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Ficção
Numa Véspera de Natal
Foi no momento em que Dom Fernando, mais bonito e esguio nos seus paramentos solenes, começava a benzer as alianças, diante dos noivos ajoelhados, que Madalena divisou, do meio da igreja, por entre tantas cabeleiras, calvas e chapéus, os inconfundíveis bigodes de seu ex-marido.
É ele, sim, não há dúvida que é ele – disse a si mesma, com irreprimível alvoroço, ao mesmo tempo em que assestava melhor o lornhão de madrepérola, esticando o corpo, quase na ponta dos pés.
Daí por diante só voltou a dar atenção ao casamento do Abelardo e da Silvinha quando as vozes do coro acompanharam o órgão, nos acordes da Marcha Nupcial, com os noivos descendo a passadeira vermelha, caminho do salão da sacristia onde receberiam os cumprimentos.
Ninguém diz que Jorge já fez sessenta e oito anos – comentou Madalena, voltada para o cortejo que vinha passando agora à altura de seu banco, a noiva muito bonita no seu vestido longo, o rapaz bem lançado, mais magro no fraque impecável.
E só então reparou que, a despeito de ter os olhos no noivo, continuava a pensar no ex-marido, também esguio e ainda elegante, a velhice realçada pela cabeleira farta, quase toda branca, um cravo na lapela. Logo se lembrou de que ia fazer agora trinta e seis anos que se tinham casado.
Jorge, quando descera do altar, nesse dia distante, de fraque e calça listrada, já era o campeão de esgrima com retratos nos jornais, participação nas Olimpíadas, automóvel, um ar distante e malicioso que virava a cabeça das mulheres. Por sua causa tinha se matado a senhora de um banqueiro. Também por ele uma vedete portuguesa armara um escândalo tempestuoso em pleno palco, quase cortando a chicote o rosto de uma colega.
No entanto, havia sido ela, Madalena, simples professorinha de inglês, pequena, rechonchuda, olhos azuis, queixinho dividido ao meio, quem conseguira enleá-lo e prendê-lo, conduzindo-o à igreja, muito orgulhosa e feliz.
Apesar de o casamento ter durado menos de quatro anos, a verdade é que ela guardava desses dias longínquos uma saudade teimosa. Ao se separarem, tinha continuado no mesmo apartamento da lua-de-mel – com sala de jantar onde cantava um cuco, o quarto de dormir abrindo a larga janela para a verdura de um parque, a saleta que servia de escritório, a cozinha ladrilhada, o banheirinho ao lado, tudo muito limpo e reluzente. Um dia – pensou – talvez Jorge voltasse. Nos primeiros tempos, sofrera muito com a solidão à sua volta, tentara distrair-se na leitura, pedira no instituto que lhe dessem mais alunos – enquanto Jorge continuava a aparecer nos jornais, sempre bonito, casado agora com uma artista de cinema, criatura magra e pestanuda, com ar de mulher fatal.
Depois, já afeita à sua paz, Madalena o perdeu de vista. Escassearam pouco a pouco as notícias a seu respeito, outros campeões de esgrima apareceram, a artista de cinema saiu dos cartazes, e a vida continuou. Volvidos onze anos, tornou-se a falar dele e da artista, a propósito de um acidente de automóvel em que ela morreu e ele se salvou. Só aí é que Madalena veio a saber que Jorge tinha uma casa no Mediterrâneo, nos arredores de Cannes, e que se dedicava à criação de cavalos de corrida.
No ano seguinte, pelo fim do outono, voltou a ter notícias dele, ainda pelos jornais, a propósito de seu novo casamento, desta vez com uma condessa italiana, dona de um circuito de casas de moda.
Deve ser mais velha do que ele e meio doida – admitiu Madalena, ao ver-lhe o retrato numa revista.
Outros anos passaram, com as mesmas aulas no instituto, as férias escolares, as excursões com os alunos, os concertos da Orquestra Sinfônica, e Madalena não deixou de ser, ao longo desse tempo, a excelente professorinha de inglês, sempre cheirando a pó-de-arroz e alfazema, muito bem-vestida, risonha, olhinhos levemente empapuçados, umas ruguinhas impertinentes riscando-lhe a testa e os cantos da boca, o mesmo passinho esperto.
Assim que o Abelardo e a Silvinha atravessaram a porta da sacristia, Madalena relanceou o olhar em busca do Jorge.
Está na fila dos cumprimentos – adivinhou, orientando-se para lá com o coração alvoroçado.
Mas na longa fila dos cumprimentos, que tomava todo o corredor lateral da nave e entrava pela sacristia, não deu com ele, por mais que assestasse o lornhão em várias direções. Teria ido embora?
Com certeza – suspirou Madalena, a bater com as lentes do lornhão, aborrecidamente, na costa da mão esquerda – Ele ficou no começo da fila, cumprimentou logo os noivos, e deu o fora.
Com uma ponta de tristeza no semblante empoado, esperou pacientemente a sua vez na fila preguiçosa, passo a passo, a lutar consigo mesma para apagar da consciência o desapontamento que a torturava.
Depois de trinta e dois anos de separação, fora aquela a primeira vez que vira o Jorge. De retrato, pelas revistas, acompanhara-lhe, até certo ponto, a gradativa ruína. Agora, ao divisá-lo perto do altar-mor, sentira-o mais velho, mais acabado, embora parecendo aquém da verdadeira idade, o corpo esguio arrimado à bengala de castão de ouro, os mesmos bigodes, a mesma cabeleira derramada.
Um bonito velho – concluiu Madalena, com outro suspiro.
E distraiu-se consigo mesma, sem perceber que a fila ia caminhando. Foi preciso que um senhor magro, que se achava logo atrás e brincava com a corrente do chaveiro, a advertisse, num sussurro:
Faça favor, minha senhora.
E ela, assustada, adiantando-se:
Perdão.
Meia hora depois, ao sair à rua, desceu por uma das portas da sacristia sobre o pátio da igreja, orientando-se, com o mesmo passinho ágil, para a parada de seu ônibus, duas esquinas adiante.
Aqui fora havia ainda uns restos da luz da tarde. Porém Madalena, debaixo de seu chapeuzinho de palha, olhava mais dentro de si própria, atiçando reminiscências antigas, do que para a claridade alta, tocada de tons vermelhos, que se esgarçava por cima dos telhados.
– Ainda bem que ele não me viu – considerou, com o pensamento no ex-marido.
Podia ter vindo com o vestido de seda azul que ainda não estreara e que deixara para a Missa do Galo, mais tarde. Gostava mais do vestido novo, com seu adorno de vidrilhos, do que do vestido de renda negro com que viera ao casamento.
Em todo caso, se ele me visse com este, – concluiu, estendendo o olhar para a rua, em busca do ônibus - eu não estaria mal-vestida.
O dia límpido, com a animação das ruas, o vento frio, as árvores nuas, ajustava-se à véspera do Natal. Da porta das casas, por entre ramos verdes de pinheiros, pendiam sinos prateados, com a inscrição das Boas Festas. Adiante, na amplidão de uma praça, debaixo de um toldo de ramos entrelaçados, via-se um imenso presépio, com figuras em tamanho natural.
E o que Madalena via, olhando no sentido da praça, eram os Natais de outrora, três na companhia do marido, outros sem ele no aconchego do seu apartamento, outros ainda em alheias terras, sob a neve tiritante, ásperas ventanias, o bater festivo de sinos e carrilhões.
Estava tão absorta no seu mundo de lembranças que não viu aproximar-se um imenso carro cinza, quase a raspar o meio-fio. Voltou a assustar-se, caindo em si, ao dar com o automóvel ao seu lado, ao mesmo tempo em que, de dentro, no banco dianteiro, o rosto do Jorge a olhava, sorrindo:
Quer que eu a deixe em casa, Madalena?
Sim, sim – concordou, alvoroçada e vermelha.
E depois que aceitou o convite, admitiu, ainda corada, um ardor nas orelhas e na raiz dos cabelos, que devia ter relutado um pouco. Mas já o Jorge abria a porta do carro para saltar, apoiando-se nas bengala.
Não precisa descer – opôs-se Madalena.
E ele, teimando, a firmar no chão da calçada a ponta da bengala.
Ora essa! E pôr que não? – replicou, abrindo o sorriso.
De perto parecia mais velho, com as mãos enrugadas, pequenas manchas escuras subindo para os punhos, os vincos do rosto bem marcados, a pele do pescoço um tanto mole no colarinho frouxo. Mas o sorriso tinha o dom de remoçar-lhe o semblante, aguçando o brilho dos olhos, apertando as pálpebras, abrindo mais a boca, repondo na fase queimada um toque muito pessoal de malícia instintiva.
Com os belos modos de outrora, Jorge fez uma vênia, beijou a mão de Madalena, mesmo apoiando-se na bengala ajudou-a a acomodar-se no carro, bateu a porta, veio caminhando devagar para entrar pelo outro lado.
E ao sentar-se, descansando as mãos no volante:
– Passei a andar de bengala – explicou-se, acelerando o motor – depois uma queda de cavalo. Felizmente não fiquei impossibilitado de guiar automóvel.
E quando o carro deslizou na pista de asfalto, Jorge olhou Madalena pelo canto dos olhos, tornou a sorrir:
– Você se lembra do nosso primeiro automóvel? Era um fordeco preto, que fazia um barulho danado nas subidas e me obrigava a saltar para virar a manivela quando o motor parava.
Madalena riu também, dizendo que sim, que se lembrava perfeitamente. E acrescentou, numa voz emocionada:
– Foi nele que saímos da casa de mamãe para o nosso apartamento.
– Por sinal, – completou Jorge, no mesmo veio de lembranças - que tinham amarrado no pára-choque não sei quantas latas velhas e um balde de lixo.
Ela riu, confirmando:
– Trote do meu irmão, que dava tudo por uma brincadeira.
– Como vai ele? – indagou Jorge, ainda sorrindo.
– Morreu. Já faz quase dez anos.
– Não sabia.
Ficaram os dois em silêncio, graves, tocados pela consternação comum, e foi Jorge quem reatou o diálogo:
– Sabe o que mais me tem doído, neste meu regresso? É saber que estão mortas as pessoas que procuro. No meu clube, só encontrei dois contemporâneos: o Quincas, meu companheiro de remo, e o Felipo, que me ensinou esgrima. Estão dois cacos velhos, principalmente o Felipo. Lembra-se dele? Alto, peito avantajado, cabelos crespos. Está magro, só pele e osso, dentro de um paletó imenso, careca, a boca funda, sem dentes. Foi ele que me reconheceu. Eu passaria por ele sem saber quem era. O Felipo! Quem diria! – exclamou, pesaroso.
E Madalena, aproveitando o silêncio:
– Mas você continua a mesma coisa. O cabelo é que ficou grisalho. E o bigode também.
Ele riu alto. E depois, recolhendo o riso:
– Você, com o tempo, aprendeu a mentir? Você, sim, é que continua com o mesmo ar de menina, o mesmo perfume, a pele bonita, sem tomar conhecimento da velhice. Meus parabéns.
E de repente, mudando o tom da voz:
– E eu que ainda não perguntei onde você está morando?
No nosso antigo apartamento – replicou Madalena, firmando o olhar no rosto do companheiro para sentir-lhe a reação.
– Ah! Não me diga! Com a janela para o parque? A saleta com a estante dos livros e a vitrina dos bibelôs? A cadeira austríaca na sala de jantar? Que maravilha! Que saudade isso me traz!
Mas ficou logo sério, lembrando-se de ter ouvido, fazia alguns anos, que também Madalena andava a recompor a sua vida, agora com um companheiro de instituto, também professor de línguas. Quis perguntar-lhe se era verdade que ela voltara a casar-se, mas o medo da confirmação fê-lo calar-se, ao mesmo tempo em que freiava o carro ante o olho vermelho do sinal do trânsito.
E foi ela quem perguntou:
– Você continua casado com a Condessa italiana?
– Morreu há seis meses, depois de passar quase três num sanatório da Suíça. Sozinho, desfiz a casa de Capri, resolvi viajar, agora aqui estou – respondeu Jorge, torcendo o volante para entrar na ruazinha de ladeira suave, perto do parque.
E sem se voltar para Madalena:
– Como você vê, não esqueci o caminho...
Parou defronte de um prédio cor-de-rosa, janelas de sacada, portal manuelino, na esquina da rua. E ainda com as mãos no volante, olhou em volta, buscando conferir as imagens que tinha na memória coma as imagens que ia recolhendo nas pupilas emocionadas.
– Muita coisa mudou neste trecho – observou. O prédio junto do nosso é novo. Lembro-me bem que aí havia uma garagem. Ali adiante era uma confeitaria.
– Agora é um restaurante – esclareceu Madalena.
E baixando o olhar para a bolsa e as luvas, convidou-o, num fio de voz, muito vermelha:
– Se você não tiver outro compromisso, venha tomar chá comigo, e preparado por mim, como antigamente.
– Não, não tenho – replicou ele, abrindo a porta ao seu lado e adiantando a ponta da bengala para o asfalto da rua.
Calçando uma das luvas, ela esperou que ele desse a volta pela frente do carro para abrir a porta do lado da calçada. E aceitou, para saltar, a mão solícita que ele lhe ofereceu.
À entrada do prédio, Jorge parou, alongou a vista, calado, pálpebras contraídas:
– E o porteiro ainda é o velho Nuno? – indagou.
– Hoje é um filho dele. Muito fino, muito atencioso, como o pai.
No elevador minúsculo, que apenas dava para duas pessoas e subia devagar, Jorge abriu a porta, em silêncio, emocionado. Como não recordar, naquele momento, a noite longínqua em que subira com Madalena pela primeira vez, naquele mesmo elevador? Agora, não via-lhe o chapeuzinho de palha, a ponta do nariz, o bustozinho cheio onde reluzia um broche de platina. E não se decidia sequer a lhe tocar o braço e o ombro, intimidado por seu próprio constrangimento. No entanto, tinham sido um do outro, durante tanto tempo, sem segredos, confiantemente...
No sétimo andar, assim que o elevador parou, Madalena passou à frente, reconhecendo, mais por hábito que por instinto, que, dali em diante, lhe cabia a iniciativa dos movimentos, já com a chave na ponta dos dedos, caminho da porta de ferro batido ao fundo do corredor e onde se via um sinozinho de papelão com os votos de Boas Festas.
Quando a porta se descerrou, Jorge teve a sensação perfeita de que retrocedia aos dias antigos que ali vivera. Tudo parecia intocado, como que posto à margem do lento fluir do tempo. A mesa redonda, com a sua toalha de crivo e o jarro azul com flores de papel crepom. Na parede fronteira, o cuco de cedro, com a janelinha fechada e o pêndulo baloiçando. No chão, o mesmo cacho de uvas e gesso, entre três figos e duas maçãs. Dois pares de xícaras de porcelana inglesa pendiam dos ganchos de metal. Na parede, os quadros que tinham recebido como presente de casamento – com os mesmos galpos perseguindo a caça e o mesmo chalé normando repetido nas águas de um lago. Tudo igual, sem uma alteração sequer, até mesmo no colorido das paredes, onde o velho papel pintado, protegido da luz direta que se alastrava na sala de visitas e no quarto de dormir, mantinha ainda o tom primitivo, com um cavalo baio, de cabeça pendida, rédeas soltas, a dessedentar-se nas bordas de um tanque.
– Entra – convidou Madalena, ao ver que Jorge não se movia da moldura da porta, os olhos crescidos para o passado.
E ele, dando um passo, a apoiar-se mais na bengala:
– Parece que foi ontem que saí daqui – comentou, enchendo devagar o peito largo, ao mesmo tempo em que ouvia a porta ranger nos gonzos, fechada lentamente por Madalena.
No silêncio aconchegante, ouviu mais nítido o tique-taque do cuco, e mais uma vez se voltou para dentro de si próprio, recolhidamente, enquanto Madalena desaparecia pela porta do quarto, como uma sombra que passa, e ali discretamente se fechou.
Sozinho, Jorge sentiu-se mais à vontade. E perguntou a si mesmo, o braço descansando no mármore do aparador, se não errara ao trocar a paz daquele canto, na companhia de Madalena, pela vida agitada que o levara dali.
– Cada um de nós segue o seu destino – consolou-se.Moço, tinha-se cansado daquela ordem, cada coisa no seu lugar – lembrou-se. Ou havia cedido unicamente aos olhos pestanudos de Aglaia, menos belos na tela do cinema que em pessoa? Agora, de cabelos grisalhos, almejava paz em seu redor, a cadeira austríaca junto ao braseiro, o cachimbo, uma revista ou um livro, o velho cuco da parede cantando as horas.
Ah, como seria bom, depois de tanta emoção intensamente acumulada na memória, terminar ali, sossegadamente, a viagem da vida!
Novamente apoiou o corpo na bengala, deu outros passos, entrou na sala de estar com o mesmo olhar introspectivo. Também ali tudo estava como dantes. A estante fechada, com os livros harmoniosamente perfilados, quase todos ingleses, principalmente poetas. A um canto, sobre um tamborete, a imensa corola do gramafone, à espera do disco e das voltas da manivela. A vitrina dos bibelôs, mais adiante, com a estatueta de louça ao centro ensaiando o seu rodopio de bailarina. No outro canto, a secretária com a cadeira giratória, uma pena de ave espetada no tinteiro. Os pais de Madalena, a óleo, na parede ao fundo, quietos nas molduras douradas, como que olhando a relva do parque que se descortinava, muito verde, através da vidraça das janelas.
E nisto Jorge sombreou o olhar, franziu a testa. À sua esquerda havia surgido uma mesa de jogo com um tabuleiro de xadrez. Madalena não gostava de xadrez, dizia mesmo que o jogo lhe dava sono...Como explicar agora aquele tabuleiro, com os seus cavalos em pé, as suas torres, os seus reis, as suas rainhas e os seus peões, dispostos frente a frente para os movimentos de uma partida?
Sem esforço, magoadamente, Jorge pôs um homem na cadeira junto à mesa, defronte do tabuleiro, a olhar interminavelmente as peças, na calada meditação de cada lance, e pôde ver também, com igual melancolia e coração apertado, a figura calma e feliz de Madalena, sob a luz do abajur de pé, na poltrona ao lado da estante, distraída na leitura.
Depois, ainda sofrendo, Jorge buscou no resto da sala outros vestígios do jogador importuno.
– Com certeza – concluiu, pesaroso – ela casou mesmo com o colega do instituto.
Andou até a janela, procurou espairecer a mágoa na verdura do parque, quase não reparou que a luz da tarde ensombrecia, as primeiras estrelas faiscavam por cima das árvores esgalhadas.
Ouviu nesse momento a voz de Madalena, à entrada da sala:
– Fique à vontade, agora vou preparar o chá.
Ele deu as costas ao parque, olhou-a de frente, dizendo que sim com a cabeça. Viu que ela trocara o vestido, trazia agora um avental, um toque novo nos cabelos. Parecia mais moça com penteado para cima, os braços nus até a altura dos cotovelos, um sinal azulado quase no meio do queixo.
Num relance os seus olhares se encontraram, ele lhe sorriu de modo triste, ela também sorriu, ambos em silêncio, como embaraçados. E quando ele mergulhava a mão no bolso do paletó em busca do cachimbo, ela desviou a vista, caminhou para a cozinha.
Novamente só, Jorge tardou a pôr o fumo no cachimbo, o corpo apoiado no descanso da janela. Quando chupou a primeira fumaça, tornou à sala de jantar, pesadamente, vagarosamente.
Madalena havia acendido as lâmpadas do lustre, a mesa já estava posta, com as duas xícaras, o açucareiro de prata, a manteigueira, o vidro de geléia, os descansos de porcelana, os guardanapos de linho.
Antes de sentar na cadeira austríaca, Jorge olhou na direção do quarto, hesitando se iria até lá. Por fim, decidindo-se, deu impulso ao corpo, aceitou o que viesse, na verdade não tinha contas a pedir a Madalena, pois fora ele que a deixara, sem ao menos se despedir.
Viu primeiro a cama, grande no quarto espaçoso, entre as duas janelas sobre o parque, a colcha vermelha caindo para os lados, quase a arrastar no tapete. Na parede, acima do espelho da cabeceira, a Virgem com o Menino, numa velha gravura já meio desbotada. A cômoda de pau preto, com severos argolões doirados, servia de pedestal a uma imagem de Sant’ana que a redoma de vidro protegia.
– Tudo como no meu tempo – reconheceu Jorge, já dentro do quarto, ao lado do guarda- roupa.
Mas logo retrocedeu, quando baixou o olhar para o tapete do chão, ao pé da cama, e viu, de um lado, as sandálias de Madalena, peito azul debruado de branco, e do outro um velho par de chinelos de homem, já bem usados, apenas com o brilho que lhe dera a flanela da limpeza diária.
– São dele – afirmou Jorge, amparando-se na bengala, convencido agora de que, a qualquer momento, iria defrontar-se com o marido de Madalena.
E veio-lhe, num impulso, a vontade veemente de ir embora. Era demais ali. Podia sair, não fazia falta. Por um instante, impelido pela curiosidade dolorosa de quem busca mais uma prova para o seu desapontamento, quis abeirar-se da cama e erguer os travesseiros, certo de que ia encontrar, debaixo de um e de outro, uma camisola de dormir e um pijama, cuidadosamente dobrados sobre o damasco da colcha, à espera da intimidade conjugal que as sombras da noite favorecem – mas coibiu-se a tempo, travando mais sobrancelhas, e foi saindo arrastadamente, de cabeça baixa, o cachimbo apagado na concha da mão.
Na sala de jantar, ao passar rente à cadeira austríaca, a meio caminho da porta do apartamento, ouviu o cuco dar as horas. Parou, levantou o olhar, viu o passarinho debruçado na janelinha aberta, esperou que seu canto terminasse: glu-glu, glu-glu, por entre as notas de um minueto. E ao fim do canto deu por si sentado na cadeira, a aspirar o cheiro forte do pão tostado que vinha agora da cozinha, de mistura com o chiar do queijo derretido.
Aos poucos, com a bengala em cima dos joelhos, deixou-se impregnar, olhando a sala, pela poesia de seu passado, descobriu a um canto o pinheirinho perfilado ao fundo do presépio de louça, e entrou a balançar-se na cadeira, como outrora.
– Fiz as torradas como você gosta – veio dizendo Madalena, com a travessa de prata nas mãos, ao sair da cozinha.
O calor do fogão tornara mais rosado o seu rosto, dera mais luz aos seus olhos. E ela sorria feliz, no contentamento de ser gentil. Deixou a travessa sobre a mesa, tornou depressa à cozinha.
– Aproxime-se, ocupe o seu lugar – disse ela ao sair, indicando a Jorge uma das cadeiras da mesa – Era aí que você sentava.
E ele estava sentado, já com o guardanapo nas mãos, quando Madalena voltou com o bule fumegante:
– Você vai tomar um chá de Hong Kong que é uma verdadeira delícia – avisou, deixando o bule no descanso de porcelana. De vez em quando meus alunos me fazem uma surpresa. A última foi este chá.
Antes de sentar em frente ao Jorge, tirou o avental, reinstalou-se na sua condição de dona da casa, deu um toque nos cabelos, corrigiu a gola do vestido. Ao sentar, moveu de leve os lábios num sussurro de prece. Depois tornou a sorrir, desdobrou o guardanapo, procurou conduzir a conversa, enquanto punha no fundo da xícara uma rodela de limão:
– Você está de visita ou voltou para ficar? – indagou.
E continuou a servir-lhe o chá, com método, solicitamente, ao mesmo tempo em que lhe recolhia as palavras, ora grave, ora risonha, sem deixar sentir que, por baixo do corpete muito justo, seu coração palpitava mais depressa, sobretudo quando ouviu Jorge dizer que pretendia ficar.
– E você, que é que tem feito? – indagou ele, querendo ouvi-la também.
– Ensino, leio, viajo – respondeu Madalena, com a torrada diante da boca, entristecendo o olhar.
E ele, após um silêncio, relanceando a vista pela sala:
– Eu me admiro como é que você conservou tudo isso como no nosso tempo. Igual. Igualzinho. Nada mudou.
Ela sorveu um gole de chá, ele tirou da travessa outra torrada, pôs-se a mastigá-la.
No silêncio longo, ouviu-se, mais forte, o tique-taque do cuco, acompanhado pelos estalitos secos do aquecedor elétrico no vão da lareira.
E Madalena:
– Sempre gostei de conservar o que é meu. Para que mudar, se me sinto bem? Sempre fui assim. Desde menina. Outro dia, arrumando os papéis de uma arca, imagine só o que foi que encontrei! Meu primeiro livro de estudos e vários cadernos de meus deveres escolares, que eu mesma tinha guardado! Fiquei tão emocionada que chorei.
Sorveu outro gole do chá, sorriu e suspirou.
– Quando mamãe morreu – prosseguiu, no mesmo tom pausado – quase briguei com meu irmão para ficar com o tabuleiro de xadrez que foi de papai. A muito custo, consegui trazê-lo comigo. Se você souber por que, vai achar graça. Pode rir, se quiser. Ouça. Quando eu era menina, papai me sentava nos joelhos e me contava histórias com as pedras do seu jogo de xadrez.
Riu, enxugou os lábios na ponta do guardanapo, fez menção de empunhar o bule para servir mais uma chávena ao Jorge.
– Não, obrigado – agradeceu ele, com a mão sobre a xícara.
E como a noite se havia fechado, começava lá fora, a pouco e pouco, a animação do Natal, com foguetes espaçados, repiques de sinos e a melodia da Noite Feliz que as estações de rádio repetiam.
Jorge tornou à cadeira austríaca, Madalena desfez a mesa, novamente pôs ali, sobre a toalha de crivo, o jarro azul, com as flores de papel crepom. Em seguida sentou numa cadeira de braços, cruzou as pernas, descansou as mãos no joelho, quase imobilizada, como na tela de um retrato.
Mais de uma vez, no correr da conversa distraída, Jorge esteve a ponto de perguntar-lhe pelo marido. Devia chegar a qualquer momento – pensou. Ou talvez estivesse fora, numa excursão com os alunos – admitiu. De qualquer forma, sentia-o presente, não apenas no par de chinelos ao pé da cama, mas ainda no ambiente à sua volta, denunciado por qualquer coisa sutil que não saberia definir ou explicar.
Às nove horas, advertido pelo cuco, tratou de levantar-se para ir embora e teve a sensação de que se erguia com dificuldade, como se estivesse a puxar as raízes de seu corpo, mergulhadas agora na palhinha da cadeira.
– O que é isso? – estranhou Madalena, ao vê-lo adiantar a mão para despedir-se.
– Vou indo.
– Por que não fica para ir comigo à Missa do Galo? – alvitrou ela, os olhos suplicantes à tona do rosto corado.
E ele, com as duas mãos no cabo da bengala:
– Não tenho esse direito...
– Por que não? – tornou Madalena, numa voz convicta – Hoje somos dois velhos, você com sessenta e oito anos, eu a caminho dos sessenta, só temos que dar satisfação a nós mesmos.
Jorge pareceu hesitar, ainda com as mãos no cabo da bengala, a cabeça baixa, os olhos no chão. E erguendo por fim o olhar:
– Quer saber o que é que me impede de ir com você?
– Diga.
Jorge segurou Madalena pelo braço, levou-a até à porta do quarto. E com a ponta da bengala, mostrou o par de chinelos:
– Aquilo.
– O par de chinelos?!
– Sim – confirmou ele, numa voz severa, semblante fechado.
Madalena abriu o rosto, na explosão da risada, mas logo tentou reprimi-la, tocada pela emoção. E sorrindo, quase a chorar, com as mãos nas mãos do companheiro:
– Os chinelos são seus, Jorge. E estão ali há trinta e dois anos esperando por você!