza. 

“Indubitavelmente, os anos setenta são frutos de uma somatória de criatividade, desejos, tendências, vislumbres, repressão e oportunismos. Foram os anos em que isso que ora chamamos de sociedade de consumo (...) implantou-se com desenvoltura e vigor”


João-Francisco Duarte Júnior é doutor em educação, professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e publicou, entre outros livros, O Que é Realidade (Brasiliense, 1984), O Que é Beleza (Brasiliense, 1991), Itinerário de uma Crise: A Modernidade (UFPr, 1997) e O Sentido dos Sentidos: A Educação (do) Sensível (Criar Edições, 2001).


Cultura e comportamento nos anos 60-70
por Celso Favaretto
Podem-se retratar três momentos na cultura brasileira recente em que as ideias de independência e de comportamento são centrais: o tropicalista, do final dos 1960; o contracultural, da primeira metade dos 1970; e o da cultura alternativa do final de 1970 início de 1980. Apesar de as diferenças que apresentam, em termos de modos de se efetivarem em contextos históricos diversos, essas produções mantiveram uma certa continuidade: mudaram as cenas, mas o comportamento libertário desenvolveu-se através de inúmeros caminhos, com matizes que ora acentuavam a oposição a regramentos sociais e imperativos políticos, ora diretamente as vivências individuais e de grupos. Irreverência, tendências anarquistas e uma certa marginalidade foram as marcas dessas produções, que tinham nas manifestações artísticas, especialmente a música, o ponto de convergência.

Se os anos de 1960 foram tão significativos e hoje alvo de tanto interesse, é porque neles se promoveram transformações profundas, nas artes, na produção cultural, na política e nos comportamentos. Evidentemente, o tropicalismo ?não foi o seu único feito, mas foi o seu momento crítico mais instigante; momento em que um formidável florescimento cultural e artístico respondeu à altura ao golpe de 1964 e aos imperativos das transformações culturais em curso em toda parte. É o momento em que a emergente “cultura jovem” se manifesta contra os padrões morais tradicionais, contra as instituições escolares, contra as guerras, contra os regramentos da sexualidade etc. Especialmente, é o momento que entra em cena o conflito entre a vida aberta, já explorada pelos sistemas de comunicação de massa e o fechamento institucional do regime político.

Antes dos anos de 1960, o tema da mudança dos comportamentos dos jovens era um assunto muito bem localizado: a única imagem que se tinha era proveniente das atitudes angustiadas de rebeldia dos beatniks e da “juventude transviada” traduzida no cinema americano, como em filmes estrelados por James Dean e Marlon Brando, especificamente, Juventude Transviada e Vidas Amargas. O aparecimento do rock de Elvis Presley, que detonou ruidosas manifestações e comportamentos juvenis, serviu para afirmar o rótulo: juventude transviada era aquela, ao mesmo tempo angustiada e barulhenta, que rompia com a imagem do jovem idealista que caminhava para o futuro decididamente, segundo os padrões já estabelecidos, cujas repercussões no Brasil foram acentuadas.

Entretanto, aqui, transformações culturais específicas começam a se dar no início da década de 1960. O mundo idílico gerado pelo otimismo dos anos de 1950 começa a se quebrar. A miséria, o analfabetismo, a exclusão social, a dominação imperialista salta à cena abruptamente, compondo a imagem de um país “subdesenvolvido”, injusto, culturalmente atrasado. A renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e a ascensão de João Goulart, as tentativas de reformas sociais, o sentimento nacionalista tomam conta do país. A mobilização social tem na juventude uma força de referência, principalmente como realizadora dos projetos de cultura popular, de alfabetização, de conscientização das camadas populares. Em 1962, a UNE cria o CPC (Centro Popular de Cultura) que atuaria em vários lugares do país com um projeto claro de intervenção política para o qual as manifestações artísticas seriam de grande utilidade. Articulando uma linguagem emotiva, de denúncia, as produções do CPC formularam também a imagem de uma juventude comprometida com as questões políticas e sociais. O jovem, particularmente o estudante universitário, não era mais aquele que marchava para o futuro segundo as promessas do país “em desenvolvimento”; seria aquele que comprometia o seu destino com o do país. Nasce a imagem do “jovem participante”, indicando um outro comportamento, individual e social.

O surgimento do tropicalismo em 67 provocou mudanças na música popular, colocando em discussão os limites da eficácia da arte de denúncia. A complexidade do tropicalismo provém de sua intervenção nos modos de fazer canção no Brasil, pela explicitação da função crítica da canção. Um conjunto sincrético de imagens disparatadas que, referindo-se à “realidade brasileira”, ao mesmo tempo a estilhaçava. Mas não foi só pelas inovações musicais que o tropicalismo apareceu como transgressão; também nos comportamentos, pelo modo como os artistas se apresentavam: roupas extravagantes, gestos provocativos e mesmo obscenos, cabelos desgrenhados compunham uma linguagem de rebeldia e de desafio. As canções manifestavam crítica à sociedade de consumo misturada à crítica da moral, dos costumes, dos valores pequeno-burgueses; crítica das posições políticas consagradas; utilização de resíduos culturais populares e eruditos formando uma mistura aparentemente caótica, na verdade construída.
Em 1967-1968, quando o tropicalismo desenvolvia a sua breve e contundente trajetória, chegavam ao Brasil os ecos da atividade do underground norte-americano. ?Algumas de suas práticas foram imediatamente absorvidas pelo tropicalismo, como um dos elementos de sua mistura antropofágica. Mas, somente a partir de 1969, quando com o AI-5 o movimento tropicalista se extinguira, começa a tomar corpo uma “contracultura”, que, aliás, vai tomar a atividade tropicalista uma das referências de suas ações. A ideia de marginalidade é agora mais explícita, pois implica sair do sistema. A ênfase na ritualização, no culto do corpo, nas drogas, no orientalismo, na vida comunitária, na sexualidade aberta e no rock aparece como o caminho para a expressão do inconformismo dos jovens. Opondo-se à sociedade tecnológica, ao controle social e à moral familiar, pretendia-se renovar a vida por meio de novas formas de sociabilidade grupal, as comunidades. A contracultura desenvolve-se na primeira metade dos anos de 1970, aparentemente desligando-se da problemática política dos 1960. A ênfase agora não estava mais na relação arte-política, mas na relação arte-vida: a oposição ao sistema era mais genérica e pretendia-se mais radical porque implicava o abandono das relações produtivas, do processo educacional tradicional, da política partidária, da cultura estabelecida. A contracultura propunha a ideia de desculturação e a proposta de um novo início, ligado às formas simples de vida, ao artesanato, à atenção ao corpo, ao prazer etc.

Romântica, a contracultura não deixava de ser também uma reação à repressão dos anos de 1960, enquanto se apresentava como sintoma da desilusão quanto aos projetos mobilizadores da década. Indicava desencanto quanto às possibilidades de se mudar a sociedade pelos meios políticos e culturais consagrados, acreditando ingenuamente nas pequenas revoluções individuais e das células comunitárias. De qualquer forma, embora rapidamente recapturados pelo sistema, os comportamentos contraculturais aprofundaram algumas indicações tropicalistas no que tange aos comportamentos. Roupas, barbas, cabelos, manifestações artísticas, relacionamento afetivo, objetos artesanais, religiosidade oriental, drogas, vida natural compunham a imagem de um comportamento aberto, de reinvenção da vida. Disso tudo, sobraram os resíduos, muitas vezes tornados objetos de consumo.
Encerrado, talvez por exaustão das experiências, talvez pela recuperação do sistema, o período da “curtição”, na segunda metade dos 1970 a ideia de marginalidade perde a força. Formam-se grupos diversificados, alguns de egressos das práticas contraculturais e tropicalistas, que através de uma poesia dita “marginal” – que reagia ao primado das experimentações vanguardistas e de produções em teatro, cinema, música e artes visuais –, constituem núcleos de “produção independente”. Trabalhando com toda a liberdade conquistada pelas experiências tropicalistas e contraculturais, esses grupos afrontam agora a possibilidade de fazer uma intervenção organizada, ainda que em circuito paralelo ao da cultura convencional. É o momento de surgimento de bandas, grupos de teatro e outros que formam um amplo e variado movimento de cultura alternativa prolongado até os início dos anos de 1980.

“Irreverência, tendências anarquistas e uma certa marginalidade foram as marcas dessas produções [dos anos de 1960 e 1970], que tinham nas manifestações artísticas, especialmente a música, o ponto de convergência”



Celso Favaretto é doutor em filosofia, livre-docente em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Tropicália: Alegoria Alegria (Ateliê, 2008) e A Invenção de Hélio Oiticica (Edusp, 2000).