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Novas idéias para um antigo desafio

Programa oficial alimenta o sonho da casa própria

LILIANA LAVORATTI


Arte PB

A habitação popular ganhou novo status entre as políticas públicas no Brasil. O setor, que sempre figurou entre os principais problemas brasileiros – ao lado de educação, saúde, segurança pública e emprego –, amargando déficit de 7,2 milhões de unidades e crescentes gargalos no processo de urbanização das cidades, agora mobiliza recursos financeiros e o interesse das classes política e empresarial para sair do segundo plano e entrar definitivamente na pauta nacional. Prova disso é o contorno que o governo federal deu ao programa, lançado em março, Minha Casa, Minha Vida. Ambicioso, o plano prevê a construção de 1 milhão de moradias até 2011, com investimentos estimados em R$ 60 bilhões, dos quais R$ 34 bilhões em subsídios.

Em seu objetivo geral – atender à camada da população excluída da realização do sonho da casa própria –, a iniciativa encontra apoio de movimentos populares, governadores e prefeitos de todas as colorações políticas. Nos detalhes, porém, vários aperfeiçoamentos estão sendo reivindicados. O programa ataca diretamente problemas antigos do setor, como a implantação de uma estrutura de financiamento mais adequada, mas gestores públicos afirmam que soluções de infraestrutura e saneamento básico, por exemplo, deveriam fazer parte de uma política habitacional.

Entre as modificações sugeridas estão também o reajuste dos valores das unidades habitacionais e da metragem, considerados insuficientes, bem como a possibilidade de participação de municípios menores do que o estipulado pelo governo (até 100 mil habitantes). As secretarias estaduais e municipais de Habitação reclamam um espaço maior nos projetos, pois o governo decidiu que o dinheiro será repassado diretamente às construtoras para acelerar os trabalhos. Porém, a preocupação principal é que o programa não seja transitório, mas permanente, o que requer um esforço político para aprovação da proposta de emenda constitucional (PEC) 285/2008, a PEC da Habitação, que vincula recursos orçamentários ao setor.

Arca de Noé

"Para resolver o problema da moradia no Brasil, precisaríamos de um Minha Casa, Minha Vida a cada ano, pelos próximos 15", diz Carlos Marun, presidente do Fórum Nacional de Secretários de Habitação e Desenvolvimento Urbano (FNSHDU). Segundo ele, o crescimento acelerado dos grandes centros urbanos multiplicou as favelas e ocupações desordenadas, tornando quase pífias as iniciativas da União, estados e municípios com o objetivo de regularizar as moradias, urbanizar os aglomerados e até mesmo construir novas unidades habitacionais.

O pacote anunciado pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende erradicar o déficit habitacional concentrado nas famílias de baixa renda – aquelas que recebem até três salários mínimos mensais –, que representam 90% dos excluídos da casa própria no país, mas também contempla aquelas que contam com rendimentos mensais de até dez salários mínimos. O programa assume ainda o caráter de medida de combate aos efeitos da crise internacional, aquecendo a economia por meio da cadeia da construção civil.

O Minha Casa, Minha Vida envolve a ampliação de subsídios, maior acesso a financiamento com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), bem como a redução de risco, por meio da criação do Fundo Garantidor, diminuição no preço do seguro e dos custos cartoriais, além de simplificação da regularização fundiária. Para as construtoras, o programa oferece uma nova linha de financiamento e desoneração tributária. A expectativa é que, em sua implantação, a iniciativa crie 3,5 milhões de empregos formais em três anos – 800 mil em 2009, 1,6 milhão no ano seguinte e 1,1 milhão em 2011. Trata-se de uma injeção de recursos há muito tempo solicitada pelas empresas do setor.

"Estávamos há 20 anos sem a produção expressiva de unidades habitacionais. Desde 1990, o Brasil não tinha um programa federal nos moldes deste", diz Celso Petrucci, economista-chefe e diretor executivo do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo (Secovi-SP). "De 1990 para cá, o atendimento das faixas de menor renda era feito pelas CDHUs [Companhias de Desenvolvimento Habitacional e Urbano], nos governos estaduais, e pelas Cohabs [Companhias de Habitação], nos municípios", explica. Em 2001, a Caixa Econômica Federal lançou o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), criado para construir até 2003 o total de 300 mil unidades habitacionais. "Até o final de 2008, cinco anos depois do prazo estipulado, a meta ainda não havia sido atingida, pois apenas 260 mil estavam concluídas", destaca Petrucci.

Júnia Santa Rosa, da Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, destaca que está colocado o debate nacional em torno da questão dos gastos governamentais com o setor. "Agora vamos afinar essa diretriz com aquilo que já estava sendo feito nos estados e municípios", afirma. Segundo ela, finalmente a moradia popular passou a fazer parte das prioridades do Estado. "Os bancos têm subsídios, os estaleiros idem. Agora a moradia também terá."

O secretário estadual de Habitação de São Paulo e presidente da CDHU, Lair Krähenbühl, resume o espírito em relação à iniciativa do Palácio do Planalto: "O problema da moradia extrapola qualquer questão política. É uma Arca
de Noé, todos têm de caber nela. Não há sequer um governante contra a política habitacional".

Na opinião dos empresários ligados à cadeia da construção civil, com o Minha Casa, Minha Vida o governo teve o mérito de criar um novo mercado, trabalhando diretamente no atendimento da demanda e oferecendo condições para a compra do imóvel. "Parece um sonho de uma noite de verão, de tão bom", frisa Petrucci. "O governo colocou dinheiro grande, desonerou custos cartoriais, fixou prazos para a análise de empreendimentos, mudará as regras do licenciamento ambiental para evitar problemas e assim facilitar a viabilidade do programa", destaca.

Entretanto, a visão generalizada de movimentos populares, gestores públicos e empresas do setor é que o sucesso do programa dependerá da capacidade governamental de dar continuidade às ações e garantir recursos permanentes à moradia digna para famílias de baixa renda. Por isso, o pleito principal é justamente a aprovação da PEC da Habitação. Ela prevê a reserva de 2% do orçamento da União e 1% da arrecadação dos estados para os Fundos Nacional, Estaduais e Municipais de Habitação de Interesse Social.

"Nós, gestores públicos, sempre tocamos essa área [habitação] sem a formatação de um planejamento, o que foi gerando atrasos, dúvidas", destaca o presidente do FNSHDU. "A solução, de fato, é que os programas continuem acontecendo nos próximos 15 anos, do contrário o déficit não será zerado", afirma Marun. Segundo ele, a palavra-chave é a perenidade de políticas públicas, planos aprovados e planejamento efetivo nessa área. "Existem críticas à saúde e à educação no país, mas se não fosse a vinculação de recursos orçamentários, o quadro seria bem pior. Temos certeza de que a PEC da Habitação é a solução mais adequada no longo prazo", acrescenta.

Segundo Antônio José de Araújo, da coordenação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, embora hoje já existam instrumentos legais de política pública nessa área, como o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, pouco se avançou por falta de recursos vinculados. Atualmente, a grande batalha do movimento é conseguir 1 milhão de assinaturas até o final de junho em apoio à PEC da Habitação – já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. "A ideia é acelerar a tramitação dessa emenda constitucional. Não queremos que isso demore dez, 15 anos, como ocorreu com o Estatuto das Cidades e até mesmo com o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social", afirma.

Precursores

Algumas ações adotadas há alguns anos mostram que as políticas públicas para a habitação ganharam espaço relevante nos três níveis de governo. É de 2006 a criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. No segundo mandato do governo Lula, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) contemplou o setor e, em 2007, foi lançado o Plano Nacional de Habitação (Planhab).

Estados e municípios buscam soluções criativas e eficiência nos programas habitacionais. No Paraná, com a redução de custos operacionais das construções e simplificação dos telhados, a Cohapar vai economizar 8% por unidade habitacional. Já São Paulo instituiu o acesso à terra urbanizada e habitação para a população de menor renda. Existem dezenas de iniciativas espalhadas pelo Brasil, como os premiados Casa Quilombola, da Cohapar, no Paraná, Casa Especial, da Cohab de Minas Gerais, Torre Sustentável para Habitações de Baixa Renda, da Cohab de Santa Catarina, Casa Vera Lúcia (albergue), de Tocantins, Residenciais Jardim Seminário e Tarsila do Amaral, em Campo Grande, e Trabalho Social na Habitação, em Vitória.

"Está na hora de o Brasil consolidar uma política habitacional, o que até agora não aconteceu", diz o líder do movimento pela moradia popular. Segundo o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, é comum o governo dar um primeiro passo de grande envergadura e depois de alguns anos se avaliar que o alcançado não passou de 30% da meta inicial, pois a forma de encaminhamento não foi adequada. "Esse é um hábito: elabora-se um plano de ação sem envolver previamente estados e municípios na discussão", critica. Segundo ele, existem cerca de 300 programas da União nos moldes do Minha Casa, Minha Vida, de concepção unilateral, que depois precisam da ajuda das prefeituras para seguir em frente.

Na opinião do presidente do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea), Marcos Túlio de Melo, é preciso estar atento para evitar uma supervalorização dos terrenos onde essas construções serão erguidas. "Também é necessário que essas áreas sejam atendidas com infraestrutura urbana dotada de transporte, hospitais, escolas, farmácias e padarias, por exemplo, além do fornecimento de água, luz e serviços de saneamento básico. Muitas localidades requerem licença ambiental. Outro aspecto importante é incluir nos projetos as construções já existentes que atendam as exigências inicialmente traçadas, inclusive com revitalização de centros urbanos", acrescenta Melo.

De olho num programa com características de carro-chefe de plataforma eleitoral, estados e municípios se movimentam. O governador José Serra (PSDB) considera que falta à proposta federal uma regulamentação sobre como a entrega de terrenos, por exemplo, pode ser feita, e se projetos da CDHU e da Cohab poderão se beneficiar. Puxando essa discussão, na qual se engajaram outros titulares do Executivo, Serra e o prefeito Gilberto Kassab (DEM) pleiteiam um papel mais ativo no programa para governos estaduais e municipais.

Outra preocupação da administração paulista é que os valores disponibilizados para o programa sejam reajustados para algumas regiões do país, como o litoral do estado e a região metropolitana de São Paulo, tanto no que respeita às unidades habitacionais como em relação a equipamentos anexos. "No centro de São Paulo não há imóveis por menos de R$ 65 mil. Temos de aplaudir a intenção de fazer 1 milhão de casas, mas não queremos repetir uma Cidade Tiradentes, em São Paulo, ou Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, cujas famílias foram instaladas em lugares inadequados, sem transporte, escolas e creches", diz o secretário Lair Krähenbühl.

Além da revisão dos valores para os empreendimentos em algumas regiões metropolitanas do país, os governos estaduais e municipais, reunidos no Fórum Nacional de Secretários de Habitação e Desenvolvimento Urbano, em São Paulo, no final de abril, também criticaram a exclusão das CDHUs e das Cohabs do acesso aos recursos do programa, que serão repassados diretamente às construtoras privadas, a pretexto de agilizar o andamento dos projetos.

A existência de um estoque de projetos de 47 mil unidades habitacionais em todo o Brasil também é alvo de pleitos. Os secretários de Habitação acham que esses empreendimentos – aprovados e, na maioria dos casos, com licenciamento ambiental – deveriam ser priorizados. "No estado de São Paulo, por exemplo, são 20 mil unidades com tudo pronto, inclusive licitação. Só faltam os recursos para dar início às obras", afirma Krähenbühl.

Outro motivo de descontentamento apontado no documento final do encontro é o fato de o programa não contemplar a urbanização de favelas. Nos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, argumenta Krähenbühl, esse é considerado o problema mais grave a ser atacado imediatamente. "A regularização e a urbanização de favelas são tão importantes quanto entregar novas unidades", diz o secretário estadual da Habitação de São Paulo.

Com ou sem críticas, fato é que, em 13 de abril, na abertura do prazo para o preenchimento de cadastros, filas chamaram a atenção em todo o país, mostrando que o programa trouxe esperança a quem ainda sonha com a casa própria.


São Paulo privilegia regularização fundiária

As políticas públicas habitacionais ganharam destaque nas atuais gestões estaduais e municipais. Em páreo com a administração federal, o governador de São Paulo, José Serra, priorizou o setor. O plano plurianual paulista prevê a construção de 174 mil unidades entre 2008 e 2011. Desse total, 60 mil estão contratadas, incluindo as 20 mil que poderiam ser iniciadas imediatamente, caso o governo federal concordasse em liberar recursos também para as CDHUs e Cohabs. A Grande São Paulo concentra 60% do déficit. A região metropolitana de Campinas vem a seguir, com 8%, seguida da Baixada Santista, com 6%.

O foco dos programas da CDHU e da Secretaria de Habitação do estado de São Paulo é a regularização fundiária, mais do que a produção de unidades habitacionais. O programa Cidade Legal é o carro-chefe do governo paulista nessa área e foi escolhido recentemente como um dos dez melhores do país, pela Associação Brasileira de Cohabs. A meta é legalizar todas as moradias em situação irregular no estado até o final da atual gestão. Segundo informações oficiais, 160 municípios – dentre os 645 em todo o estado – já aderiram ao programa, considerado uma força-tarefa. No total são 1,2 milhão de unidades habitacionais em situação irregular, totalizando 5 milhões de pessoas que moram em casas e apartamentos sem deter o documento de propriedade.

Somente neste ano serão concluídas cerca de 40 mil unidades, entre casas e apartamentos – em 2008 foram outras 25 mil e em 2007 mais 9 mil. A novidade é a entrega das habitações em situação totalmente legal. São Paulo também se destaca por ter privilegiado o acesso aos deficientes físicos, além de outras facilidades cuja implantação antecedeu o programa federal, como a redução de custos cartoriais.

O secretário Lair Krähenbühl afirma que a CDHU prioriza a qualidade dos empreendimentos. "A lógica no passado era comprar terrenos baratos para fazer mais casas. Agora optamos por construir menos, mas com mais qualidade. Hoje em dia, pelo menos metade das unidades tem três dormitórios. Todas são entregues com revestimentos – pisos e azulejos –, medidor de água individual e aquecedor solar", completa.

 

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