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A Igualdade da Diferença
Carmem Victor da Silva
- [...] que caminho eu devo tomar? - perguntou Alice.
- Isso depende de onde você quer chegar - respondeu o Gato.
- Mas eu não sei para onde ir - insistiu Alice.
- Neste caso... qualquer caminho serve!"
Ao escolher um trecho da obra Alice no País das Maravi-lhas, de Lewis Carroll, para traçar um paralelo da realidade do deficiente físico no Brasil, eu quis ressaltar os aspectos dessa obra, paradoxo e contra-senso, também presentes nas relações sociais e nas ações públicas relacionadas às pessoas portadoras de deficiência.
Muitas vezes, os arranjos ambientais necessários à integração do deficiente são contrapostos às estratégias compensatórias utilizadas para facilitar a acessibilidade do mesmo. Um exemplo disso é o que ocorre com os transportes públicos de algumas cidades, nas quais é garantida ao deficiente a isenção da tarifa por meio de uma carteira especial. De posse dessa, perceberá que não fará muito uso dela. A grande maioria das frotas dos ônibus não é adaptada, assim como algumas estações de metrô e trens não têm acesso adaptado aos deficientes. A lógica funciona basicamente assim: você ganha um convite para uma festa que não existe.
Assim como a obra de Lewis Carroll, que se encaixa no gênero fantástico, as relações sociais trilham aqui o mesmo caminho. Até a nossa affirmative action é regida por essa lógica fantástica, diferindo da norte-americana, pois aqui, ao se tomar medidas que não só vão contra a discriminação, mas também positivas em relação às pessoas desfavorecidas, cria-se uma armadilha perigosa para elas, já que favorecendo os deficientes você os discrimina.
Ao ir ao cinema recentemente, percebi bem clara a dife-rença da nossa affirmative action: chegando lá, a fila para comprar as entradas já havia se formado e como tinha sido uma das últimas a chegar, posicionei-me no final dela. Um funcionário veio me informar que eu poderia comprar as entradas diretamente, que não era necessário eu permanecer na fila. Ao me deslocar até a bilheteria, percebi que uma das pessoas que compunha a fila era o ministro José Serra, que permaneceu no seu lugar. Por um momento, pensei que fosse um chefe de Estado e as pessoas me olhavam como tal. Mas, quando fui comprar as entradas, a funcionária me informou que a sala onde estava sendo exibido o filme que eu queria ver não tinha acesso. Porém, havia uma sala adaptada onde estava sendo exibido um outro filme e ela gentilmente me sugeriu que eu o assistisse. A proposta equivaleria a trocar um filme de Jean-Luc Godard por um de Steven Spielberg. A impressão é que a solução dependia apenas de mim, de um simples gesto, de uma simples escolha estética. Mas, o que a funcionária não percebeu ou o que não se percebe, é que muitas vezes não se tem escolha, e que soluções práticas não significam soluções simples.
Mais do que sermos tratados como chefes de Estado, é preciso assegurarmos os nossos direitos mais elementares e que qualquer lei que regula as relações ou acessibilidade do deficiente à sociedade corre o risco de se tornar absurda se as relações menores forem construídas sobre uma lógica contraditória, na qual se confunde benefícios com privilégios e que isso na prática não traz nenhuma melhoria significativa para o deficiente.
Na lógica do País das Maravilhas, as armas que nos oferecem, necessárias para exercermos a nossa igualdade, são contraditoriamente geradoras de diferenças. A diferença da igualdade.
Carmem Victor da Silva é técnica do Sesc Santos