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Ficção
Alergia

Renata Pallottini

A sala de espera estava bem cheia; Emilia se abanava com uma revista Amiga velha, onde acabara de confirmar que o seu cantor preferido tinha se separado da sua atriz preferida. Esse pessoal da TV!

Era o terceiro médico naqueles últimos dois meses e sempre pelo mesmo motivo: motivo sem gravidade, talvez, mas incomodativo.

- Dona Emilia Fiore! - chamou a recepcionista, com seu cartão do seguro-saúde na mão. É a senhora.

Entrou; o médico era moço e simpático. Foi com a cara dele na primeira; deu as informações iniciais, nome, estado civil.

- Muito bem; qual é a queixa, dona Emilia?

- É o seguinte, doutor: é o problema da carne...

O médico olhou pra ela sem entender bem.

- Eu explico, doutor: eu não tolero a carne...

- O médico interrompeu:

- Não é tão raro. Existe muita gente assim. Aliás, comer muita carne não é saudável. Experimente alternar com frango, peixe...

- Não, não senhor! Eu até gosto de carne!

O médico levantou a cabeça e encarou-a de novo, já um pouco irritado. Afinal, a paciente gostava de carne ou não a tolerava?

- Desculpe, doutor, estou parecendo boba...

Ele não protestou.

- O negócio é o seguinte: Eu não tolero carne crua. O cheiro dela, o sangue, me embrulha o estômago, tenho ânsias... Um horror.

O médico sorriu, já mais aliviado:

- Não há problema, minha senhora. Evite comer carne malpassada, aquela que nas churrascarias se chama "ao ponto". Naturalmente, a senhora também deve evitar quibe cru, carpaccio e bife tártaro. Coma a carne bem assada; aliás, é mais prudente.

Emilia baixou a cabeça; ia começar a inhana.

- Doutor... não existe algum remédio que tire da gente esse nojo? Essa, mania? Afinal, cheiro de carne crua, que mal tem? Se é limpa e fresca?

O médico fazia anotações na ficha, já meio desligado:

- Minha senhora: existir, existe. Pode-se receitar um anti-histamínico, fazer testes...

- Tudo isso eu já fiz e não adiantou...

- A senhora não acha mais fácil deixar de comer carne crua e pronto?

- A coisa não é tão simples, doutor...

- Desculpe, mas por quê?

Emilia baixou a cabeça:

- É que o meu marido é açougueiro, doutor.

Levantou a mão, já tratando de deter algum comentário negativo:

- Um bom marido, um ótimo marido! Limpo, decente, toma banho de tarde, quando volta pra casa depois de fechar o açougue... Escova as unhas, passa xampu no cabelo... mas fica aquele cheiro, aquele cheiro de carne crua, de sangue, doutor! Eu não agüento! Me embrulha o estômago, me tira o apetite... de tudo, doutor... de tudo!

O médico olhava para ela atônito.

- Doutor, a gente é feliz, cinco anos de casados... eu gosto dele... verdade que não tivemos filhos mas... vamos ter, um dia... Doutor...

E agora?

***

Na cama, de camisola cor-de-rosa, Emilia conversava com um Urbino desolado:

- Não dava pra você mudar de ramo, bem? Lanchonete, padaria, sei lá...

- É disso que eu entendo, Emilia. Desde menino, aprendi com o pai. Cortar carne, abrir o boi. Levantar cedo, receber os quartos de boi inteiros, transportar aquilo, desmontar... É negócio seguro, todo mundo quer, compra. Comida, ninguém faz economia, só quem tá na embira mesmo. Como vou mudar, agora?

- É pela gente...

- Você pensa que eu não gostaria? De voltar a... tudo como a gente sempre fez? Faz três meses e meio, amor... é tempo paca. Hora dessas eu não agüento mais!

- Mas é porque eu não posso! Me dá enjôo!

- Será que você não tá grávida?

- Antes fosse!

- E agora?

***

Era um Urbino melancólico, o que cortava em bifes os dois quilos de coxão mole que dona Antonieta tinha pedido; moradora antiga do bairro, bonitona, aquela dona Antonieta! Às vezes pensava até que ela estava lhe dando bola.

- É quanto, seu Urbino?

Disse o preço e foi cobrar; o ajudante tinha saído pra fazer uma entrega. Dona Antonieta lhe deu o dinheiro e demorou com a mão na mão dele.

- O senhor nunca faz entrega em casa, seu Urbino?

- Depende da compra... e da compradora...

Ao entregar o embrulho as mãos se demoraram ainda mais; e os olhos nos olhos.

***

Onze horas da noite; Urbino estava excitado, alegre. Tinha tomado um banho demorado, no capricho, posto até água-de-colônia. Veio se deitar, Emilia já na cama.

- Contente, bem?

- É...

Urbino hesitava. Tinha que escolher as palavras, o assunto era sério. Por fim decidiu:

- É que...

Emilia já estava preocupada; conhecia o marido e melhor ainda as suas carências:

- Fala, bem. Fala sem medo. A gente nunca teve segredos um pro outro...

- Emilia...

- Que é?

Tomou o fôlego e soltou:

- O seu Alessio me propôs trocar o açougue com a casa de laticínios dele. Mas foi franco! A casa tá dando prejuízo, ele acha que pode ser empregado, cansaço, não sabe direito. Você... você topa essa experiência comigo, bem? Começar tudo de novo?

Emilia caiu nos seus braços.