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Ficção
Enquanto seu lobo não vinha
Ela tinha cabelos cor de milho, um rosto bonito e dois olhos muito azuis. Uma pintura. Linda de morrer.
Viajávamos no mesmo ônibus que nos levaria a uma ilha deserta, longe das agitações estudantis daquele ano de 1968. Na primeira parada para o lanche, olhei para trás e notei a garota bonita (tinha 21 anos, soube mais tarde) que vestia uma camisa social masculina com as mangas dobradas e solta sobre uma calça jeans. Ela estava desabotoando os dois primeiros botões de cima e três de baixo, deixando a mostra a covinha dos seios, uma ponta do soutien e, depois, o umbigo e uma nesga da sua barriguinha muito branca. Era uma viagem ruim por uma estrada ainda pior, cheia de buracos, que obrigavam o ônibus a rodar lentamente, num calor pegajoso sob um céu mortiço, carregado de nuvens e mormaço. Tentei puxar conversa perguntando-lhe que lugar era aquele onde o ônibus parara. E ela, que lia um livro de Carlos Drummond de Andrade, apenas meneou a cabeça a indicar que não sabia, sem tirar os olhos da página que estava lendo. E assim seguimos: Sem trocarmos uma única palavra. Para matar o tempo naquela vereda tropical mortificante, comecei a assoviar Enquanto seu Lobo Não Vem, de Caetano Veloso - Vamos passear na floresta escondida, meu amor/Vamos passear na avenida... Na verdade, eu estava mesmo era tentando chamar a atenção dela, que não ligou a mínima para os meus dotes musicais. Entre o poeta em suas mãos e o passageiro assoviador no bando da frente, era fácil imaginar para qual o seu coração balançava. Ainda assim, quando chegamos ao ponto final, ajudei-a a carregar as malas até o pontilhão das barcas para a ilha - afinal, uma menina bonita que gostava de poesia merecia toda a minha consideração. Nem por isso eu iria ter o prazer de ouvir a sua voz. E quando precisou falar pela primeira vez naquela viagem, não foi para mim que dirigiu a palavra. Foi quando o barqueiro começou a soltar as amarras. De repente, ela segurou o braço dele e, aflita, pediu-lhe que esperasse um pouco. Precisava voltar ao ônibus, pois havia se esquecido de uma coisa. Deu um salto para o cais e partiu em disparada. Voltou rapidamente, sorrindo. Parecia uma criança que encontrara o brinquedo perdido. Era o livro de Carlos Drummond de Andrade.
Deixei-a entregue ao seu livro e à sua bagagem e adentrei a ilha que, logo à primeira vista, parecia mesmo merecer o nome que tinha: Ilha Bela. Um paraíso verde cercado de mar azul, no litoral de São Paulo. E fora de temporada! Bom, cá estava eu, para uma semana de descanso, na transição de um emprego para outro, para me recuperar do estresse, renovar as energias, todas essas coisas que achamos que vamos encontrar longe do asfalto. E também para ler os três livros que trazia na bagagem, ia começar pelo O Som e a Fúria, de William Faulkner, tantas vezes iniciado e deixado de lado, para quando tivesse tempo e cabeça, pois não se tratava de um livro, digamos, "fácil". Agora, sim, eu iria ter o tão ansiado tempo. E muita paz. Isso, claro, se ela - a de cabelos cor de milho - já não estivesse se aproximando da mesa do restaurante onde eu pensava que ia jantar sossegado, logo depois que deixei as minhas coisas num quarto de um hotelzinho silencioso, apesar da loquacidade do seu dono, a bem da verdade, um velhinho muito simpático.
- O que você está lendo? - ela perguntou, dirigindo-me a palavra pela primeira vez e pegando o livro sobre a mesa.
- Uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria e que nada significa.
- Mas isto é uma frase de Shakespeare. Numa peça chamada Macbeth.
Meu Deus! Que parada, essa garota. Tão novinha e já sabia quem era Shakespeare! Pelo visto, a nossa temporada na ilha prometia. E a menina bonita parecia muito agitada, a ponto de esquecer de perguntar se podia ou não se sentar à minha mesa. Diante do inevitável, respondi-lhe, calmamente:
- Sim, é uma frase do Shakespeare. Foi nela que o Faulkner se inspirou para escrever O Som e a Fúria. Os escritores são uns piratas. Vivem saqueando uns aos outros.
- Taí, gostei - ela disse, rindo - Já vi que com você vai dar para conversar.
Folheando o livro com curiosidade e interesse, perguntou se eu a acompanharia numa cerveja. Respondi que sim, pensando: esta é precoce em tudo. E assim começamos a viver a primeira das nossas cinco noites, seguidas por uns dias nos quais o sol raramente aparecia. Foi mesmo uma parada.
Bebeu e falou da ilha, onde seus pais tinham uma casa, e para onde sempre vinha, quando a barra pesava. Como agora. Havia escrito uma peça de teatro, que fora proibida pela censura. Seu apartamento havia sido lacrado pela polícia. Muitos dos seus amigos estavam presos e foragidos. E isto era só o aperitivo. Tin-tin. Outra cerveja. A partir daí, não iria mais economizar palavras, como fez durante a viagem. Falou das pessoas "fabulosas" da ilha, "os seres humanos mais livres deste mundo", como o francês Pierre, o alemão Hans, o Carioca com suas histórias maravilhosas dos anos dourados no Rio de Janeiro, o barbicha meio maluco que vivia num barco e fazia bruxarias para pegar mulher, e mais um outro chamado Cláudio, que tinha uma pedreira, e um automóvel, e um espetáculo de fazenda e um iate deslumbrante.
Todos, na verdade, viviam à espera do verão, enquanto amargavam a solidão do inverno, com seus negócios - bares e restaurantes - às moscas.
Matavam o tempo jogando baralho e conversa fora uns com os outros. Era só isso e um céu sem possibilidades de estrelas. Já na primeira noite, fizemos a ronda, dos bares sonolentos, ouvimos as queixas de seus donos - "Ah, e este sol, que não aparece" - andamos pelas ruas de mãos dadas, parando de vez em quando para um abraço, um beijo, muitos beijos, como um casal de namorados de longa data. E assim fomos para a praia, noite alta, e ela disse para eu ficar atento, para ver o dragão. Dragão? Que dragão? Existia um ali, ela insistia, já o tinha visto. Apareceu no céu, todo iluminado. E veio na sua direção, feito um raio enorme, gigantesco, até bem perto dos seus olhos, quando desapareceu. Queria vê-lo de novo. Era um dragão lindo, divino, maravilhoso. Passei a achar que a menina bonita estava delirando. Como o dragão não dava sinais de existência, ela começou a se despir. Também me livrei da minha roupa. Apertei o seu corpinho delgado entre os meus braços e rolamos na areia. Agora, sim, eu havia chegado ao paraíso. Alguém passava pela estrada, àquelas horas. Dava perfeitamente para se ouvir o crec-crec de uma bicicleta em movimento.
No dia seguinte, ela parecia um pouco deprimida. Disse que não havia dormido direito, por causa do barulho das caveiras. Torno a me espantar: caveiras? O protesto dos nossos mortos, dos que caíram em combate, explicou, apontando para o mar, na direção do Sul. Ali para aqueles lados - continuou -, perto de Santos, tem um navio cheio de prisioneiros, boa parte estudantes, ex-colegas meus. E um deles é uma pessoa muito especial na minha vida. E, olhando duramente nos meus olhos, perguntou se eu fazia idéia do que estava acontecendo neste país. Respondi-lhe que não era um alienado total, um desinformado. Nessa noite ela bebeu demais e me deixou constrangido. Foi durante uma provocação patética que fez ao alemão. Assim: - Hans, velho vagabundo, onde você estava durante a guerra? Conta prá gente, conta. É verdade que você não pode ver fumaça sem ter um orgasmo? Fumaça lembra queima de judeu, não lembra? Ah, esta ilha, não é mesmo uma maravilha. Hans? Nada como esta paz, esta tranqüilidade, para a gente esquecer. E ser esquecido. Não é, Hans? - Pára com isso - eu disse, completamente embaraçado - Vai tomar as dores dele, vai? - ela parecia fora de si. Encabulado, falei para o alemão - Desculpe, a moça está de porre. E ela, mais debochando do que falando sério, também se desculpou, dizendo que o Hans era o matador de judeus mais maravilhoso que conhecia. O alemão não perdeu a flêuma: - Você conhece outros? Oh, se conheço ela disse. Hitler, Goebbles, Stalin, uma porrada. - Todos fichinhas perto de mim - Hans voltou a gracejar - Ah, alemão, você é maravilhoso mesmo. Sabia que tenho um filho aqui nesta barriguinha?: E o Hans, com muita verve: - Parabéns. Vocês andaram depressa. Parecem casados há pouco tempo. Ela protestou: - Casados coisa nenhuma. O cara que fez este filho está na cadeia, num navio, ali perto de Santos, quase nas suas barbas, Hans. É um preso político. ( virou-se para mim, choramingando: - Me perdoe, me perdoe, tá? Mas é que estou morrendo de saudade... Interrompi a sua fala, passando o braço sobre o seu ombro e fazendo-a ir em frente. Finalmente, eu já estava entendendo porque ela havia dito antes que a sua barra estava pesada. E porque estava bebendo tanto. Foram cinco noites e quatro dias de amor e vexames. Como na vez em que ela invadiu a sonolenta delegacia da ilha e pediu para ser presa, dizendo que não se conformava em estar livre, solta, quando a pessoa que mais amava no mundo encontrava-se na prisão. Chamei-a de biruta e arrastei-a para o meio da praça. Discutimos feio. Ela, num acesso de fúria, tirou a roupa, ficou completamente nua, me deu as costas e caminhou para o mar. Bati em retirada. No dia seguinte, recebi um embrulho. Abri-o. Eram umas flores do mato, com um cartão, no qual estava escrito: "Flores para los muertos". Foi no último dia. Nunca mais voltei a vê-la.
Agora vejo o seu retrato no jornal, numa galeria de personagens de 1968, o ano que ainda não terminou, segundo o título de um livro de Zuenir Ventura. Sim, eu conheço este rosto, digo, enquanto contemplo a sua foto em preto e branco, esmaecida pelo tempo. Uma fotografia de quando tinha 21 anos, cabelos cor de milho, um rosto bonito e dois olhos muito azuis. Agora ela é só uma lembrança, uma saudade. Foi tragada por um dragão ou um lobo que o idiota desta história não viu. Agora, agora, ela pertence ao mundo dos desaparecidos, dos mortos sem sepultura. E não posso nem lhe mandar flores.
Antônio Torres é romancista, autor, entre outros, de Um Táxi para Viena dÁustria e O Cachorro e o Lobo