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Ficção
Via Internet

 
Vera Albers

Tínhamos ido à casa do André. Ele mora numa antiga chácara, travessa da D. Pedro I, comprada em Santo André - também por causa do nome - ainda pelo pai dele quando conseguiu vender as ações da Mannesmann um dia antes da quebra. - Esse dinheiro estaria perdido, gastei-o com imensa satisfação -, dizia o pai esfregando as mãos com gosto, enquanto mostrava a propriedade aos amigos, andando pela alameda das jaboticabeiras. - Minha mulher já fez as cortinas e eu instalei a tevê na sala de visitas, para a gente ver os programas depois do jantar. Passo minhas tardes na horta, vocês acreditam que até alcachofras consegui cultivar? E aqui, do lado da avenida mais movimentada do município! Seu Renato dizia isso radiante e foi um pouco pensando nele que voltei à chácara, depois de muitos anos.
A casa é grande e antiga, com as janelas basculantes ainda protegidas por grades em ferro batido e vidraças na varanda, onde cresciam as samambaias. Hoje André mora e trabalha lá, depois que interrompeu uma invejável carreira no Banco Comercial para tornar-se um craque da Internet.
Mas andou fazendo modificações na propriedade. Tirou as jaboticabeiras da entrada - já não gostei -, para criar um imenso lago, meio lodoso, onde o pessoal pesca peixes de criação. Ele é tão grande que chega até a cerca e para dar a volta e chegar até a casa a gente tem que se espremer entre os juncos das sete saias que crescem rente. O caminho em volta dele é de pedras brutas, de modo que você não pode andar naturalmente, pois tem que prestar atenção onde põe os pés. Enquanto andávamos, Lívia ficava me expondo as vantagens de eu ir com ela para Buenos Aires na Páscoa. - Vem comigo-, ela me diz, - lá a gente pode ver a primeira de "El Hombre de la Mancha", no Gran Rex, visitar os cafés-livrarias e assistir uns concertos de jazz que são o máximo. Isso sem falar nas livrarias. Meu amigo, que mora na Callao 2072/4D, vai nos mostrar tudo e nós podemos comprar um pacote no Messias por pouco mais que quatrocentos dólares. Vamos, decida-se!
Eu tinha metido na cabeça que queria comprar uma sandália igual à que Lívia tinha achado na Recoleta e, talvez por causa disso, fiquei pensando se iria ou não quando, sem dar pela coisa, vi que tínhamos chegado à casa de André.
Ele, como todos os novos fanáticos, estava tão absorto diante do computador que mal nos cumprimentou com a mão, enquanto oferecia de lado a face para ser beijada. - André -, disse eu, depois de ter dado um abraço na Elisa e na irmã dela, que também estava lá - já que você está tão por dentro dessas questões da Internet, diga-me, é possível sacar pelo computador?
- Expresse um desejo -, recitou André, - et exaudi orationem tuam. - Pede as sandálias, brincou Lívia. - Claro, sandálias, deixe-me ver... Que número você calça? Trinta e oito, trinta e oito... Banco? Número da agência? Número da conta? Número da senha? Quanto quer sacar? Eu fui respondendo como autômata e como autômata vi ele me entregar um maço de notas e, logo depois, um par de sandálias biedermeier, horríveis, por sinal, que nada tinham a ver com a Recoleta. Todos riram. Seria uma brincadeira? Lívia riu, André riu e voltou a mexer em seu PC, mas eu senti uma ponta de mal-estar. André era André, tudo isso era uma brincadeira, jamais iria pensar mal dele, nem pensar, mas isso não tolhia o fato dele estar agora com toda minha substância na mão. Que idiota tinha sido. Dar minha senha para os outros, que infantilidade!
Na meia hora que passamos lá não consegui readquirir a serenidade - bastante leviana, para dizer a verdade - com a qual tinha chegado. A conversa da Elisa estava chocha, a horta já não existia, o cafezinho estava doce e André continuava ocupado. É evidente que não podia dizer para ele apagar meus dados do computador. - Já vamos, disse olhando para Lívia. A Ju está esperando a gente para poder sair.
Lívia olhou para mim sem compreender, mas assim mesmo levantou-se. Em breve nos veremos para comemorar alguma coisa de bom, falei quando nos despedimos.
- Está na hora de eu mesma mexer com meus dados e aprender a entrar na Internet de uma vez por todas. Chega de desculpas - expliquei a Lívia que me olhava com surpresa. - E vai ser hoje mesmo. Tanto mais que tenho que mudar a senha já.
Olhei para o relógio e encenei um olhar de espanto. O namorado da Ju ia chegar para o jantar, ou melhor, já estavam lá em casa me esperando. Despedi-me afoita dela também, deixando-a na esquina de sua casa e prometendo voltar a entrar em contato logo, logo, para decidirmos se iria ou não à Argentina.
Chegando em casa, procurei o telefone do Anísio. Ele também é craque em Internet e queria ter certeza de poder recorrer a ele em caso de necessidade. Só que a maneira como ele me atendeu me deixou muito intrigada. Não que tenha sido explícito, mas ficou mais ou menos no ar a troca que ele queria fazer. Assim também não, decidi com meus botões e lembrei-me da Dionéia: pode até acontecer, mas sou eu quem decide com quem.
Sendo assim, eu mesma vou tentar, decidi. Vou mandar uma mensagem para o banco. Ou melhor, antes tentarei com uma conhecida, só para saber como é. Aqui está o manual, aqui está: Outlook express: clicar duas vezes.
Pergunto: onde está o outlook? No rodapé, num ícone onde aparece e-mail e um envelope: 2 cliques.
Clicar uma vez em enviar e receber: xi, ocorreu um erro desconhecido. E agora? Itens excluídos, click: achei-me! Achei-me! Consegui ler os e-mails recebidos e os enviados por meu mano depois de tanto eu implorar.
Achei um daqueles para os quais pretendo responder, o da minha conhecida!: cdecamp@tin.br.
Print: a impressora não funciona.
E agora, como respondo? Responder ao autor: clicar! Enviar! Só isso? Será que recebeu? Mas não houve sinal nenhum de conexão com a Internet!
Algo falhou. A luzinha apagou. Uma luz não conversa mais com a outra. Só à noite agora, quando meu irmão chegar e o PC tiver contado para ele tudo o que eu fiz de errado... Mas será o benedito?!

Vera Albers é escritora e autora de Surtos Urbanos, publicado pela Editora 34