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Onde o país se reveste de excelência
O Brasil é o segundo maior produtor e consumidor mundial de pisos e azulejos
ALBERTO MAWAKDIYE
Arte PB
A indústria brasileira de revestimentos cerâmicos está eufórica com a decisão do governo federal de entregar cerca de 1 milhão de moradias populares, previstas no programa Minha Casa, Minha Vida, já dotadas de pisos e azulejos na cozinha e no banheiro.
O otimismo se deve, em parte, ao volume de revestimentos cerâmicos que será consumido no programa – na ponta do lápis, algo em torno de 60 milhões de metros quadrados, quantidade nada má em tempos difíceis como os de agora. Fato é que a crise acertou em cheio o setor: vários fabricantes, principalmente paulistas, tiveram de paralisar linhas de produção ou mesmo deixar de funcionar por falta de encomendas, e a estimativa, este ano, é que essa indústria cresça não mais que 2,3%, diante de 9,3% em 2008.
Há, com efeito, outro motivo para satisfação. Por décadas, os empresários do setor tentaram encaixar seus produtos na área habitacional popular, sem grande sucesso, devido principalmente ao temor dos encarregados dos programas de que o uso mais intensivo das cerâmicas tornasse as unidades muito caras.
Nessa área, eles tiveram sempre de se contentar com os discutíveis programas habitacionais voltados para a classe média, que vicejaram principalmente durante o "milagre econômico" dos anos 1970, sob os auspícios do extinto Banco Nacional da Habitação (BNH), que de qualquer forma deram um bom impulso à produção do setor. Muitas novas empresas foram abertas naquele período.
O anúncio do governo federal deixa entrever que essa resistência – já enfraquecida, aliás, pela decisão tomada no ano passado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do governo de São Paulo, de licitar 1 milhão de metros quadrados de revestimentos para suas novas unidades populares – está em vias de terminar.
"Já não era sem tempo", comemora o superintendente da Associação Nacional dos Fabricantes de Cerâmica para Revestimento (Anfacer), Antonio Carlos Kieling. "Obviamente, o emprego de revestimentos cerâmicos fará aumentar o custo das unidades, embora nem tanto quanto se imagina, já que hoje produzimos linhas de boa qualidade com preços mais em conta. Contudo, as vantagens que a cerâmica oferece também são óbvias: durabilidade, higiene, versatilidade, facilidade de manutenção e, no longo prazo, o retorno garantido do investimento se considerada a relação custo-benefício."
Já há quem comente no mercado, inclusive, que, para a indústria cerâmica, a aceitação do produto pela área de habitação popular terá tanto significado como o lento mas inexorável avanço do produto no mercado de escritórios, cada vez mais visível de uma década para cá. Entrar nesse nicho também foi um osso duro de roer para os fabricantes.
De fato, a não ser nas áreas molhadas, os empreendedores tradicionalmente preferiam revestir seus prédios com carpete ou assoalho de madeira, no caso dos pisos, e pedras ou tinta, quando se tratava das paredes internas e externas. Hoje, a cerâmica já é uma real opção de revestimento para aqueles que atuam nesse segmento. O arquiteto baiano Fernando Peixoto, por exemplo, não abre mão do uso criativo das cerâmicas nas fachadas dos edifícios comerciais que projeta, conhecidos pelo arrojo. E não está sozinho nessa opção – existem muitos outros profissionais fazendo o mesmo através do país.
Com a também crescente utilização de lajotas e azulejos pela construção habitacional de alto padrão e pelos estabelecimentos industriais, educacionais e hospitalares, além da paixão que a classe média passou a devotar ao produto – já é até difícil encontrar, principalmente em regiões mais quentes como o nordeste e o sudeste, casa ou apartamento sem revestimento cerâmico na sala, nos quartos ou quintal, ou mesmo em todas essas áreas –, o programa Minha Casa, Minha Vida como que completa um círculo virtuoso de expansão do setor. Agora, não há um único mercado onde a indústria não esteja presente e competindo em igualdade de condições com outros materiais.
Portfólio
Diga-se que essa impressionante ocupação de espaços – os 94 fabricantes venderam no mercado brasileiro, em 2008, quase 610 milhões de metros quadrados de revestimentos, o que consolidou o Brasil como o segundo maior produtor de cerâmica de revestimento do planeta e o segundo maior consumidor, em ambos os quesitos ficando atrás somente da populosa China – não poderia acontecer se a indústria não tivesse produtos a oferecer para uma demanda tão diversificada.
Pois tem, e de sobra. É quase impossível levantar a quantidade de modelos, texturas, cores e desenhos presentes nos revestimentos cerâmicos brasileiros, em formatos que vão desde as pequenas pastilhas a placas de grandes medidas, para todas as exigências e aplicações imagináveis. Há no mercado até lajotas exclusivas para garagens e calçadas, ou para restaurantes e chão de fábricas, sem falar dos revestimentos cerâmicos antiderrapantes ou antibacterianos para uso doméstico e dos caros e sofisticados porcelanatos e pisos cimentícios ecologicamente corretos.
Os preços e a qualidade intrínseca dos revestimentos também variam quase que ao infinito, de modo a atingir todos os bolsos, e novos produtos inundam o mercado ano após ano, estratégia que tem servido, de passagem, para bloquear um avanço mais consistente dos onívoros chineses no mercado brasileiro – é claro que eles também estão aqui vendendo suas cerâmicas. Por conta desse esforço, o Brasil subiu, de uma década para cá, várias posições no ranking do consumo per capita de revestimentos cerâmicos, e hoje se encontra num patamar bastante razoável, em se tratando de um país ainda relativamente pobre.
O consumo tem flutuado em torno dos 2,5 metros quadrados por habitante, quase o dobro do da China (1,4), mas ainda bem menor que o da Espanha (8,3) e de outros países europeus, como Portugal e Itália, que de qualquer forma são tidos como as pátrias do azulejo e dos revestimentos cerâmicos em geral.
"Sem dúvida, a indústria cerâmica brasileira parece ter atingido a maturidade tecnológica e comercial", diz Luis Fernando Bueno, diretor de operações da incorporadora Gafisa, uma das maiores do país, e coordenador da Comissão de Vedações e Acabamento do Comitê de Tecnologia e Qualidade do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon/SP). "Não é à toa que vem crescendo o emprego desse material: tanto o cliente individual quanto o técnico encontram no mercado praticamente o que quiserem, nas condições que desejarem. Hoje, dentro da cadeia da construção civil, trata-se de um dos setores mais dinâmicos e avançados."
O forte entrincheiramento no mercado doméstico também está permitindo aos fabricantes aventurar-se na conquista de nichos cada vez maiores no mercado externo. Essa operação vem sendo tão bem-sucedida, aliás, que o Brasil já se tornou o quarto exportador mundial de pisos e azulejos, logo atrás de China, Itália e Espanha. O revestimento cerâmico é hoje um dos principais cartões de visita do país no segmento industrial de médio/alto valor agregado, ao lado dos automóveis, máquinas operatrizes e celulares.
Atualmente, o Brasil exporta cerca de 20% do que produz para mais de 130 países em todos os continentes, com o volume maior seguindo para os Estados Unidos e a América do Sul. Perto de 40 empresas – pouco menos da metade do total – já são ativas no mercado externo, embora mais de 70% das vendas estejam nas mãos dos dez maiores fabricantes, em função, naturalmente, da escala de produção e do bolso mais fundo.
Abertura
O curioso em toda essa história é que a "partida" da indústria brasileira de revestimentos cerâmicos na direção da excelência é incrivelmente recente, tendo-se em vista que a existência do setor no país remonta a quase dois séculos, com a produção inicial de tijolos e telhas de cerâmica vermelha, e mais tarde, no raiar e na primeira metade do século 20, respectivamente, de ladrilhos hidráulicos e dos primeiros pisos e azulejos.
Na verdade, poucos segmentos industriais brasileiros conseguiram se sair tão bem nos tempos duros da abertura econômica dos anos 1990 como o setor de revestimentos cerâmicos. Impulsionados pela redução drástica das alíquotas de importação, os fabricantes deflagraram um programa de modernização quase sem paralelo na história da indústria brasileira, com a exceção, talvez, dos segmentos automotivo e siderúrgico.
O processo consistiu, principalmente, na importação de maquinário italiano (o melhor do mundo nessa área) – que teve a triste contrapartida de praticamente liquidar os sonhos dos fabricantes de máquinas brasileiros de construir uma indústria competitiva nesse nicho – e na adoção de tecnologia e modelos de gestão importados da Espanha e também da Itália, países que se encontram no topo na área de revestimentos cerâmicos.
Passou-se ainda a investir mais em design e modelos próprios – antes calcados, talvez, um pouquinho demais no que se fazia na bella Italia – e implantaram-se institutos para elevar o índice de certificação, essencial para a exportação. É a época do surgimento de entidades como o Centro Cerâmico do Brasil (CCB), sediado em São Paulo, e da Agência para o Desenvolvimento do Design Cerâmico (A2D), em Santa Catarina – esses dois estados, aliás, sempre foram os mais importantes do país na área cerâmica, e deles sai a maior parte da produção nacional e, por tabela, do que é embarcado para o mercado externo.
Os resultados foram magníficos. A produção brasileira de revestimentos cerâmicos cresceu entre 1990 e 2001 nada menos que 274% e a demanda do mercado brasileiro, 264% no mesmo período. A produtividade subiu 20% entre 1995 e 2001. Já o número de certificações em relação ao volume fabricado se ampliou 577% entre 1994 e 2001, o que comprova a preocupação quase desesperada da indústria em também melhorar a qualidade do produto, de modo a abafar a concorrência de outros materiais.
"Realmente, o setor brasileiro de revestimentos cerâmicos deu um incrível salto de qualidade e produtividade a partir da década de 1990", relembra o arquiteto paulista Henrique Cambiaghi, ex-presidente e hoje membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (Asbea), e que também costuma usar em profusão os revestimentos cerâmicos em seus projetos comerciais e residenciais. "É claro que existem ainda alguns gaps. A indústria poderia avançar um pouco mais na consolidação de um design genuinamente brasileiro e ainda há pouca preocupação com a coordenação modular, ou seja, a maioria das peças é feita até hoje com medidas aleatórias, algo que já foi abandonado faz tempo na Europa, por exemplo."
De acordo com Cambiaghi, o ideal seria que toda a indústria adotasse formatos à base de múltiplos ou submúltiplos de 10 centímetros, um padrão quase universal (na Inglaterra e nos Estados Unidos vigora a polegada) e que torna o projeto e o assentamento das peças muito mais simples e racionais. Pouquíssimas empresas já aderiram à metodologia. "Sem os módulos, os assentadores são obrigados a cortar as peças para encaixar umas nas outras, o que leva a um enorme desperdício", explica. "Há obras em que, de cada três peças, uma é desperdiçada. Trata-se de uma irracionalidade que prejudica inclusive o aumento do volume de exportação."
O arquiteto reconhece que não é o simples comodismo ou a má vontade o que faz a indústria de revestimentos trabalhar fora dos parâmetros métricos mais compartilhados internacionalmente. De fato, há, nas unidades fabris brasileiras, poucos fornos disponíveis e um excesso de linhas e modelos para conformar, e a única maneira de cumprir o cronograma é dividir os fornos de modo a abrigar a maior quantidade possível de peças diferentes, da melhor maneira possível. Em outras palavras, nesse caso a racionalidade foi sacrificada no altar da produtividade.
"Por enquanto, os compradores estrangeiros parecem não ter ainda se incomodado com essa falta de padronização", diz Cambiaghi. "À medida que a cerâmica brasileira for conquistando maiores espaços no mercado externo, porém, essa falha será cobrada, e os industriais brasileiros terão de saná-la se não quiserem que seus produtos sejam considerados de segunda linha."
O gargalo do gás natural
Um dos poucos desafios colocados para a indústria cerâmica brasileira está na área energética. A produção paulista de revestimentos cerâmicos, por exemplo – concentrada no interior e responsável por algo em torno de 65% do total nacional –, depende 100% do gás natural fornecido pela distribuidora estatal Comgás, oriundo em grande parte do Gasoduto Brasil-Bolívia.
Os preços desse insumo dispararam tanto nos últimos meses que já ameaçam tolher a competitividade dos fabricantes. Unidades de outros estados também são dependentes do gás natural e enfrentam pressão semelhante.
"Em São Paulo, o setor cerâmico é praticamente refém da distribuidora e, em 2008, teve de suportar um aumento de preço da ordem de 60%. Desse total, em dezembro, em plena crise internacional, o preço do gás para o setor industrial subiu 20%", esbraveja João Oscar Bergstron Neto, presidente da Associação Paulista das Cerâmicas de Revestimento (Aspacer). "Não há setor industrial que aguente um aumento desse tamanho."
O problema se mostra ainda mais grave quando se constata que o gás natural representa 30% do custo total de produção. E o pior é que não há maneira de as indústrias fugirem para outra modalidade de geração de energia.
De fato, em São Paulo, antes da implantação do Gasoduto Brasil-Bolívia, na década de 1990 – que foi praticamente viabilizada pela própria indústria de cerâmica de revestimento –, o combustível utilizado na produção era o GLP (gás liquefeito de petróleo), que é muito mais poluente e, na época, apresentava custos três vezes maiores que o gás natural.
A capacidade dos fornos era também muito menor: um forno GLP produzia de 100 mil a 300 mil metros quadrados de revestimentos cerâmicos por mês. Um moderno forno a gás natural – cujo comprimento pode chegar a 150 metros – produz até 700 mil por mês. Esses equipamentos são mecanicamente inconversíveis e nem mesmo existiria no mercado GLP suficiente para abastecê-los. São centenas de fornos, implantados com um custo médio de R$ 80 mil cada, em valores da época.
"Estamos tentando sensibilizar a Comgás e o governo quanto à situação e pedindo uma política clara de reajuste. Até agora, porém, nada foi feito", lamenta Bergstron.