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Greta: Eu preciso aprender a ser só, eu preciso aprender a só ser

Texto: Danilo Cymrot

 

Greta (Brasil, 2019, 97 min.), filme de Armando Praça, é baseado na peça Greta Garbo, quem Diria, Acabou no Irajá, de Fernando Mello, escrita em 1974, auge da ditadura civil-militar brasileira. Ao contrário da peça, porém, considerada uma precursora do gênero “comédia-escrachada-besteirol”, o filme adota o gênero melodramático, dialogando com a filmografia de Fassbinder, Almodóvar e da própria Greta Garbo, a atriz sueca que, cercada por uma aura de mistério, abandonou a carreira aos 35 anos de idade, transformando-se em um mito e ficando marcada pela frase “I want to be alone” (eu quero ficar sozinha).

 

No filme, o protagonista Pedro, interpretado magistralmente por Marco Nanini, ator então com 71 anos de idade, é um enfermeiro homossexual que busca aliviar sua solidão ou suas necessidades biológicas mantendo relações sexuais efêmeras em ambientes como saunas. Pedro é obcecado por Greta Garbo, a ponto de pedir para ser chamado pelo nome da atriz durante as relações sexuais, como um fetiche. É irônico, assim, que justamente no momento do sexo, em que dois corpos supostamente se integram de forma tão intensa, a solidão de Pedro pareça ainda mais doída e sua identificação com Garbo ainda mais forte.

A relação afetiva mais próxima de Pedro é com a amiga Daniela (Denise Weinberg), uma mulher trans que está prestes a morrer. Parte de Daniela o desejo de que, em seus últimos dias de vida, o amigo aprenda a viver sozinho. A relação entre Pedro e Daniela é ao mesmo tempo entre dois idosos e dois cuidadores. Ambos se cuidam mutuamente, mas de maneira distinta. Pedro viola uma série de regras para desempenhar bem sua função em relação à amiga: desvia medicamentos do hospital onde trabalha, facilita a fuga do hospital do preso Jean (Démick Lopes) para abrir uma vaga a ser ocupada pela amiga e, finalmente, em um último gesto de amor, pratica a eutanásia, a pedido de Daniela.

De certa forma, o hospital onde Pedro trabalha tem muitos pontos em comum com uma prisão, aproximação que já foi discutida por teóricos como Erving Goffman e Michel Foucault. Em ambas instituições há a convivência forçada de internos com estranhos, a superlotação, a falta de vagas, a perda da privacidade, o confinamento, o uso e abuso de drogas e as relações homossexuais transitórias, nas quais quem desempenha o papel “ativo” não se reconhece muitas vezes como homossexual. Algemas são utilizadas não apenas para controlar e vigiar criminosos internados, mas também pacientes que resistem ao internamento, como Daniela.

O processo de “mortificação do eu”, descrito por Goffman, ou seja, de perda da individualidade em instituições como o hospital, ILPIs (Instituições de Longa Permanência) e a prisão por meio de rituais degradantes e estigmatizantes, fica patente na obrigatoriedade do uso de roupas hospitalares padronizadas. No caso de Daniela, no entanto, essa mortificação é ainda mais acentuada em razão da burocracia estatal fazer com que seja identificada pelo seu nome civil masculino, ao invés do nome social feminino, e da falta de vagas, que a obriga a ser internada na ala masculina, contra sua vontade. Cabe lembrar que muitas vezes é na velhice, quando fazem uso de serviços como hospitais e ILPIs e perdem sua privacidade, que homossexuais são obrigados a “voltar para o armário” e pessoas transexuais se deparam com violências tais como serem tratadas como pertencentes ao gênero com o qual não se identificam.

Na investigação interna da administração hospitalar para identificar o responsável pela facilitação da fuga de Jean, é proposta uma espécie de transação penal a Pedro: a assunção de culpa em troca de uma pena menor. Muito emblemático é o fato de a aposentadoria ser proposta como a punição mais branda. Em uma sociedade em que a aposentadoria é um sonho e uma recompensa cada vez mais inalcançável para alguns, muitas vezes é encarada como uma severa punição por outros, uma forma de ser descartado.

Se a solidão é uma ameaça que paira sobre todos os idosos, é ainda mais ameaçadora no caso de idosos homossexuais que não se casaram nem tiveram filhos. Da mesma forma, o envelhecimento do corpo é encarado de forma negativa por uma sociedade que preza o vigor de um corpo jovem. O corpo idoso não é visto como sexualmente atraente. Isso de certa forma explica a recorrência de relacionamentos entre homossexuais mais velhos, chamados pejorativamente de “mariconas” ou “carinhosamente” de “sugar daddies”, e homossexuais bem mais jovens, na base do interesse financeiro. Não é à toa que Pedro se incomoda em ser chamado de “velhota” pelo jovem Jean e é nessa lógica de troca de interesses que oferece dinheiro a ele, o que não deixa de ser uma forma de procurar não se envolver emocionalmente e permanecer sozinho, à la Greta Garbo.

Simbólica também é a inserção no filme de imagens de arquivo de Greta Garbo fazendo um teste, quando já havia se aposentado. Atrizes veteranas se queixam da falta de bons papéis destinados a elas e de que a sociedade machista é impiedosa com seu envelhecimento, muito mais do que com o envelhecimento dos atores homens. A nostalgia pela época de ouro de cinematografias de vários países e a admiração que muitos homossexuais sentem por divas como Garbo não deixa de ser uma nostalgia da beleza da juventude ou do tempo em que o espectador desses filmes era jovem e, portanto, de um tempo idealizado como melhor. Uma das formas de conservar eternamente no imaginário do público essa imagem jovem e bela das atrizes no auge de suas carreiras é justamente o registro do cinema. Nesse ponto, abandonar a carreira cinematográfica com 35 anos é manter-se eternamente jovem. Outra forma de conservar eternamente uma imagem jovem é a morte precoce.

Após a morte de Daniela e a partida de Jean, e possivelmente influenciado por esses episódios, o solitário Pedro enfim aparece na tela vestido como uma mulher, provavelmente Greta Garbo. Não se sabe se a identidade feminina será adotada permanentemente nem publicamente por Pedro, assim como não está claro o estado emocional de Pedro naquele momento, em um ótimo final de filme aberto e ambíguo, mas não deixa de ser tocante imaginar que, enquanto alguns têm que voltar ao armário quando idosos, outros, como a borboleta, seguindo sua natureza, conquistam asas na fase mais madura de suas vidas.