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O que se pode fazer com tanto lixo?

O país tem tecnologia para tratamento, mas a maior parte do material é descartado

CELIA DEMARCHI


Esteira transportadora: produção de cimento
Foto: Divulgação

Não faltam tecnologias para o Brasil enfrentar um de seus maiores desafios: destinar adequadamente os cerca de 113 milhões de toneladas de resíduos sólidos que gera a cada ano, dos quais 95% acabam em aterros, como lixo. Também não faltam empresas preparadas e dispostas a investir e faturar com tratamento e processamento de detritos. Há, porém, um outro consenso: esse mercado só deslancha depois que o país aprovar uma política de resíduos sólidos, assunto que debate há pelo menos 16 anos – desde 1993, quando o Congresso recebeu o primeiro projeto de lei com o objetivo de instituí-la, de autoria do então deputado Fabio Feldmann. "Falta uma estratégia nacional que paute os investimentos e lhes dê segurança", diz Diógenes Del Bel, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (Abetre).

O Ministério do Meio Ambiente enviou ao Congresso Nacional em 2007 um projeto de lei de política para resíduos sólidos que, como os anteriores, todos propostos pelo Legislativo, não está emplacando. As indústrias apregoam que é "burocrático". O fato, porém, é que estabelece conceitos, como o de logística reversa – pelo qual o produto consumido volta à cadeia produtiva –, que implicam a criação de estrutura de recolhimento amplamente amparada na indústria e no comércio, como acontece nos sistemas adotados em países desenvolvidos, a exemplo da Alemanha, pioneira nesse tipo de legislação.

Por enquanto, o setor representado pela Abetre trata, incinera ou manda para aterros apropriados parcela pequena dos resíduos industriais: somente 6 milhões de toneladas em 2007, entre sólidos e líquidos (e outros 6,1 milhões de toneladas de resíduos urbanos). Esse total equivale a pouco mais de 10% do volume gerado pela indústria brasileira por ano – algo em torno de 50 milhões de toneladas (os restantes 63 milhões de toneladas referem-se a detritos urbanos) –, mas é o dobro da quantidade que seguia para essas empresas em 2004.

O mercado começou a se desenvolver, segundo Del Bel, a partir da promulgação da Lei de Crimes Ambientais (9.605/98), que instituiu penalidades severas aos infratores, entre as quais até quatro anos de prisão e multas que podem chegar a algumas dezenas de milhões de reais. Bem antes, em 1981, é verdade, o país já havia sancionado a Política Nacional do Meio Ambiente (lei 6.938), que também responsabiliza e multa o poluidor. Desde então, porém, ao rigor da legislação somaram-se mais fiscalização e a crescente tomada de consciência da sociedade acerca da necessidade de preservar o meio ambiente – fatores que têm influenciado as decisões das empresas.

Segundo a Abetre, a previsão de ampliação no curto prazo da demanda pelos serviços das cerca de 160 empresas de tratamento instaladas atualmente no Brasil é de 10% ao ano. Até a chegada da atual crise financeira, ela crescia bem mais. Na Veolia Serviços Ambientais, por exemplo, aumentava 30% ao ano, segundo Plínio Akamine, superintendente comercial da companhia de origem francesa, fundada há 150 anos. Além de recuar em consequência da retração da produção das fábricas – que assim estão gerando menor quantidade de resíduos –, o mercado se comprime porque as indústrias tendem a adiar decisões que impliquem custos durante esse período de incertezas.

Dos restos industriais, para piorar, não se sabe quanto equivale a resíduos perigosos – segundo algumas estimativas, seriam gerados em torno de 2,7 milhões de toneladas por ano. As empresas especializadas fazem destinação adequada de aproximadamente 1,6 milhão de toneladas desse tipo de resíduo (26% do total de material que captam por ano, segundo pesquisa da Abetre).

Com ou sem crise, a maior parte do refugo – como denunciam os números parcos relativos à destinação apropriada – acaba misturada às águas dos rios, fica "estocada" nas indústrias, inclusive impregnando o solo, ou vaga disfarçadamente por caçambas até chegar a aterros inadequados ou lixões, destino também, segundo Del Bel, de metade dos detritos urbanos (a outra metade segue para aterros sanitários em sua quase totalidade, já que o volume de coleta seletiva é ínfimo no Brasil, apesar do bom desempenho de segmentos como o de latas de alumínio e garrafas PET).

A imensa maioria das empresas, universo que inclui milhões de pequenos empreendimentos, formais e informais, ainda não se dispõe a pagar pela retirada e pelo encaminhamento seguro de seus resíduos. O serviço pode custar de centavos a mais de R$ 1 mil por tonelada, conforme o tipo de material e de destinação, como informa Akamine.

No caso de resíduos sólidos, ainda de acordo com o executivo, os geradores pagam mais caro. Por causa do volume, esse material implica altos custos em transporte, armazenamento e análises, além de exigir trituração e preparo antes de seguir para algum tipo de tratamento, aterros (a opção mais barata), coprocessamento ou incineração. Esta última alternativa é a mais onerosa, uma vez que não possibilita qualquer tipo de ganho, seja de matéria-prima seja de geração de energia, como é o caso do coprocessamento, feito na indústria de cimento desde os anos 1990 e em franco crescimento.

Tecnologias

A grande novidade no Brasil, entretanto, apesar da falta de uma política nacional de resíduos sólidos, é a manufatura reversa, que propõe o reaproveitamento de pelo menos 90% dos materiais constituintes dos artigos descartados. Essa indústria foi atraída, principalmente, pelo programa do governo federal que promete substituir 10 milhões de refrigeradores antigos da população de baixa renda, a partir deste ano, com múltiplos objetivos: dar destino ambientalmente adequado ao gás CFC (clorofluorcarboneto) embutido nas velhas geladeiras, aumentar a eficiência no consumo de energia e estimular o mercado interno.

A Essencis Soluções Ambientais – fruto de parceria entre os grupos Solví e Camargo Corrêa – uniu-se à alemã SEG, líder em reciclagem de refrigeradores na Europa, dando origem à Essencis Manufatura Reversa, que está investindo € 37 milhões com a intenção de liderar a disputa por esses eletrodomésticos.

A empresa anuncia que ampliará sua atual capacidade de reciclagem de 100 mil para 250 mil geladeiras por mês, a partir deste ano ainda. Ou seja, a companhia (que domina tecnologia de manufatura reversa também para eletroeletrônicos, pilhas, baterias e lâmpadas fluorescentes) assegura que, sozinha, poderá dar conta de 3 milhões de refrigeradores por ano – quase um terço do volume que o governo pretende tirar de circulação nos próximos anos.

A tecnologia da Essencis – a empresa garante – possibilita eliminar 99,5% do CFC contido no sistema de refrigeração das geladeiras antigas e aproveitar no mínimo 80% dos materiais que as constituem, como metais e plásticos, que depois voltam para as linhas de produção como matérias-primas. "A cada dia estudamos novas tecnologias e esperamos atingir um índice de reciclagem superior a 90% nos próximos meses", diz Roberto Lopes, diretor superintendente da divisão de manufatura reversa da companhia.

Toda a sucata ferrosa separada vai para a Gerdau, um dos principais clientes da Essencis, que até agora processou em torno de 10 mil geladeiras, todas no Paraná e em Santa Catarina. Nesses estados, os fabricantes aderiram espontaneamente à manufatura reversa, segundo o executivo, que no entanto não revela quais seriam eles. Lopes conta que a Essencis está fechando acordos semelhantes com indústrias de outros estados, São Paulo em especial.

As máquinas de triturar geladeiras da companhia foram montadas sobre caminhões para que possam ser dirigidas, conforme a necessidade, para cada um dos depósitos da empresa em Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Pernambuco e Goiás (os dois últimos devem ser abertos em julho). A logística de armazéns permite abranger cerca de 70% dos centros de consumo do país, de acordo com Lopes.

Já o coprocessamento é hoje a tecnologia que absorve o maior volume de resíduos sólidos industriais com destinação adequada, excetuando-se o que vai para aterros (75%), inclusive porque se trata de um bom negócio para as cimenteiras. O sistema implica a queima de um blend de resíduos em fornos de clínquer, principal componente do cimento. Desse modo, a mistura substitui parte da matéria-prima e do combustível (coque de petróleo ou carvão) que os alimenta.

Segundo a Associação Brasileira de Cimentos Portland (ABCP), são 35 as fábricas de cimento hoje autorizadas a coprocessar, de 48 com produção integrada a fornos. Em média, elas substituem por resíduos 20% do combustível consumido no preparo do clínquer. Tal fatia equivale a cerca de 5% do consumo desse tipo de energia da indústria brasileira, estimada, também de acordo com a entidade, em 154 mil toneladas. Com isso, o setor ainda reduz suas emissões de dióxido de carbono: "A indústria de cimento brasileira emite de 600 a 700 quilos de CO2 por tonelada de cimento produzido, uma das menores taxas do mundo", afirma Yushiro Kihara, gerente de Tecnologia da ABCP.

Por meio desse método, as cimenteiras eliminam de 16% a 18% dos 6 milhões de toneladas de resíduos industriais que passam pelas empresas especializadas por ano, ou algo em torno de 1 milhão de toneladas. Mais de 90% dos detritos alimentam fornos das fábricas de dois dos dez grupos que atuam no ramo – Votorantim e Lafarge/Cimpor –, de acordo com Akamine, da Veolia. Esta capta resíduos de cerca de 400 clientes e transforma-os em blend, que é repassado a seis cimenteiras, entre as quais as daqueles grupos.

Até chegar aos fornos de clínquer, os resíduos, inclusive perigosos, como madeira e solo contaminados, borra de petróleo, solventes, pneus, aparas de plástico e produtos sem conformidade com as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), passam por um longo processo, desde o recolhimento. Os materiais são analisados em laboratório para que se identifiquem as substâncias que deverão integrar os lotes em proporções exatas, a fim de assegurar potencial calorífico eficiente e quantidades adequadas de metais a ser agregados ao clínquer, de modo a não comprometer a qualidade do produto. Por sua vez, os fornos das cimenteiras são testados e avaliados (para eliminar riscos de poluição e à saúde dos trabalhadores) e só entram em operação com autorização dos órgãos ambientais.

São Paulo "exporta"

A adesão ao coprocessamento vem crescendo em toda a América Latina, acompanhando tendência já consolidada em boa parte dos países desenvolvidos, segundo a ABCP. Adotado nos anos 1970 nos Estados Unidos, na Europa e no Japão e regulamentado pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), por meio da resolução 264/2000, o coprocessamento, no entanto, praticamente não existe no maior e mais industrializado estado da federação: São Paulo.

As indústrias paulistas "exportam" seus refugos para os demais estados. Segundo Akamine, a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), do governo estadual, libera a queima de pneus e resíduos de alumínio em algumas fábricas, mas separadamente. A Veolia, diz ele, abastece a única indústria cujo forno utiliza resíduos líquidos em São Paulo, da Companhia de Cimentos Ribeirão Grande, do grupo Votorantim, em Ribeirão Grande. A Eco-Processa, nascida de parceria entre a Lafarge e a Cimpor do Brasil para atender à demanda de coprocessamento dessas cimenteiras, alimenta só uma fábrica com blend de detritos em São Paulo, da Cimpor, em Cajati, que utiliza exclusivamente pneus.

"A Cetesb poderia liberar o coprocessamento sob termos de responsabilidade e fiscalizar", sugere Akamine, informando que o estado dispõe de apenas três aterros industriais. "O processo de licenciamento em São Paulo é mais complicado que nos demais estados", diz Francisco Leme, diretor superintendente da Eco-Processa. Segundo ele, depois da reciclagem, o coprocessamento é a alternativa mais adequada ambientalmente, pois não gera um segundo resíduo. Sozinha, a Eco-Processa é responsável pela destinação de 275 mil toneladas de refugos industriais por ano, das quais, atualmente, 100 mil toneladas referem-se a restos de pneus, de acordo com o executivo. Os fornos que consomem o combustível alternativo, porém, ficam em fábricas de Alagoas, Goiás, Paraíba, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A Cetesb não quis comentar o assunto.

Um dos benefícios mais comemorados do coprocessamento é, aliás, o fato de o sistema possibilitar a eliminação de pneus. As cimenteiras recebem atualmente 80% dos pneus inservíveis coletados no país – ou 25,6 milhões dos 32 milhões de unidades (160 mil toneladas) captadas e destinadas em 2008, de acordo com dados da Reciclanip, entidade criada pelos fabricantes para se responsabilizar pelo pós-consumo do produto. Para este ano a Reciclanip prevê coleta de 63 milhões de pneus (315 mil toneladas). O número corresponde a cerca de 63% dos pneus que equipam a atual frota nacional em circulação, de 25 milhões de veículos.

A Eco-Processa também está na vanguarda no que respeita ao coprocessamento de resíduos de aterros urbanos. Por meio de parceria com a prefeitura de Cantagalo, no Rio de Janeiro, está extraindo, desde o início do ano, 30 toneladas de resíduos por mês do aterro municipal, que manda para os fornos da Lafarge. O volume, baixo, equivale a 10% do que a cidade produz e a 0,25% das 12 mil toneladas de detritos industriais e biomassa empregados nas três fábricas da cimenteira. "A cidade é pequena, com apenas 20 mil habitantes, mas representa um modelo para entrarmos nesse nicho", diz Leme. Ele lembra que a localidade foi escolhida para o primeiro projeto do gênero do grupo porque seu sistema de coleta e separação de lixo é avançado, com aproveitamento de praticamente todo o material reciclável e orgânico, que segue para compostagem. Assim, o que vai para os fornos da cimenteira são detritos sem outra serventia.

O uso de resíduos urbanos em coprocessamento é uma tendência mundial, à qual outras cimenteiras do Brasil, além da Lafarge, estão se preparando para aderir. Contudo, por mais portentoso que seja, o setor jamais daria conta de parte realmente substancial de todos os resíduos, industriais ou urbanos, gerados no país, levando-se em conta que são pelo menos 113 milhões de toneladas; o potencial de coprocessamento das cimenteiras é de no máximo 2,5 milhões de toneladas de detritos por ano, segundo Del Bel, da Abetre: "Por enquanto, a melhor solução para o Brasil são mesmo os aterros sanitários".


Ainda falta tratamento

Os aterros industriais – 72 ao todo no país – recebem a maior parte (75%) dos 6 milhões de toneladas de detritos que as empresas especializadas em destinação adequada recolhem no mercado, de acordo com dados da Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (Abetre).

A opção pelo tratamento vem crescendo, segundo Diógenes Del Bel, presidente da entidade. Contudo, por enquanto tem pouco impacto: apenas 180 mil toneladas, ou 3% do total dos resíduos industriais recolhidos e adequadamente encaminhados, a cada ano, passam por tecnologias mais sofisticadas, como tratamento biológico (baseado no consumo da matéria orgânica por bactérias) e dessorção térmica (usada para recuperar solos contaminados com hidrocarbonetos).

Outros 3% são incinerados por 22 empresas que terceirizam seus equipamentos em todo o Brasil, cinco delas no estado de São Paulo – Basf, Silcon, Clariant, Essencis e ABL. "A incineração é muito pequena também devido à falta de uma política para resíduos sólidos, pois não se pode investir em alternativas como essa sem que haja uma diretriz", explica Del Bel.

 

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