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Entrevista com Lourdes Barreto
"Eu tenho lutado pela questão das mulheres da terceira idade, porque há uma exclusão social muito grande ainda, um preconceito e uma discriminação, no sentido de achar que as pessoas que viveram mais não significam mais nada, não têm prazer, não querem mais viver"
Sempre lutou pelo direito de afirmar-se como prostituta, e é por entender que combater o estigma dessa palavra que Lourdes, hoje aposentada, continua militando há mais de 40 anos por identidade, melhores condições de trabalho e contra as violências sofridas pelas mulheres. Reconhecida por notório saber nas questões de gênero e por sua atuação na luta em defesa dos direitos das mulheres, ocupa hoje cadeira no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Mais 60 Lourdes, para começar nossa conversa, conte-nos um pouco da sua história, de onde você veio...
Lourdes Meu nome é Lourdes Barreto, sou natural do estado da Paraíba, nasci na cidade de Catolé do Rocha, morei em várias cidades da Paraíba, tenho 77 anos, sou mãe de quatro filhos, duas filhas e dois filhos, avó de dez netos, quatro mulheres e seis homens e bisavó de sete bisnetos, três meninas e quatro meninos. Eu, hoje, digo que sou mais feliz de que quando era mais jovem, porque eu não sabia muito conduzir o processo da minha vida para viver uma vida mais tranquila... E agora, eu tenho uma sexualidade muito bem resolvida, eu me sinto muito feliz…
Fale sobre sua família.
Minha família mora na Paraíba, inclusive, eu perdi referência da família, porque o nordestino é assim, aqui em São Paulo deve ter muita gente que nunca mais voltou para o nordeste. Isso é uma cultura, né? Eu, aliás, nunca sofri violência na zona... Nunca de nenhum cliente, impressionante, sofri violência dentro de casa. Meu pai era machista, minha mãe era vítima de violência, também passei na família por violência sexual, então, eu passei por várias histórias na vida, a minha família são meus filhos, os netos, os amigos, as amigas, os clientes... Eles sabem quem sou eu. Fui a Catolé várias vezes, mas perdi a referência com essa família.
E como você começou na prostituição?
Eu não saí de casa porque não tinha o que comer, mas vivia num círculo de violência. Meu pai era muito machista, minha mãe era uma mulher submissa, e eu disse, “eu não vou ser assim”. Aí, aconteceu essa questão de eu ser vítima de violência sexual. Não faço apologia à prostituição, não sou a favor da mulher que vai para a prostituição porque não tem outra coisa para fazer, que isso eu não acredito, porque todo mundo tem alguma coisa para fazer. Eu fui para a prostituição porque eu queria conhecer os dois lados da moeda, queria lidar com a fragilidade masculina. Sei que nós, mulheres, somos fortes, temos um poder muito grande que, muitas vezes, a gente não sabe nem como conduzir isso, e eu sempre digo que sou uma mulher feliz. Sou uma mulher que trabalhou dentro do garimpo, trabalhei em barragem, fui dançarina de cartão, enfim, eu fiz muitas coisas na vida, mas sempre tendo momentos de limite.
Quantos anos você tinha? E em que momento você sai da Paraíba e vai para Belém?
Aos 14 anos sofri uma violência dentro de casa e achei melhor não ficar mais ali, naquele ambiente. Fui para Recife em um Cabaré, na época chamado Dejanira, e trabalhei por todo o Nordeste entre os anos de 1954 a 1957. Em 57, fui para Belém onde era dançarina de cartão. Escolhi morar em Belém, ter filhos lá. É uma cidade fêmea. Morei nas boates mais chiques da cidade por muitos anos, até chegar o Golpe Militar. Fui presa várias vezes sem saber o motivo e, nesse momento, fecharam o chamado Quadrilátero do Amor, que eram quatro ruas, no centro, onde ficavam os bordéis. Tinha cerca de 3.800 putas, de vários lugares do mundo, e eu, ali, no meio delas, resistindo. Assim que o Quadrilátero fechou, aluguei uma casa e saí de lá, já com meus dois primeiros filhos.
E como foi conciliar a maternidade com a profissão? Você comentou dos seus filhos e de continuar trabalhando…
Não posso dizer que tudo foi um mar de rosas. Foram muitos desafios, muita luta, mas eu sou sonhadora e sempre acreditei em revolucionar o mundo e a maternidade, para mim, sempre foi um sonho. Criei meus quatro filhos sozinha, porque os pais não assumiram. Eu sou uma mulher livre e não parei de trabalhar para não perder o traquejo! (risos). Além disso, no cabaré, as mulheres se ajudam, minhas amigas cuidavam dos meus filhos enquanto eu trabalhava. Todas as putas são feministas e eu já era feminista antes mesmo de falarem essa palavra, desde os anos 50.
Lourdes, você hoje se apresenta como feminista e na época que começou, principalmente aqui no Brasil, não se falava em feminismo. Como acontecia?
A gente já fazia feminismo há muitos anos. Bom, fazer feminismo era lutar por direitos, identidade, quer dizer, naquela época, na década de cinquenta, eu já fazia feminismo sem saber essa palavra. Hoje a gente já fala, tem pessoas escrevendo sobre feminismo, mas eu sempre falei. Gabriela Leite também, e outras prostitutas mais antigas, que eu encontrei. Feminismo é lutar pelo que você acredita, tu ir para frente com suas referências, ir lutando... Então é isso. Nós todos aqui somos feministas. É isso aí.
Você acha que esse movimento contribuiu para o coletivo, para vocês se unirem, criarem os filhos, se defenderem?
Sim...o que eu não tive, é que eu não estudei, né? Só quem estudou foram meus irmãos. Meu maior foco, meu maior respeito e minha maior preocupação sempre foi a educação, porque para mim é um dos pilares que dá o direcionamento para qualquer espaço que a pessoa possa conquistar. E todos meus netos fizeram vestibular, todos eles, e as minhas filhas, todos eles, eu passei a noite inteira contando histórias. Eu convivi nos cabarés da vida com poetas, com ator, com pessoas que conheciam as histórias da cidade, então, eu me lembro que a Juliana (neta) foi fazer a prova dela de vestibular, fui para a casa dela na véspera, ficamos até a noite, fumando cigarro, tomando café, e ela fazendo pergunta, e o outro queria saber sobre a migração, o que aconteceu no Acre, na questão com a Venezuela, contei tudinho e caiu... Como é que chama? Enem... Caiu sobre isso.
Você tem um envolvimento importante em defesa das mulheres idosas na sua região. Fale sobre isso.
A gente tem que ter limite de algumas coisas, ter cuidado, sou pioneira na luta contra a AIDS no Brasil, sou fundadora, junto com Gabriela da Silva Leite, sou fundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, e, também, fundadora do Grupo de Mulheres Prostitutas do estado do Pará. É que eu fiquei olhando para a Zona das mulheres, mulheres antigas com a minha idade, tem umas mais pobres e outras melhores, de setenta e poucos anos, e percebi que estava faltando alguma coisa. Eu tenho lutado pela questão das mulheres da terceira idade, porque há uma exclusão social muito grande ainda, um preconceito e uma discriminação, no sentido de achar que as pessoas que viveram mais não significam mais nada, não têm prazer, não querem mais viver. Eu sempre penso que eu nunca vou ficar velha, eu sou uma pessoa madura, que amadureci de uma forma bem gostosa, bem dinâmica, e com muitos sabores da vida, sou uma mulher generosa, companheira, gosto do que faço e me orgulho também da minha profissão, não faço apologia…
Em que momento você resolveu parar de trabalhar?
Eu estou com 77 anos. Trabalhei, até os 62, 63 anos. Parei de trabalhar quando eu tive uma queda, tive que fazer uma cirurgia, e também já estou um pouco cansada, porque o trabalhador, você tem um tempo que cansa. Eu sempre trabalhei e tentei desconstruir essa frase colocada sobre as mulheres, inclusive as prostitutas. Falar que a mulher é sexo frágil, que não é. Mulher é muito talento, é muito forte. E é importante dizer, porque 99% das prostitutas trabalham sem a mínima condição.
Lourdes, você falou que mantém a sexualidade normal, nada mudou com a idade. A minha pergunta é: porque tem pessoas que passam dos 60 anos, e dizem que a sexualidade acabou? Você sentiu alguma mudança?
Não, eu não senti. Eu acho que a minha sexualidade era muito reprimida e, na terceira idade, eu acho que ela melhorou mais, porque também eu tive mais tempo de me preocupar com isso, de estar me arrumando, porque sexualidade não é só ir para cama e fazer sexo. É você gostar da roupa que você veste, é você gostar de uma cor do cabelo, arrumar o cabelo… Sexualidade é isso. As pessoas confundem sexualidade com sensualidade, é você estar bem, é você estar bem com você mesma, sua cabeça ter um direcionamento, é você saber o que você quer. Para mim está muito bem definido isso. Eu acho que bem mais do que quando era nova.
Você está bem resolvida com seu envelhecimento?
Estou, tudo é cabeça. Não é outra coisa. O corpo também, mas a cabeça tá junto.
Fale sobre a potência do Gempac. Como esse grupo foi criado e qual é o objetivo?
O Gempac é Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará. Nos anos de 87, quando nós fundamos a Rede Brasileira, com a Gabriela Leite, no Rio de Janeiro, no circo Voador, nós tínhamos o objetivo de chegar em nosso município e organizar grupos, né? E nós, lá em Belém, nós começamos. Eu comecei lá, realmente, com as mulheres para falar sobre direitos, questão de identidade, de gênero. A gente vem discutindo a questão de gênero já faz muito tempo, a questão de direitos, de condições de trabalho, de enfrentar a questão da violência social, política e humana e a gente fundou o Gempac. O Gempac é um grupo que é referência na região toda, é um grupo grande. Onde tinha puta, nós estávamos, no garimpo, nas cidades, nos municípios dos estados, então, a gente fazia esse movimento.
E continua até hoje?
Continua, é um movimento que tem uma parceria muito grande com a academia, nós temos convênio com a Universidade Federal do Pará, com outras universidades privadas, importante também a parte da academia, de pesquisas também...
É em defesa dos direitos…
Na formação de estudantes, que vai da academia até estes que estão começando, para saber da nossa história. Trabalha muito com a questão dos direitos humanos, a questão da cidadania...A questão da mulher mesmo, que precisa trabalhar a questão da mulher de uma forma carinhosa, de uma forma bonita, porque muitas mulheres têm dificuldade, e não é só prostituta, porque nós abrimos um leque. Por exemplo, eu tenho um trabalho sobre sistema penal, entre as mulheres privadas de liberdade. São mulheres em vulnerabilidade social... E ainda tem outro agravante muito grande, elas vão presas e os filhos ficam abandonados.
Hoje você observa mudanças nos lugares que frequentava?
Eu não posso falar muito bem de Belém, que é onde eu vivo, né? Primeiro aconteceu o seguinte, a questão de 90, é a participação dagente dentro dos Conselhos. Por exemplo, eu sou conselheira nacional, do Conselho dos Direitos da Mulher, em relação de gênero. Sou também conselheira estadual, então, estou também no Conselho de Saúde, em várias instâncias. Então, isso faz com que a própria polícia respeite, alguns donos de casas veem que essas mulheres têm importância e têm, por trás delas, um movimento que defende seus direitos. As mulheres também estão participando politicamente, num espaço público, interagindo com a questão de identidade, então, há uma mudança muito grande hoje sobre a violência contra as prostitutas, sobre isso. Isso no Brasil todo.
A violência contra a mulher está mais evidente agora...
Está mais claro, porque, na nossa época, a gente ficava confinada sem poder falar, denunciar... Tem associação no Brasil todo... Agora, temos uma questão que é de identidade, tem as que estão lá na capital, que estão no movimento, participando, sabem como dizer a eles. Eles sabem que é uma associação que é ativa, sabem que vamos a uma Assessoria Pública, denunciar na Delegacia da Mulher, enfim, a gente está fazendo...
E como é a Lourdes hoje? Como é o seu dia a dia?
Eu sou muito família também. Eu gosto, no final de semana... Eu cozinho muito bem, de fazer comida, chamar os filhos, netos, bisnetos, têm dois que moram mais próximos... É cuidar da família e eu tenho tanta coisa para fazer, que não tenho nem tempo de pensar em tristeza, quando eu vejo “olha, a senhora pode vir conversar com a gente?”. Eu vou chegar em Belém e, no outro dia, eu tenho que estar na Defensoria Pública para dar uma palestra para a população secundária, os familiares das mulheres privadas de liberdade. Depois, vou dar uma palestra para as mulheres da alta sociedade, falando sobre sexualidade na Terceira Idade, violência contra a mulher, falando dessas coisas todas que eu falo... então eu faço muitas palestras agora.
Você mora sozinha?
Eu moro sozinha, saio sozinha para qualquer lugar, agora, para viajar tem que ter acompanhante, porque eu tomo remédio para diabete, para pressão, essas coisas todas.
Que mais você fez e faz, Lourdes? Conta pra gente.
Eu fiz tanta coisa, fui vereadora, fiz roteiro de uma minissérie, trabalhei em garimpo, desfilei em escola de samba. Lá no bairro onde eu moro, eu ajudei a criar a Associação dos Moradores, eu ajudei a instalar a Delegacia da Mulher lá no Pará, Conselho Tutelar, Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente, a luta contra a AIDS no Brasil, eu estava em todos esses espaços. E estava lá como puta mesmo, não tinha isso de ah...eu sou puta, “sou prostituta”! Essa palavra que é a palavra. Chamou a atenção e todo mundo passou a me chamar para palestras até hoje. Também gosto do bar, gosto da noite, gosto da boemia…
Eu trabalho muito com a questão do prazer. Aquela vontade de revolucionar, então, eu sou uma mulher feliz, me orgulho da mulher que eu sou, cuidei dos filhos sem negar essa identidade, resolvi fazer uma tatuagem - Eu sou puta, eu falei que vou fazer dessa frase um símbolo de resistência e de identidade. Isso para mim é fantástico, eu fui a primeira puta do mundo tatuada, isso eu fiz em João Pessoa, no congresso brasileiro, e essa palavra dava uma visibilidade na minha vida, na minha história, nas minhas conquistas de lutas, já fui candidata a vereadora em Belém do Pará. Depois, eu disse: “eu não quero isso”. É importante a mulher estar no parlamento, mas eu não quero, porque meu papel é estar na base, é estar conversando com as pessoas.