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Entrevista


A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) analisa a produção literária na era da internet
Fotos: Adriana Vichi
 


A trajetória da carioca Heloisa Buarque de Hollanda é curiosa. Professora titular de teoria crítica da cultura na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Heloísa, também editora, entende tudo de livros, mas tem “horror a biblioteca”. “Além de tudo sou asmática, aí tem fungo... Eu não gosto”. Talvez também por isso tenha escolhido se debruçar entusiasmadamente sobre a produção literária na internet, feita pelos que ela chama de “novíssimos”, uma moçada cheia de contradições, que cria um blog atrás do outro, mas acalenta o sonho de publicar em papel, da maneira mais convencional possível. “Acho engraçado e anacrônico (...) devia bastar publicar na internet. Precisa passar para o papel?”, pergunta. Heloísa é curadora de um site sobre literatura – o Portal Literal (www.portalliteral.com.br) – e também coordena o Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, além de ser diretora de O Instituto Projetos e Pesquisa  e da Aeroplano Editora Consultoria Ltda. Na entrevista exclusiva concedida à Revista E, durante sua passagem por São Paulo para participar do projeto Cartografia Web Literária – realizado, em agosto, pelo Sesc Consolação –, Heloísa comparou a produção coletiva da década de 1970 com a interatividade da rede hoje, analisou a importância das grandes feiras de livros e mostrou-se otimista com relação ao avanço do mercado livreiro. “Acho que vai muito bem o mercado editorial, e abrindo o mercado editorial você vai ter muito mais gente sendo impressa, muito mais gente nova aparecendo.” A seguir trechos:

 

Qual o lugar da literatura na arte?

Acho que a literatura hoje está surpreendendo. Depois dos anos de 1960, ela apresenta uma quedinha – com o cinema etc., enfim, outras coisas ?ganharam espaço. Mas hoje a palavra está um tsunami, está por toda parte. É impressionante também o status que o livro ganhou. De repente, livro é muito importante, o papel mesmo. Agora, o curioso é que o papel, em princípio, não serviria mais [refere-se ao conteúdo produzido e lido na internet], mas tem toda uma mitologia com o livro, hoje, que acho interessantíssima, e que é muito nova. Na periferia, um escritor que escreve livros, declama poesias etc., ganha um status diferente dos outros artistas – do hip hop, dos rappers etc. Eles têm uma liderança e um respeito da comunidade que os outros artistas não têm, mesmo que sejam cineastas, que mexam com teatro. E o engraçado é que era para o livro perder isso. A aposta era que a literatura perdesse espaço, mas os livros estão vendendo bem, a internet está fazendo vender mais livros, eles estão mais bonitos. Entro numa livraria e fico olhando as capas, fico totalmente encantada. O livro começou a falar como objeto, o que não existia antigamente, quando era só o texto. Agora o livro ganhou um valor estético. Eu já comprei livro por causa da capa tranqüilamente, principalmente quando viajo, começo a comprar livros pela capa. Principalmente porque sou editora, a coisa da capa é importante, tem umas que são obras de arte.

 

Você acha que o papel da literatura mudou nesse mundo mais digital?

Acho que sim. Ela agrega, você tem uma vida literária muito intensa hoje na internet. Fora dela, não, mas na rede, sim. E ela é comunitária. Formam-se grupos, fazem-se amizades. Tem uma seção no [The] New York Times que se chama Book Lovers [amantes de livros]. O leitor diz lá que gosta de um determinado livro e, se outra pessoa gostar também, as duas marcam um encontro. Ou seja, é essa coisa de congregar, de juntar gente em torno da literatura.
   

Nos anos de 1960 isso não seria possível?

Mas nunca na vida.

 

Por quê?

Porque o escritor não cumpria esse papel de se tornar, ele também, uma celebridade, esse papel de vender a

 “Eu já comprei livro por causa da capa, principalmente quando viajo. Sou editora, a coisa da capa é importante, algumas são obras de arte”

imagem, de atender o público com um sorriso etc. Nos anos de 1960, o campo dele era a denúncia, era esse o trabalho dele, era a força, a marra, o projeto político. Hoje não é isso. Li certa vez um texto do Marcelino Freire que diz que hoje, graças a Deus, a coisa não é ideológica, é apolítica. A periferia é apolítica. Isso é fantástico. Claro, eu digo que não se trata é de política partidária, porque bota política no que eles fazem na periferia. Mas é uma outra política, é uma política de negociação. Mas, nos anos de 1960, o escritor tinha o papel, a missão, de revolucionar. Hoje ele tem a missão de dar prazer. E eu não acho isso ruim, não consigo colocar uma moral nisso, achar que a literatura se perdeu. Hoje você vê muito mais leitores, porque a literatura entrou para a cena, inclusive do lazer, o que é muito importante num país de analfabetos, num país que rejeita o livro, como o Brasil. Quer dizer, o livro está começando a entrar na juventude. Agora o que eu acho engraçado e anacrônico são todos os autores jovens que publicam pela internet quererem depois passar para o papel. Devia bastar publicar na internet. Precisa passar para o papel?


Por outro lado, estão surgindo cada vez mais editoras pequenas, não?


Tem uma porção de editoras pequenas fazendo os livros novos. Eles são lindos, você já viu as capas? São admiráveis essas editoras novas. Tem uma chamada Não Editora, que é do Sul, e é estupenda. Entrei no site deles para ver porque ela tinha esse nome, e é porque ela edita uma literatura que não quer seguir padrões. Essa história de não querer seguir padrão congrega muita gente, porque o que existia antes era um padrão de elite, de iniciados. Aquela coisa de ler porque tinha que ser culto. Hoje não é para ser culto, é uma viagem.

 

É mais o prazer?

É. Mais a “tchurma”. Para os novíssimos é a “tchurma” que escreve. Eles não só escrevem, é uma geração estranhíssima com que estou trabalhando muito. Ela tem banda de rock, ela faz muito design, e vende isso. Ela ganha dinheiro com isso tudo. Quando ganha com a palavra é trabalhando no IG, no Terra, nesses lugares. Escreve na internet, nos grandes sites. Jornalismo, mais ou menos. Outra coisa é isso: a banda de rock e o design. Eles têm todas essas competências.

 

Em meio a isso tudo, de repente, essa garotada faz o próprio site, não?

É, essa misturalhada. É muito engraçado porque quando você vê que um livro é bem cuidado graficamente, tem invenção gráfica ali dentro, pode ver que é de um roqueiro. Você sente que tem um rock passando por ali também. Uma coisa mais de geração. E está um tsunami na internet. É muita quantidade. Eu fiz uma exposição uma vez que se chamava Blooks – de blogs mais books, ou seja, livros que vêm de blogs. É uma expressão norte-americana. Eu pensei em fazer essa exposição, mas achei que não tinha hormônio nem tinha idade para entender essa literatura. Então chamei dois curadores jovens, a Bruna Beber e o Omar Salomão, dois garotos de seus 20 anos. Pedi para eles fazerem a curadoria e depois eu olharia e faria a seleção final. Tudo isso porque julguei que não ia ter competência para achar essa literatura feita por essa garotada, pensei que seria uma escrita “disfarçada”. Só que eles [Bruna e Omar] me trouxeram “literatura literária” mesmo, e de grande qualidade. Eles [os jovens que escrevem em blogs] são muito bons.

 

E você detecta se esse pessoal lê bastante também?

Muito. E os clássicos. Não lêem só os pares, não. Eles gostam de ler. E você vê que isso está em todas as artes. Na história em quadrinhos, por exemplo. A evolução é inacreditável no mundo inteiro. E não chama nem mais quadrinhos, agora é grafic novel, novela gráfica. A literatura entrou ali para ficar.

 

O escritor não cumpria esse papel de se tornar [nos anos de 1960], ele também, uma celebridade, esse papel de vender a imagem, de atender o público com um sorriso etc. (...) o campo dele era a denúncia, era esse o trabalho dele, era a força, a marra, o projeto político”

Você vê diferenças entre a produção coletiva de hoje da internet – os grupos dos quais você falou – e aquela produção conjunta dos anos de 1970?

Enormes. Porque, para começar, você pega um grupo daqueles, o Nuvem Cigana [grupo de poetas e agitadores culturais criado na década de 1970], por exemplo, você vê que ele não se dispersava. Aquilo era um coletivo. Então eram cinco poetas que, juntos, faziam aquela produção. Eles trabalhavam juntos, eles vendiam juntos, era um esquema de cooperativa. Cada um tinha um nome, mas era o Nuvem Cigana que aparecia. Hoje, você não tem um nome na internet. As pessoas não se juntam assim [sistematicamente], elas se juntam episodicamente, é uma coisa mais rizomática [de rizoma, um caule subterrâneo que algumas plantas possuem e cuja imagem é usada para ilustrar o caráter de rede da internet]. A Clarah Averbuck se articula com X e depois com Y. É um fliperama, as articulações são instantâneas, variáveis e móveis. O alcance é muito maior. Já a outra idéia [dos anos de 1970] era contracultural mesmo. Era uma coisa de interpelar a cultura, de inventar um sistema mais feliz de viver com a poesia, fazendo seu próprio livrinho e vivendo disso. “Vida é arte e arte é vida.” “Então estou contente.” Era um ethos, uma política exemplar, digamos. Eles davam o exemplo para mostrar aos poetas como era bom ser como eles. Hoje, não. Hoje você quer entrar para o business, você usa aquilo com o objetivo de entrar para o sistema.

 

Você acha que essa característica de o pessoal querer entrar para o sistema, querer essa legitimação, fazer business, faz com que essa literatura seja mais conformada?

De jeito maneira. O destino é esse mesmo. O pessoal do Nuvem Cigana, que queria fazer uma comunidade alternativa ao sistema, está todo na Companhia das Letras ou na Cosac Naif. Esse é o caminho fatal. Só que o outro [a moçada de hoje] brinca e negocia com isso. Eu acho mais esperto, e isso você vê na periferia igualzinho. Porque o Ferréz [uma espécie de “escritor-símbolo” da periferia] foi para um seminário que eu organizei há uns 4 anos, e ele bateu na mesa e disse: “Eu tenho direito ao Flaubert [clássico da literatura francesa]”. Ele deu soco na mesa! Eu achei genial. Não é só o [tênis] Nike que a periferia quer da gente, ela quer também a cultura de elite, a cultura canônica. Não quer ser uma literatura de gueto. Quer ser reconhecido como escritor. Nesses projetos, todos têm essa briga: “Não somos um projeto social, somos arte”. Porque você chega para ver um projeto social.

 

E a vontade é também a de ganhar dinheiro com isso e melhorar de vida dentro do jogo do sistema?

Agora tem uma coisa nova, interessante, e é algo muito político: um certo compromisso com a comunidade. Não sei como se estabeleceu ou se estabelece esse pacto, mas ele existe. Você pega o Nós do Morro, no Rio de Janeiro, que é o grupo de Vidigal que forma em massa atores negros para a Globo e para o mercado e vê que Cidade de Deus foi feito todo com atores do Nós do Morro. Então o ator vai para a Globo, começa a ganhar dinheiro e poderia mudar para outro lugar. Mesmo que ele se mude de endereço, ele volta para dar aula.

 

Como nasce isso?

Comunidade. A palavra de ordem da comunidade hoje parece que é solidariedade. É “brodagem”, como eles chamam. Mano, brow. Isso é uma lógica de resistência, porque você se junta com alguma coisa. Eu acho que essa lógica estabelece o compromisso do retorno do que você está ganhando. O Ferréz tem uma biblioteca, ele dá oficina. Todos dão oficina. Isso você não encontra na internet. Lá é solidariedade zerada. Compromisso político zerado. É uma forma gregária de estabelecer contatos e articulações, mas com módulos muito individuais. “Eu tenho meu blog e falo com você, um dia eu enjôo e passo para ela [para outra pessoa]”. É imprevisível esse fluxo.

 

Você tem uma trajetória bastante particular: é professora, ensaísta e tem acompanhando esses movimentos culturais. Que papel você escolheu para si?

Eu acho que é uma tristeza, porque meu pai achava a universidade a coisa mais importante no mundo, tinha uma biblioteca etc. Eu não tenho biblioteca, tenho horror a biblioteca. Além de tudo, sou asmática, aí tem fungo... Eu não gosto. Meu pai tinha aqueles livros classificados, aquela coisa, e ele um pouco me obrigou a fazer faculdade, tanto que de birra eu fiz grego. Não podia ser mais acadêmica do que eu era. E eu odiava aquilo. Eu não sabia dizer que eu odiava, senão eu teria saído. Mas foi um conflito com a universidade, inclusive eu trabalhei o tempo todo fora da universidade. Eu não me lembro nenhuma vez de dedicação completa. Eu tive programas de televisão, de rádio, eu fiz cinema, fiz documentários, trabalhei com cenografia. E agora eu faço curadoria de exposição. Ou seja, são experiências que foram agregando um certo descolamento da universidade.

 

“É muito engraçado porque, quando você vê que um livro é bem cuidado graficamente, tem invenção gráfica ali dentro, pode ver que é de um roqueiro. Você sente que tem um rock passando por ali também”

Você falou sobre a questão do escritor celebridade, e nós tivemos a Feira Literária Internacional de Paraty, a Flip, que foi um sucesso de público. Você acha que tudo isso é benéfico para a literatura, as pessoas lêem mais por causa disso? Qual é o ganho para a literatura?

O meu exercício fundamental na vida é esquecer os anos de 1960. Então eu tenho que fazer esse exercício de respiração toda manhã para expelir os anos de 1960 e pensar mais solto. Porque, se me soltar, eu volto no tempo e fico achando que o que está errado é o mercado. Eu estou proibida por mim mesma de fazer isso. Então, acho que o resultado é bom, sim, [beneficia a literatura], porque fortalece as editoras, e elas precisam ganhar dinheiro, caso contrário elas não podem publicar os novos. Editora como a minha e essas todas pequenas são kamikazes. Eu jamais ganhei um tostão com a Aeroplano [sua editora]. Faço exposição, faço evento, faço seminário, faço um monte de coisas que alimentam a Aeroplano, porque livro... Esquece. Você precisa ter alguma coisa que faça daquilo uma empresa para arriscar, e para isso você precisa ter uma estabilidade qualquer. Acho que vai muito bem o mercado editorial, e abrindo o mercado editorial você vai ter muito mais gente sendo impressa, muito mais gente nova aparecendo. Acho que faz bem. O Paulo Coelho é uma benção para a literatura. O que ele enriqueceu a Rocco... Eu não leio o Paulo Coelho porque não é minha turma, não me distraio com aquilo, não me divirto – nem entendo bem, para falar a verdade. Mas eu adoro que muita gente goste. É muito bom, porque depois do Paulo Coelho vai ler outro livro, de repente.

 

O que você acha dessa característica contemporânea de midialização? Hoje cada indivíduo pode ser uma mídia.

Acho que é uma coisa muito boa. Aí vem a polêmica de novo, porque qual seria a qualidade disso? Acho que não tem que ver qual é a qualidade, tudo que a gente faz tem qualidade e não tem qualidade. Da geração dos anos de 1970, eram milhares de poetas com aqueles livrinhos. Sobraram cinco, e é muito. Mas havia uns 60. Vai ser sempre assim, vai ter uma seleção, vão ter poucos com qualidade. Mas aí você tem para todos os nichos, acho que é mais uma lógica de nicho. Tem aquele livro do Chris Anderson que é interessante, a Cauda Longa [Campus, 2006]. Hoje você não pensa mais só no hit. O hit vende, mas concentra muito em uma empresa só. Então você tem aquilo chamado cauda longa, ou seja, tem para todos os nichos. A internet vende muito porque você tem uma oferta nela que não tem numa livraria, por exemplo. Porque você tem que adquirir aquele estoque, armazenar aquilo tudo. Então você não tem todos os livros numa livraria. Mas na internet você tem a chamada cauda longa. Eu acho interessante por isso, acho que a gente tem que ver pelo outro lado. Essa coisa da qualidade é meio complicada hoje.

 

Então a primeira preocupação não seria a qualidade, e sim o acesso?

É acesso, divulgação. E qualidade acho que é uma coisa... Nos anos de 1970, por exemplo, as pessoas diziam o que não queriam. Hoje elas dizem o que elas querem. E você vê como a academia está gagá porque o Ferréz está melhorando muito a escrita dele. Por ser literário, de qualidade, ele deu um pulo do Capão Pecado [original de 2000, quando foi editado pela Labortexto, e com uma edição de 2005 pela Objetiva] para aquele último de contos Ninguém é Inocente em São Paulo [Objetiva, 2006]. E todo mundo diz que ele está piorando porque perdeu a linguagem do gueto. Não é possível que você queira que o pobre morra pobre, que quem escreve errado continue escrevendo errado. Mas isso é coisa de intelectual.

 

“Acho que não tem que ver qual é a qualidade, tudo que a gente faz tem qualidade e não tem qualidade. Da geração dos anos de 1970, eram milhares de poetas com aqueles livrinhos. Sobraram cinco, e é muito”