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Entrevista
Contardo Calligaris
A base dos seus ensaios leva em conta a supremacia das éticas individuais sobre um código moral geral?
Na verdade eu não sei se, necessariamente, o individualismo moderno corresponde a uma época de muitas éticas individuais. O que faz diferença é que a modernidade não é uma época regrada por um código estabelecido. É uma época fundamentalmente regrada pelo que se chama, há bastante tempo, de foro íntimo de cada um. É só no século 17 que aparece na cultura ocidental a distinção entre o que é legal, ou seja, segundo as leis, e o que é justo. O justo para nós é certamente mais importante do que o legal. Você em nome da justiça pode até fazer alguma coisa ilegal, e tudo isso vai ser moralmente correto. O contrário já é problemático: quando uma lei parece nos empurrar a fazer algo injusto, imediatamente pensamos que essa lei deveria ser modificada. Era impensável para um sujeito clássico que alguma coisa pudesse ser ao mesmo tempo legal e injusta. O exemplo mais conhecido por todos é o de Sócrates: ele foi condenado a tomar cicuta e aceitou a punição que lhe foi imposta pelas leis de Atenas porque não havia uma distinção entre justo e legal. Se Sócrates fosse um herói moderno, teria considerado essa condenação injusta e, portanto, teria se sentido perfeitamente autorizado a fugir. Uma vez que essa distinção está colocada, as questões éticas se tornam muito complicadas, porque elas não podem ser facilmente resolvidas simplesmente olhando para as leis. Cada vez mais a opinião moral de cada um está acima das leis impostas. A opinião moral individual é certamente uma propriedade da subjetividade moderna.
E essa opinião moral é pautada em algum elemento geral ou cada um constrói seu código?
Evidentemente o problema que a modernidade se colocou desde o começo é: "Se a opinião do indivíduo estiver acima das leis sociais, como é que podemos constituir uma sociedade?". Por bem ou por mal, estamos vivendo em uma sociedade com uma série de coisas que compartilhamos e, apesar de não ser uma sociedade tranquila, ordeira, vivemos, de fato, em uma sociedade. A primeira explicação, formulada pelos iluministas, particularmente por Rousseau, era a seguinte: "Como é que se descobre o que seria a vontade geral da uma sociedade?". A resposta dele é muito curiosa. Diz que para que se descobrisse o que é a vontade geral, seria preciso que cada um, no momento de expressar sua vontade política, por exemplo, pudesse opinar absolutamente sozinho, sem ser influenciado por nenhum tipo de pertence a grupos diferentes, interesses, expressão, opinião, etc. Essa idéia, evidentemente, é fajuta, não funciona em absoluto, mas era a idéia de Rousseau e eu acho que as coisas foram por um lado completamente diferente. O fato que constrói a opinião de cada um não é a perfeita solidão, que não existe, pelo contrário, o que molda a opinião individual, moral ou política é uma relação dialética com a opinião pública. Ninguém nasce com uma opinião formada. As opiniões se constroem na medida em que participamos de sistemas de crença, sistemas que, enfim, se resumem nessa espécie de campo movediço que chamamos de opinião pública. E a opinião pública é uma coisa que você não pode pegar na mão. Não é um livro, não é um código, na verdade, nem existe. É uma espécie de fantasma levantado pelas pesquisas de opinião e que muda o tempo inteiro e evidentemente age sobre nós. Nada garante que as opiniões de cada um sejam corretas ou erradas. Aliás, não sei nem se em uma sociedade moderna a questão seja essa. Provavelmente é uma questão falsa, sem interesse.
E a interferência dessa opinião pública na opinião particular de cada um é boa ou ruim?
O fato é que é ela que nos fabrica como sujeitos modernos. O que eu posso dizer? Era bom ou era ruim que um sujeito de uma seita medieval vivesse totalmente conforme um código de ética comum? Do ponto de vista moderno era ruim. A opinião pública é, de uma certa forma, o equivalente, para nós modernos, do que era, para um sujeito clássico, um código ético pré-estabelecido. Em suma, a opinião pública preserva pelo menos a ilusão de nossa liberdade. Preserva, digamos, o sentimento de nossa liberdade, porque você pensa que pode concordar ou não, participar ou não dessa opinião, já que essa opinião não é maciça.
Tendo uma opinião pública geral, como ela se cristaliza no mundo prático?
Você constata com facilidade que a opinião pública moderna, e sobretudo contemporânea, é democrática. Há pouquíssimas condutas que verdadeiramente produzem, do ponto de vista da opinião pública, exclusão. Sobretudo nas últimas décadas, a opinião pública é cada vez mais compreensiva. Não penso que lidamos com um universo totalmente compreensivo. Acredito que exista ainda uma enorme discriminação que está muito além do que a maioria imagina. Se é verdade que você, hoje em São Paulo, não tem nenhum problema em alugar um apartamento se for homossexual, não sei se isso é verdade em todos os bairros ou em uma cidade no interior de Minas. Se esse homossexual for diretor do Bradesco ou da IBM, acredito que não haverá problema. Mas eu duvido que você possa, uma vez sendo dirigente do Bradesco ou IBM, colocar a foto de um amante do mesmo sexo em sua mesa no lugar onde muitos colocam a foto da mulher e dos filhos.
Trazendo essa discussão para o ponto de vista cultural, o senhor pode considerar que há manifestações culturais mais e menos covardes do que outras. Sua crítica ao movimento antropofagista, defendido pelo tropicalismo, fez essa distinção?
Essa é uma história velha que eu não estou certo de assinar embaixo completamente, mas escrevi uma resposta ao Caetano, através de uma crítica que fiz ao antropofagismo. O problema é o seguinte: eu cheguei ao Brasil nos anos 80, certamente não é o momento glorioso do movimento tropicalista, que foi nos anos 60. A minha impressão nos anos 80 era que as sobras do tropicalismo brasileiro eram uma extraordinária desculpa, se posso dizer assim, para a manutenção de formas políticas e sociais arcaicas dentro de um país e de uma organização social que estavam cada vez mais modernos. Sem dúvida faz parte, embora não seja um elemento dos mais vistosos, mas faz parte dos elementos do tropicalismo tradicional a idéia do Brasil como democracia racial. Porque o movimento antropofagista e tropicalista acreditava, como Gilberto Freire, na idéia da miscigenação. Essa não é uma idéia falsa, mas a consequência que isso trouxe informando que o Brasil milagrosamente não seria um país racista é equivocada. O mito da democracia racial, não só os brasileiros acreditaram nisso, mas também se acreditou nisso também no exterior durante muitos anos.
E o senhor também chegou com essa idéia?
Na verdade eu não cheguei com idéia alguma porque nunca tinha vindo para a América Latina e tinha uma idéia muito vaga do Brasil, certamente exótica, ou seja, tropicalista vista de fora, desde Frank Sinatra até Zé Carioca, enfim, uma idéia do Brasil-Carnaval. O mito da democracia racial é muito interessante porque visivelmente ele é um mito da classe dominante, um mito paternalista que na verdade serve unicamente aos interesses dos brancos. Os brancos estão perfeitamente tranquilos para dizer que aqui não tem racismo coisa nenhuma. Mas quem diz isso são os brancos. Muitos outros traços do Brasil exótico, do cartão-postal brasileiro, na verdade, são maneiras de esconder contradições sociais e de manter relações arcaicas herdadas de uma época pré-moderna, portanto, do Brasil escravagista. Outro traço enganoso é a dita cordialidade brasileira, retomando o termo de Sérgio Buarque de Holanda, que evidentemente sabemos que não tem nada a ver com gentileza, pelo menos nos termos de Sérgio Buarque.
Sérgio Buarque também já rechaçava o conceito dado a nossa lhaneza...
Sim, ele levantou esse termo, mas dando um sentido negativo. Mas a conotação tomou um traço positivo que consiste no fato de que você pode sentar-se num café e dizer ao garçom: "Traz um café pra gente?". Isso você pode achar muito simpático, mas é uma maneira de esquecer o passado escravagista. Em suma, há uma enorme discrepância entre o tropicalismo dos anos 60, com o que sobrou dele nos anos 80, ou seja, um cartão-postal exótico, que na verdade me serviu como uma nuvem de fumaça jogada na frente de uma realidade social extremamente cruel.
Nesse mesmo sentido há outros traços da cultura brasileira que caracterizam esse "cartão-postal exótico": a mulata, o futebol e o Carnaval...
O Roberto da Matta, em um dos seus livros, sai com uma frase assim: "Eu sou brasileiro porque gosto de samba, futebol, etc.". Primeiro essa visão define o Brasil como uma caricatura exótica, estampada nos folders para agência turística alemã. Essa visão de que o Brasil é o lugar da sexualidade, da mulata, etc., acho fundamentalmente racista, porque no fundo a mensagem que ela transmite é: se você for um pequeno burguês alemão, venha para o Recife que ainda há meninas por US$ 20 e talvez abaixo de 15 anos. Isso eu não acho engraçado. O samba e o futebol impelem o brasileiro a esquecer qualquer tipo de interesse crítico político-social, camuflando a verdadeira consciência. Eu francamente não acredito que o Brasil seja definido por meio dessa imagem, mais do que isso, acredito que essa é uma visão do Brasil profundamente subdesenvolvido. Em última análise, dessa maneira mostra-se o Brasil como um país prostituído.
A partir da imagem degradante que muitos fazem do país, pode-se dizer que falta um debate cultural substancial?
A qualidade da intelligentsia brasileira, se é que dá para usar esse termo, e a qualidade do debate intelectual no Brasil são superiores se comparado com a Europa. Há muitos intelectuais brasileiros, por exemplo, que decididamente combatem esse cartão-postal exótico do Brasi. Faz tempo que eu não leio mais ninguém escrevendo que: "A coisa mais importante do Brasil era o Carnaval", eu já não leio isso. Você está lendo isso?
Em outro sentido, sim. Por exemplo em época da Copa do Mundo, só se fala em futebol, relegando os outros assuntos para um segundo plano.
Mas o problema não é o interesse por futebol ou curtir Carnaval. O problema é identificar o Brasil com futebol e Carnaval. É uma questão de medida. Aliás, seria interessante propor uma pesquisa, por exemplo, esta exata questão, na rua, para a pessoa, o que ela prefere, dois bilhões de dólares para a educação pública ou que a seleção ganhe essa Copa?
O senhor nasceu na Itália, viveu muitos anos na França e Inglaterra e agora divide o tempo entre o Brasil e os EUA. Olhando de fora, como o senhor analisa a atual situação brasileira?
A riqueza de um país, sobretudo no mundo moderno, está no trabalho da sua gente. O Brasil, por alguma razão, a partir do Estado Novo, fez a extraordinária besteira de parar de receber imigrantes e tornou-se um país-emigração. Eu nunca entendi porque um país desse tamanho se fechou. Não seria errado pensar que dos países de origem colonial os que se deram melhor são aqueles que ainda recebem imigrantes, por exemplo EUA, Canadá e Austrália, que continuam tendo uma política de imigração regular, quase um milhão por ano de imigrantes legais, fora os ilegais que são ainda mais. Mas de qualquer forma, alguma coisa mudou e hoje o Brasil é um país de emigração. Só nos EUA há, no mínimo, um milhão de brasileiros. São brasileiros, aliás, altamente representativos, a maioria está entre a classe média baixa e classe média. Esse movimento traz primeiro uma influência cultural muito grande, porque a imigração chama imigração. Além do movimento financeiro, já que a maioria dessas pessoas mandam dinheiro para a família, há a troca cultural.
Como a comunidade brasileira é vista nos EUA?
Em certas localidades americanas, o número de brasileiros residentes é muito significativo. Em Boston, que tem o tamanho de Porto Alegre, vivem quase 200 mil brasileiros numa cidade de um milhão e 500 mil habitantes, isso é muita gente. Começa a haver uma comunidade muito importante e os americanos estão se dando conta disso, tanto que acontecem coisas surpreendentes. Mesmo que eles sejam em grande parte ilegais, sabem que um dia serão legalizados. Assim, já existem parlamentares americanos que gostam de encontrar a comunidade brasileira em busca de futuros eleitores. Outro fato importante é que essa comunidade é extremamente ordeira. Das comunidades sul-americanas, é aquela que tem, em porcentagem, o menor número de pessoas presas ou perseguidas por crimes comuns. E mais do que isso, eles são ordeiros no sentido banal, ou seja, o mesmo brasileiro que ao volante de seu carro em São Paulo vai dirigir como um louco, nos EUA ele dirige igual a uma velhinha de subúrbio, não por medo, mas por identificação com as regras da convivência social. A minha idéia é que grande parte dessas pessoas não emigrou somente por vantagens financeiras, pois, afinal, são bastante relativas. Para muitos, a razão por que emigraram é devido à falta de um quadro social em que eles se sintam respeitados, embora ilegais.
Como é o seu relacionamento com os imigrantes brasileiros?
Meu contato com a comunidade brasileira é muito especial. Mas desprezo a classe alta que vai fazer compras lá. Essa classe se revela de uma vulgaridade, com todas as devidas exceções, faminta de qualquer traço distintivo de sua superioridade econômica que possa levar de volta ao Brasil. É deprimente a idéia de que uma viagem turística se transforme exclusivamente numa orgia de compras, além da miséria das conversas dentro do avião, em que só se escuta, de Nova York até São Paulo, os preços da mercadoria comprada. Quando um brasileiro emigrado recebe amigos que vão para uma visita e passam uma semana fazendo compras insensatas, ele passa por uma verdadeira tortura, pois, nos EUA, a relação de todos com o dinheiro, inclusive dos brasileiros que moram lá, é uma relação que não permite esse consumo exagerado e traumático.
E a pecha que se impõe aos americanos como sendo um povo consumista?
Na verdade é um mito que os EUA sejam um país consumista. Os americanos são muito cuidadosos com o uso do seu dinheiro e consideram que cada dólar tem o seu valor. Certamente, esse não é o caso do Brasil. Talvez essa seja uma herança de décadas de inflação altíssima que fez com que para nós o dinheiro significasse tão pouco. O que é um real? Para um americano, um dólar é um dólar. A gorjeta normal em um grande hotel em Nova York para o cara que leva a mala é de um dólar. Aqui no Macksoud se você der um dólar para o cara ele vai olhar torto, vai achar pouco.
E quanto às perspectivas para a situação política e social no Brasil?
A minha preocupação é que o Brasil está "inventando" sua democracia, que não deve ser necessariamente a cópia da democracia americana, ou francesa, ou alemã. Sua consolidação é crucial, pelo menos para manter a confiança dos investimentos estrangeiros. Acredito que o governo está trabalhando para manter a confiança, mas, ao mesmo tempo, acho que o povo brasileiro paga um preço altíssimo para que isso ocorra. O Brasil, hoje, está jogado nessa situação. É impensável criar uma situação econômica em que o país perderia a simpatia do capital financeiro internacional. Agora, até que ponto podemos pagar o preço de não fazer a política social da qual o país precisa, eu não sei.
Como é a vida do senhor nos EUA?
Atualmente estou me ocupando em terminar dois livros e vai ser assim até pelo menos julho do ano que vem. Então hoje estou só escrevendo e, mesmo assim, reduzi minhas colaborações na Folha de S. Paulo. Um deles trata do individualismo moderno, mas é um livro que qualquer um pode pegar em um aeroporto para ler, não é um livro acadêmico, o título é Do Jeito Que Somos. O outro é a revisão da minha tese de doutorado que discorre sobre a crítica da personalidade do espírito burocrático. Pelo resto eu continuo sendo psicanalista. Eu continuo trabalhando em São Paulo. Venho para cá mais ou menos uma vez por mês para atender meus pacientes.
Por que o senhor decidiu vir para o Brasil? E qual sua formação?
No começo dos anos 80, fui convidado a dar uma série de palestras em Porto Alegre. Gostaram e me convidaram para uma nova série, dessa vez, por outras cidades brasileiras. Nessa ocasião, apaixonei-me por uma gaúcha. Casei-me com ela e passei a aumentar a frequência de minhas viagens para o Brasil. Chegou um momento que tive que decidir se me mudava definitivamente para cá ou parava de vir. Sou psicólogo e filósofo de formação, sou doutor em Psicopatologia Clínica, Universidade do Sul da França, até o ano passado estava ensinando Antropologia Médica na Califórnia, Isso não mudou nada para os meus pacientes paulistas, porque quando eu morava em Porto Alegre, de qualquer jeito vinha uma semana por mês.
Como psicanalista com experiência em vários países, qual a sua análise do atual estágio da psicanálise?
Essa pergunta merecia uma longa resposta... A psicanálise continua sendo, eu acredito, uma excelente descrição da subjetividade moderna. Também porque a subjetividade muda, sobretudo nas últimas décadas, acredito que tenha havido uma aceleração na mudança da subjetividade. Mas eu penso que haja excelentes razões para se continuar evocando o nome da psicanálise, que no fundo é a prática de uma terapia pela palavra. Eu acho que mesmo num lugar como os EUA, onde, sobretudo nas últimas duas décadas, a psicanálise se tornou muito menos importante do que era, do ponto de vista do exercício profissional, acho que há muito o que fazer. O único problema hoje é que existe uma certa dificuldade em considerar os meus colegas psicanalistas, globalmente, como os meus interlocutores privilegiados. Eu tenho uma certa dificuldade com isso, porque, provavelmente, se construiu nas últimas décadas alguns mitos ao redor da psicanálise com os quais eu não gosto de ser conivente. Por exemplo, construiu-se um mito segundo o qual a psicanálise devia ser proposta ou mesmo imposta como uma experiência que não teria nada a ver com a eventual procura de um bem-estar. Essa fundamentação é profundamente ilegítima. Depois, para uma parte dos meus colegas, a psicanálise se tornou não uma descrição contingente da subjetividade moderna e, portanto, uma maneira de se lidar com ela , mas se tornou uma espécie de teoria dogmática e, apesar de eu não ter nada contra as teorias e os dogmas, mas em se tratando de aplicá-los à subjetividade, acho um pouco problemático, pois a subjetividade se transforma. Se você usa um antibiótico durante um certo tempo e os germes se tornam resistentes à dose, torna-se necessário alterar sua composição química. Da mesma maneira a psicanálise: não é uma boa idéia dizer aos pacientes que fiquem com os germes mas continuem tomando o antibiótico por ser apenas uma grande experiência. O desejo do paciente é estancar a dor de garganta.